Capítulo 4

Após terminar um sábado normal como qualquer outro, tive de insistir muito com o pessoal da orquestra pra não ir comer pizza na casa do Marcello, eu estava afim mesmo era de ficar sozinho, tinha uns trabalhinhos extras que eu precisava terminar então ao chegar em casa, tomei um banho, jantei e me enterrei no computador quando lá pelas nove e meia da noite ouvi batidas na porta:

– Já vou – gritei.

Tomei o maior susto da minha vida quando abri a porta, era impossível acreditar, mas era verdade.

– Dan... Daniela? – não podia acreditar que ela estivesse ali, bem na minha frente, bem na minha varanda, batendo à porta da “minha” casa, eu seria capaz de esperar uma visita até do Papa, menos dela. Linda como sempre, usando a mesma roupa que ela usava no dia que ficou tão pertinho de mim pra me ferir com aquelas palavras  duras, uma saia azul marinho pelos joelhos, camisa branca de botões, levemente transparente, sandália preta de salto, uma bolsinha preta combinando, cabelos soltos com uma adorável franja na testa, aqueles olhos, ah minha nossa, aqueles  olhos que me matavam desta vez porém estavam tristes, vermelhos e levemente molhados, de cabeça baixa ela me olhava por cima dos olhos como sempre, porém com uma tristeza indescritível no olhar, era óbvio que estivera chorando. Segurava a bolsa pela alça com as duas mãos na frente

– Oi.

– Que... que 'cê faz aqui?

– É que meus pais viajaram, minha irmã só chega de madrugada e eu não gosto de ficar sozinha então pensei que talvez eu pudesse passar algumas horas aqui com você só pra que a noite ficasse um pouco mais curta, só até minha irmã chegar.

– E seu namorado?

– A gente brigou.

– Ah, entendi, e você veio chorar as mágoas aqui na minha casa? – parece que o diabo me cutucou pra dizer isso.

– Desculpe, é que eu pensei que... tudo bem, deixa pra lá, me desculpe – colocou a bolsa no ombro esquerdo e fez menção de se virar pra ir embora.

– Não, não, espera, é que... bem, Daniela, você tem que concordar comigo que você é a última pessoa do mundo que eu esperava receber aqui na minha casa.

– Eu sei.

– Acho que eu poderia receber uma visita até do Papa, menos de você. – fiz uma pausa de uns segundos olhando pra ela onde nenhum dois falava, apenas olhávamos, eu assombrado, ela humilhada até o fundo da alma não sei por que razão saí da frente da porta e a convidei para entrar:

– Por favor – estendi o braço apontando para o sofá, ela passou por mim, entrou e sentou no sofá que dava de frente pra porta.

Minha sala era pequena, mais ou menos uns dois metros e meio de largura por três metros e meio incluindo o corredor pequeno que dava acesso ao banheiro, a cozinha e meu quarto, era meio retangular e paralela com a varandinha com os dois sofás em paralelo sendo o maior ao fundo e o menor de frente com  uma mesinha de centro retangular encostada à parede esquerda enquanto que por trás da porta da sala, na outra parede um Rack de madeira com uma TV e um DVD que eu raramente ligava, o chão era de cerâmica branca porém recoberto com um tapete que imitava desenhos persas. Ela sentou-se no sofá maior, aos fundos, sentei-me no menor, bem de frente pra ela, mas a uns dois metros de distância dela.

Eu não conseguia falar, não conseguia pensar, nem mesmo respirar, eu estava atônito, ela não estava ali, não estava, eu juro, eu dormi em frente ao computador e estava sonhando, era isso, apenas um sonho, mais um daqueles tantos sonhos que eu tinha com ela e que sempre me deixavam dias e dias deprimido.

– Eu... eu não consigo ficar sozinha, as vezes me dá medo, me dá solidão não sei, um desespero muito grande me aperta por dentro.

– Mas por que eu? Eu te provoco, às vezes até faço questão de te deixar brava de propósito e…

– Eu sei, e acho que no seu lugar eu faria a mesma coisa, você tinha todos os motivos do mundo pra isso mas eu não gosto de ficar sozinha e eu não tenho mais ninguém agora.

– Daniela, você conhece tanta gente, é super popular, não espera que eu acredite numa desculpa dessas?

– Leonardo, – inspirou fundo, parecia estar tomando coragem pra fazer algo realmente difícil – na verdade eu... eu queria... queria me desculpar com você, eu fui muito rude a vida inteira, não só com você mas com todo mundo, mas com você foi diferente, eu te maltratava sem motivo nenhum – ela falava o tempo todo de cabeça baixa as vezes me olhava ocasionalmente – parece que as vezes a gente precisa receber um grande golpe pra aprender certas coisas.

– Diz isso por causa do Daniel?

– Também.

– Como assim também?

– É que...

Na hora o maldito telefone toca, eu passo a minha vida toda sozinho aqui, as vezes o telefone leva até mais de uma semana pra tocar, e agora, justamente agora o telefone toca, justamente na hora que eu gostaria de parar o tempo pra tê-la ali, eu sabia que ia acordar em poucos momentos e voltaria a realidade mas tive que atender.

– Me desculpe, eu tinha que atender – disse isso já voltando do quarto ainda no corredor, sentei de volta no meu lugar – eu estou desenvolvendo um projeto para um amigo e estava no computador quando você chegou.

– Poxa, me desculpe, eu estou te atrapalhando não é?

– Não, não, não. Não tem problema, você nunca veio aqui, merece atenção.

– Obrigada, mas se você não se importar, pode continuar o seu trabalho, é só me arranjar uma revista ou um livro, eu só preciso passar algumas horas.

– De jeito nenhum, não vou te deixar aqui sozinha, agora se você não se importar, a gente conversa enquanto eu monitoro o computador.

– Tudo bem – ela se levantou e me acompanhou.

– Vem aqui então – me levantei e a trouxe até o quarto – não repara a bagunça por que eu moro sozinho e ...

– Tudo bem

Ela sentou na ponta da cama, bem perto do computador e ficou olhando para o monte de letrinhas que subiam rápido pela tela.

– O que ele está fazendo?

– Está compilando um código – disse sorrindo por saber que ela não tinha nem ideia do que fosse isso, puxei a cadeira, sentei e fiquei esperando pela pergunta que veio logo em seguida:

– E o que é compilar?

– Bem, você deve saber que sou programador, as vezes eu pego algum serviço por fora, tipo uns bicos ou coisa assim, um amigo do meu chefe pegou um vírus nos computadores da rede dele e ele soube pelo meu chefe que o sistemas que a gente usa nos nossos computadores além de ser gratuito é imune a vírus, então a primeira coisa que eu fiz foi limpar a rede dele desse vírus, depois, como todos sabemos que o programa da empresa dele foi fabricado por uma empresa privada que não libera os códigos por serem deles, a gente copiou o sistema.

– Piratearam?

– Não, piratear seria se a gente revendesse, a gente copiou apenas pra uso próprio.

– E dá pra fazer isso?

– Na verdade não, é preciso do código fonte, ou seja, das linhas de código que os programadores dele fizeram e como a gente não tem isso, tivemos que conhecer muito bem todas as funções do programa dele e criar um outro programa igual, assim, do nada, copiando tudo, desde cores das janelas, posições das ferramentas e tal. Aí a gente pega esse novo código e compila ele, ou seja, o computador lê ele todo, e gera o programa novo, e é isso o que ele está fazendo agora.

– E você escreveu esse monte letrinhas tudo sozinho?

– Na verdade não, tenho um amigo que me ajuda as vezes, foi ele quem me ligou agora a pouco. Pode-se dizer que a gente dividiu as tarefas.

Ela observava as “letrinhas” que subiam, as vezes paravam, subiam devagar. Eu observava seus cabelos, liso ondulados, claros, agora amarrados pra trás porém com uma franja linda encobrindo a testa, seus olhos claros, porém ainda estavam tristes, a pele do seu rosto tão clarinha, aparentemente macia como seda, como eu gostaria de acariciar aquele rostinho de anjo. Aquele era o sonho mais lindo que eu já tivera com ela, eu não podia deixar de admirar aquela boquinha pequena e aquele olhar perdido na tela, dava até pra ver o reflexo da tela no brilho do seu olhar, e eu olhava tanto que ela até percebeu, nossos olhares se cruzaram e dessa vez ela sorriu pra mim, era inacreditavelmente verdade, ela estava sorrindo pra mim pela primeira vez, procurei não olhá-la tão insistentemente pra não deixa-la desconfortável, levantei-me de repente, abri mais a porta do quarto que as vezes se fechava sozinha.

Meu quarto também era pequeno, na verdade ali tudo era pequeno, aquele era um apartamento de solteiro ou pra um casal sem filhos no máximo, minha casa era um grande quadrado dividido em quatro, na frente, ao lado oposto da sala, ficava um quarto que Dona Fátima havia mantido pra ela, era trancado e só ela tinha as chaves, e nas únicas duas vezes que havia entrado ali, me pediu licença e só fez isso porque eu estava em casa, e na parte dos fundos, ficava meu quarto, paralelo com o quarto trancado, tendo em frente minha pequena cozinha, entre a cozinha e a sala ficava o pequeno banheiro.

Dentro do meu quarto eu coloquei minha cama de solteiro  encostada na parede, ela tinha um balcãozinho lateral  em todo o comprimento da cama onde eu colocava pequenas coisas como o controle  do computador, aquele mesmo que um dia era de um aparelho de som, copo de suco, porta retrato ou coisas assim, coloquei a cama com os pés para a porta, ao lado da cama coloquei o pequeno guarda roupas deixando entre os dois móveis o espaço para a única janela na parede lateral e por último, na mesma parede do guarda roupas, no canto que sobrou para o lado da porta coloquei a mesinha do computador, era onde tinha minha cadeira, o cestinho de papéis no chão, e uma pequena banqueta estofada ao lado da cadeira, voltei a me sentar, olhando pra ela:

– Está com fome?

– Não obrigado.

– Sei que não sou muito bom cozinheiro, mas... nunca matei ninguém não.

– Não se preocupe – ela respondeu rindo de minha tentativa de descontrair.

– Não quero parecer meio oportunista, mas... gosta de pizza?

– Pizza?

– Sim, sempre peço pizza aqui.

– Até que seria bom.

Mais ou menos uns vinte minutos depois eu acabava de preparar tudo numa bandeja e quando entrei no quarto e ela estava com meu violino nas mãos, eu havia deixado ele sobre a cama ao lado do case aberto, pois costumava ensaiar enquanto o computador trabalhava sozinho, ela manuseava o instrumento com cuidado, observando profundamente, passava o dedo delicadamente no verniz.

– É incrível como um pedaço de madeira como esse pode produzir sons tão lindos, né?

– É, mas esse “pedaço de madeira” é mais velho do que eu e você juntos, sabia?

– É mesmo? Quanto tempo?

– Algumas dezenas de anos.

– Tudo isso? – disse ela entregando pra mim o violino que eu logo guardei no case.

– Sim, é uma cópia falsificada de uma marca famosa, caríssima, chamado Stradivarius.

– E você... comprou, ganhou...

– Ganhei, minha mãe adotiva me deu, mas ela não sabia que era falsificado, o irmão dela trouxe de presente de algum lugar, pagou uma nota preta achando que era verdadeiro, minha mãe também pensou que fosse, mas depois que eu já morava aqui eu mandei fazer uns testes pra confirmar e acabei descobrindo a falsificação.

– Você foi adotado?

– Mais ou menos.

– É que você disse mãe “adotiva” ...

– Sim, não me lembro de minha mãe verdadeira, me separei dela ainda muito novo.

– Ah, me perdoe, acho que isso não é da minha conta, né? Estou sendo indelicada outra vez, desculpe.

– Não tudo bem, fique tranquila.

– Mas e quanto ao instrumento, sua mãe, o que disse quando soube que era falso?

– Ela nunca soube, morreu antes de eu fazer os testes.

Era estranho estar ali falando do meu passado justamente pra ela, a última pessoa que eu imaginava estar  comendo pizza comigo no meu quarto num sábado à noite, mas se eu não soubesse que aquilo era apenas um lindo sonho, ia pensar que fosse uma alucinação ou pior, que ela estivesse armando alguma cilada pra mim, ela era meio fria às vezes, não era mesmo de estranhar que fosse capaz de alguma coisa do tipo mas num dado momento em que eu havia cortado mais uma fatia de pizza, deixei que ela “passeasse”  pelos arquivos do meu sistema, por um lapso de segundo, minha mão tocou a dela, apenas por acidente, mas senti uma coisa estranha na hora, era como se eu tivesse tocado uma chapa a duzentos graus ou se eu tivesse posto a mão num fio elétrico de uns mil volts ou mais.

Era estranho aquilo, eu nunca tinha experimentado isso antes, mas ela me olhou na hora, e eu estava começando a ver coisas demais ou aquele sonho seria o pior deles pois ela parecia estar se aproximando de mim e iria me beijar, eu não acreditava naquilo, mas era verdade ela estava se aproximando mais, olhávamos sempre nos olhos um do outro, minha respiração se acelerou, meu coração parecia que ia saltar pela boca, ela estava a menos de  vinte centímetros de mim, já dava pra sentir até a respiração dela, mas eu não consegui, me levantei de repente e fui pra cozinha, imaginei que ela tivesse de cabeça baixa, frustrada não sei, mas eu rodei por um minuto ou dois na cozinha sem saber o que fazer, completamente atônito, depois voltei ao quarto com mais dois copos de guaraná e gelo sem me lembrar que já havia deixado meu copo lá, e deu pra ver que ela realmente estava de cabeça baixa, mas tentou disfarçar, levantou a cabeça e me olhou sorrindo, aquele era o sorriso mais lindo que eu já havia visto,  e aquele seria o pior sonho pois nunca mais eu me esqueceria daquele sorriso. Meu anjo estava sorrindo pra mim, era impossível de se acreditar se não fosse tudo um sonho doce e cruel, a garota mais linda que já pisou a superfície da terra estava no meu quarto, sentada a meio metro de mim, sorrindo pra mim, transformando aquele maldito sonho em meu pior pesadelo.

Você já tinha deixado seu copo aqui, foi buscar mais guaraná?

– É eu, eu... eu achei que... talvez...

– Tudo bem, aceito mais um pouco – ela percebeu que eu estava desconcertado e tentava me fazer sentir melhor.

Sua voz era doce e melodiosa, combinava perfeitamente com seu rosto pequeno, o qual eu não conseguia olhar por muito tempo, eu sempre abaixava a cabeça, ela era linda demais, era um anjo, era “minha” Danny e estava ali, bem na minha frente, sorrindo para mim.

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