Capítulo 1

Dez anos depois

Shadow

Observo ela olhar para os lados com suspeita, antes de entrar em seu pequeno apartamento. 

Demorei a encontrá-la, pois é esperta, cuidadosa, nunca fica muito tempo no mesmo lugar e está sempre se movendo. Sua aparência muda conforme suas novas identidades. 

Hoje, ela usa os cabelos loiros, pouco abaixo dos ombros, se veste de maneira recatada e discreta, podendo, assim, passar despercebida com facilidade. 

Na foto que me foi entregue, usava os cabelos mais escuros e sustentava um olhar duro e cruel no rosto. A foto foi recortada de uma câmera de segurança, do momento em que quase fora capturada, mas escapara pela quarta vez, matando três agentes e deixando mais dois em estado grave, no hospital.

Então, decidiram que, para capturá-la, a única solução seria enviar seu soldado mais letal. Agora, aqui estou, escondido, como a sombra que sou, observando a luz em seu apartamento se apagar e esperando apenas o momento certo para agir.

Aguardo pelo tempo necessário e, quando chega a hora, deslizo silenciosamente pela entrada do apartamento.

Sou como uma sombra, esgueirando-me pela abertura. Nenhum som, nenhum ruído. Meus olhos se ajustam à escuridão com facilidade e não tenho dificuldade de enxergá-la. A encontro sentada na poltrona, seu corpo preguiçosamente jogado para trás. Pressiona o interruptor ao seu lado, acendendo o abajur e iluminando parcialmente o ambiente.

Seus olhos se estreitam e os lábios se curvam em um sorriso ardiloso. 

— Olá, Shadow!

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Spider

O rosto duro, frio, predatório. Nenhum músculo treme. Nada. Nenhuma emoção na face adônica.

— Spider! — O som rouco de sua voz soa quase como uma ameaça de morte ao pronunciar meu apelido.

Durante todo esse tempo em que venho fugindo, me perguntei quando o enviariam por mim. Agora, aqui estamos. Frente a frente.

Shadow pode ser furtivo e se esconder como uma sombra, mas não sou idiota. Não preciso perguntar como me encontrou, pois sei a resposta. Deixei que me encontrasse. A cada seis meses, permito que a Organização me encontre, na esperança de que o enviem, mas não tive sorte... até agora. 

— Estive esperando por você, Shadow — digo pausadamente.

Novamente não sou recompensada por nenhuma expressão. É por isso que ele é letal. O semblante é frio como gelo. Olhos azuis vazios, sem trespassar quaisquer emoções.

— Não precisava ter me esperado. Era só ter ido me encontrar — diz com frieza, a voz afiada como navalha.

— Não era uma opção, mas sabia que, cedo ou tarde, o mandariam para mim. Só precisei esperar.

Estreita o olhar. Sua primeira reação, desde que cruzou a porta.

— Deixou que eu a encontrasse. — Não é uma pergunta, mas respondo, assim mesmo: 

— Assim como deixei que me encontrassem todas as outras vezes.

Ele dá um passo à frente e me levanto. Shadow é uns bons vinte centímetros mais alto que eu, com meus 1,75m. Por isso, preciso erguer a cabeça para olhar dentro dos olhos tão frios quanto uma tempestade glacial. 

— Tenho ordens de levá-la de volta, viva ou morta. Você escolhe! — Não tenho dúvidas de que seu plano seja realmente esse. Sei que Shadow fará qualquer coisa para cumprir com seu dever. Se for preciso, até me matar, para eliminar a ameaça. Então é o que fará.

Movemo-nos quase que instantaneamente. Deslizo o corpo pelo piso, fazendo meu pé se chocar com seu joelho e escapando por pouco de um soco que passa raspando pelos meus cabelos. Shadow tropeça para frente, mas é rápido e recupera o equilíbrio prontamente.

Lanço-me em sua direção, mas ele antecipa meus movimentos, segura minha perna e empurra, fazendo-me chocar contra a parede. Sem demora, dobro os braços, golpeando-lhe o pescoço com os cotovelos, ao mesmo tempo em que chuto o estômago, conseguindo, assim, escapar de seu domínio. 

Circulamos um ao outro, atacando e esquivando, até que finalmente consigo me mover até o lado oposto da sala. No entanto, meu adversário me empurra contra a estante de madeira com a mão se fechando ao redor de meu pescoço e as pernas bloqueando as minhas. 

— Pare de lutar ou vou matá-la — estronda em um rosnado, os dedos apertando minha garganta fortemente e impedindo minha respiração.

Estou exatamente onde queria estar. Minhas mãos se fecham ao redor das duas seringas presas ao lado da estante e, antes que se dê conta, espeto as agulhas nos dois lados do pescoço dele, injetando o potente sedativo.

Shadow me solta e cambaleia, antes de cair de joelhos no chão. Seus olhos estão frios e furiosos, enquanto tenta se levantar, lutando arduamente para cumprir o objetivo que o movia: eliminar-me.

Fecho a mão em punho e o golpeio no rosto, fazendo-o cair desacordado.

Quando cruzou por essa porta, ele não sabia o que estava enfrentando, mas encontrou uma adversária à altura. Estava determinado a cumprir com sua missão, mas eu sou movida por algo muito maior.

Estou determinada a salvá-lo, porque perdê-lo novamente não é uma opção.

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Shadow

A primeira coisa que percebo ao despertar é que não estou preso em nenhum calabouço e, sim, em um quarto fracamente iluminado pelo pequeno abajur do outro lado do aposento. A segunda é que estou em uma cama confortável e algemado com correntes de titânio cravadas na parede. Qualquer tentativa de me soltar é inútil, então poupo as energias para quando for realmente necessário.

A porta do quarto se abre e ela entra, carregando uma bandeja que coloca sobre a mesinha. 

— Boa noite, Shadow. Está com fome? — pergunta docemente, fazendo-me questionar o que, diabos, está tramando. Por que a seção de tortura ainda não começou? 

Deixo meu rosto neutro, sem expressão, quando ela se aproxima com um kit de primeiros socorros nas mãos.

Penso que, agora, ela vai começar a tentar arrancar informações, o que é um desperdício tanto do seu tempo, quanto do meu, já que nós dois sabemos que não vou dizer nada.

Sinto a ardência na parte de traz do meu pescoço e vejo-a retirar uma bandagem coberta de sangue.

— Desculpe-me por isso. Precisei fazer uma incisão para remover o rastreador — diz. 

Quero perguntar do que, diabos, ela está falando, mas permaneço em silêncio, enquanto ela termina de colocar um novo curativo. 

— Cada indivíduo da Organização leva um dispositivo de rastreamento na parte de trás do pescoço. Não se preocupe; retirei o seu em um lugar bem longe daqui e não vão nos encontrar — responde, como se estivesse lendo minha mente.  

— Acho que eu saberia, se tivesse algo instalado em meu pescoço — digo com a voz neutra. 

Ela não responde, mas volta para a mesa e aperta um botão que faz a parte de cima da cama se mover, deixando-me praticamente sentado.

— Está com fome? — torna a perguntar e dá de ombros ao ter apenas meu silêncio como resposta.

— Quando foi a primeira vez em que me viu, Shadow? Lembra-se de quando nos conhecemos?

Sim, eu lembro. Não sei aonde ela quer chegar com essa pergunta, então permaneço em silêncio. 

Seus olhos verdes se fixam em meu rosto.

— Uma menina de cabelos loiros estava escondida e chorando atrás de um galpão. Sabe por que essa menina estava chorando, Shadow?

— Ela havia perdido seu gato — As palavras saltam de minha boca, mas não faço ideia do porquê disse isso.

Ela se levanta, emoção crua por todo seu rosto.

— Você se lembra!

Balanço a cabeça em negação.

— Não sei por que, diabos, eu disse isso — confesso.

Fecho os olhos e tento buscar na memória a imagem que descreveu, mas não consigo. 

Spider é ardilosa, esperta. Fui alertado sobre ela. Sabe que não pode quebrar meu corpo. O treinamento ao qual somos submetidos, na Organização, garante isso. Então entendo o que ela está tentando fazer. Spider quer entrar em minha mente, me confundindo. 

Ela se aproxima, o rosto tão perto do meu que posso ver as linhas cinzentas ao redor dos olhos verdes.

— Qual era o nome do gato, Shadow?

Travo o maxilar com força, quando o nome apenas surge em minha mente. 

— Qual era o nome dele? — grita a pergunta, batendo no colchão com as mãos em punho. 

— Spider! O nome do maldito gato era Spider.

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Spider

Ele berra o nome. Seu rosto, até então neutro, mostra confusão. 

— Como sei disso? — questiona-se com o cenho franzido.

Não consigo mais conter o desejo que queima dentro de mim e coloco minha mão em seu rosto. As emoções estão fora de controle. Lágrimas deslizam de meus olhos, molhando minha face. Quero tanto me aconchegar em seus braços, que chega a ser quase uma dor física. Estar tão perto, mas, ao mesmo tempo, tão longe dele é uma tortura.

Fecha os olhos por alguns segundos e, quando torna a abri-los, vejo apenas o tormento em sua expressão.

— Não me toque, porra! — protesta, fazendo-me saltar para longe com a frieza de seu rosto.

Ele puxa as correntes com força, tentando se soltar, mas é impossível. Os aros são de titânio e resistentes à sua força sobre-humana.

— Apenas se machucará, Shadow. Sabe que não vai conseguir romper as correntes.

Não quero que se machuque, apesar de saber que, se tiver uma chance, não pensará duas vezes antes de me matar.

Volto para meu lugar aos pés da cama e a distância que coloco entre nós o acalma um pouco.

— Sei que não tem motivos para acreditar em mim, Shadow

— Me alertaram sobre você. É como seu nome: uma aranha que tenta atrair a presa para sua teia de enganação e mentira. Não sei o que, diabos, está tentando fazer com minha mente, mas não importa o que faça: no final, vou me soltar e fazer você pagar, derramando seu sangue por todo esse lindo carpete branco. — Não há emoção em suas palavras; não há nada.

Shadow é o soldado mais letal porque não sente remorso. A Organização conseguiu o que queria, o transformando em uma máquina de matar e, no momento, eu sou o alvo de toda sua ira. 

— Lamento, Shadow, mas os únicos sangues a serem derramados serão os dos fundadores da Organização, e eu mesma me certificarei disso.

Não espero ele falar nada e saio do quarto, batendo a porta atrás de mim. Apoio meu corpo contra a parede e deslizo até sentar no chão, cobrindo meu rosto com as mãos e tentando abafar os soluços que me escapam.

Por anos, me preparei para encontrá-lo, mas nem toda a preparação do mundo me deixaria pronta para isso. Ser o alvo de todo seu ódio me corta mais profundo do que imaginei ser possível. Sei que ele não lembra, mas isso não impede a dor cortante em meu coração.

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