Capítulo 2

Shadow

Passei boa parte da noite pensando em como sei o nome do maldito gato e por que ele tem o mesmo apelido que ela. O que isso significa?

Em algum momento, acabo adormecendo e, quando acordo, ela está parada de costas para mim e de frente para a janela, com as cortinas parcialmente abertas. A claridade do amanhecer entra pela pequena abertura e deixa o quarto iluminado pelos primeiros raios de sol. 

Na noite em que ela invadiu as instalações e fugiu, levando consigo informações valiosas da Organização, todos os agentes presentes foram escalados para pegá-la antes que conseguisse escapar.

A encontrei do outro lado das instalações, de costas, se preparando para escalar o muro.

Quando se virou e olhei em seu rosto, congelei. Algo nos seus olhos verdes me deixou paralisado; aprisionado ao chão, sem saber, ao certo, o porquê. Meu coração bateu tão rápido que, por um instante, pensei que fosse saltar para fora do peito, mas, antes de ter alguma chance de entender o que estava acontecendo comigo, ela pulou, impulsionando o corpo para cima com as pequenas hastes de metal, que foram estrategicamente colocadas por todo o comprimento da grande parede de tijolos.

— Estarei te esperando, Shadow — disse antes de saltar, desaparecendo do outro lado do muro.

Durante esses dois anos tenho me perguntado o que aconteceu comigo naquela noite. Sou conhecido pela minha frieza imperturbável; sou implacável, porque não me permito sentir. As emoções e os sentimentos são o que nos tornam mais fracos. Sou considerado o melhor soldado, a arma mais letal, pois não sinto nada. Ou não sentia, até conhecê-la, naquela noite.

— Durante muito tempo, sonhei com esse momento — diz, virando-se para mim.

A aura de tristeza ao redor de seu rosto faz com que sinta uma dor incômoda em meu peito. 

Ela balança a cabeça e suspira.

— Você não sente nada, quando olha para mim? — indaga.

Não gosto do que estou sentindo. É confuso e estranho, e faz com que me sinta fraco. Novamente o aviso soa em minha mente. Spider é manipuladora e, de alguma maneira, está conseguindo me confundir, mas não vou permitir que entre em minha cabeça e saiba o efeito que surte em mim.

— Sinto vontade de apertar minhas mãos ao redor de seu pescoço até ver a luz desaparecer de seus olhos — minto com a voz enganosamente fria.

Lágrimas vertem de seus olhos e sou arrastado por uma avalanche de sentimentos que não consigo compreender. Quero envolvê-la em meus braços até fazer a dor desaparecer de seu rosto.

Ela se aproxima da cama, lentamente solta meus pés e, logo depois, minhas mãos.

Suas ações me confundem e fico apenas parado, observando-a. 

— Mate-me, Shadow. Se for isso o que realmente quer, faça.  

Envolvo a mão em torno de sua garganta e a empurro, derrubando-a na cama. Meus dedos pressionam firme. Apenas uma torção e quebrarei seu pescoço frágil com extrema facilidade, pois ela não luta contra. 

— Sempre vou amar você, Tyler — força as palavras a saírem, através de meu aperto, soando baixas e roucas, mas as ouço perfeitamente e salto para longe.

Ajoelho-me no chão com as mãos na cabeça, quando a dor trespassa pelo meu crânio, tão forte e intensa que um grito de pura agonia rasga pela minha garganta.

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Spider

Me ajoelho no chão ao seu lado e embalo seu corpo, enquanto bramidos de aflição o atravessam, suas mãos pressionando forte a cabeça.

Trazer uma recordação de volta abruptamente pode ser extremamente perigoso. Não sei, ao certo, qual o processo do experimento e como fazem para deletar as memórias, mas já vi como o corpo reage ao ser subitamente lembrado de algo que fora obrigado a esquecer. Isso pode até matar ou deixar a pessoa em coma, pelo colapso que o cérebro sofre. Deixar escapar o nome de Tyler foi um erro que não posso, nunca mais, cometer. Ele precisa se lembrar aos poucos, assim como lembrou o nome do gato. A mente é complexa demais para forçar algo dessa magnitude.

Quando seu lamurio de dor finalmente cessa, seguro seu rosto e vejo o profundo tormento por trás de seus olhos azuis pálidos. 

— Quem eu sou? — pergunta, seu semblante tenso, confuso.

— Não devia ter dito aquilo. As memórias precisavam voltar gradativamente. Não force ou isso pode lhe causar ainda mais dor — aviso, passando meus dedos suavemente pela sua têmpora, massageando.

Ele pousa a mão sobre a minha e seu toque é reconfortante, acolhedor.

Seus lábios se separam, como se para dizer algo, mas, seja lá o que diria, é interrompido pelo som alto e atordoante de uma explosão. 

Shadow se move rápido e instintivamente cobre meu corpo com o seu, recebendo o maior impacto dos tijolos que se desprendem da parede e voam em nossa direção. Quando nossos olhos se encontram e vejo a surpresa em seu rosto, minha suspeita se confirma: protegeu-me por puro instinto.

Ergo-me rapidamente e vejo que o lado direito do quarto foi destruído. Mais uma explosão soa no andar de baixo, fazendo o alicerce da casa balançar.

Não temos muito tempo.

— Precisamos sair daqui! Venha comigo, Shadow — peço, oferecendo minha mão, que ele observa por alguns segundos antes de pegar.

— Mostre-me o caminho.

Apesar das circunstâncias, não consigo evitar um sorriso.

No corredor, somos recebidos por mais uma explosão, o fogo se alastrando rapidamente pelas escadas, a fumaça enchendo o ar e tornando difícil respirar.

Conduzo-o em direção ao final do corredor, onde o painel de controle é escondido por um quadro na parede.

Cubro o nariz com a mão, evitando inalar a fumaça pungente, digito os números rapidamente e dou dois passos para trás.

A parede de move para o lado, revelando a rampa escondida. 

— Você vai primeiro. Preciso fechar o compartimento — aviso.

Shadow escorrega pela rampa e vou logo atrás dele. Sento no topo e aperto o painel ao lado da parede, fechando-a antes de deslizar até o subsolo, onde o encontro de pé, me esperando.

— Belo engenharia — diz, novamente arrancando um sorriso de meus lábios.

O lugar foi criado como saída de emergência. Há um carro equipado com o necessário para uma fuga rápida, incluindo roupas, armas e suprimentos.

Antes de entrarmos no veículo, ele me segura pelo braço.

— Não sei por que estou fugindo com você, ao invés de entregá-la para eles.

— Você pode não lembrar, Shadow, mas ainda sente. — Coloco minha mão no lado esquerdo de seu tórax. — Você sente o vazio, como se um pedaço estivesse faltando e, quando eu toco em você assim... — digo, tocando seu rosto.

— Me sinto inteiro de novo — ele completa, seu olhar tão intenso que custa tudo de mim não me jogar em seus braços. — Como? — pergunta. 

— Não posso revelar. Se o fizer, as memórias vão te sobrecarregar, como agora há pouco. Lá no fundo, você sabe que pode confiar em mim. É por isso que está aqui agora e, não tentando me matar, ou me aprisionar.

O som do compartimento explodindo nos sobressalta e sem demora entramos no carro.

Pressiono os botões do painel e, novamente, uma rampa surge à nossa frente. Acelero, descendo pelo túnel. 

O lugar é totalmente planejado. O túnel subterrâneo nos levará a uns vinte quilômetros longe da propriedade, a passagem se abrirá em uma fazenda e, assim que acionar o painel, a brecha se fechará e restará apenas um monte de feno e nenhum sinal de que passamos por ali.

— Você fez tudo isso sozinha? — pergunta admirado, após pegarmos a estrada principal, nos afastando da fazenda.

— Não — respondo sem dar maiores informações.

Seu olhar se estreita, analisando-me.

— Falaram que você trabalha sozinha — diz com desconfiança.

Dou de ombros.

— Eles sabem somente aquilo que permito — respondo sucinta.

Como se uma luz se acendesse, me esquadrinha por baixo de seus extensos cílios com suspeita.

— Trabalha para a resistência — diz com asco e soa como se eu estivesse trabalhando para um grupo de canibais que devora criancinhas. — Como ninguém da Organização suspeitou disso?! — refletiu em voz alta, fazendo-me revirar os olhos.

— Já disse. Eles só sabem o que permito e pare de me olhar desse jeito, como se eu tivesse cometido algum crime hediondo — peço ao ser alvo do olhar julgador. — A resistência não é o vilão aqui, Shadow. 

Ele bufa. 

— E quem seria o vilão? A organização? — Lancei um rapido olhar em sua direção. 

— O que você acha, Shadow? Eles acabaram de explodir a minha casa e antes que diga que era para resgatá-lo, eles nem se preocuparam de você ser atingido ou não. 

— Eles não estavam lá para me resgatar. Estavam lá para pegar você. 

Isso fazia todo o sentido. Depois de todos esses anos tentando me prender, não era de se estranhar que explodissem tudo só para conseguir me deter. 

— Que seja. Ainda assim, eles são os vilões e não a resistência. Precisa abrir os olhos, Shadow. 

Ele me analisa por alguns instantes, antes de pronunciar. 

— Então, me explique. Acabei de virar as costas para minha Organização. Acredito que eu mereça algumas respostas menos evasivas — exige.

Se quero que ele acredite, preciso fazer o que me pede. Solto um longo suspiro, preparando-me para contar a minah história. 

— Eu cresci... merda! — praguejo interrompendo-me, ao visualizar dois carros pretos se aproximando em alta velocidade. 

— Segure-se! — ordeno e piso fundo no acelerador.

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