Capítulo 3

Resolvi seguir o conselho da Ária ao pé da letra, passei a orar muito mais do que antes pela Daniela, na verdade tinha vezes em que eu orava até mais por ela do que por mim mesmo, e passei a me sentir muito mais confortado, passei a sofrer bem menos pelas repulsas dela. Passaram-se vários meses e eu me conformava muito mais com minha situação, mas ainda me pegava triste por não tê-la comigo as vezes, ainda sonhava com ela e ainda era fascinado pela beleza celestial daquela garota com olhar de anjo. Ela no entanto, é claro que não notou mudança alguma, aliás, nem ela nem ninguém, pois como eu disse antes, eu não passava de um mísero grão de areia.

Haviam-se passado um ano desde que a conheci, e ela ainda odiava quando me surpreendia olhando pra ela, mas houve uma vez em que foi diferente, ao invés de abaixar a cabeça ou virar para o outro lado como sempre eu fazia, dessa vez eu a enfrentei, o Edu até estava do meu lado nesse dia, e vendo que eu comecei a provocar, olhando diretamente nos olhos dela, começou a se incomodar:

– Que é que 'cê 'tá fazendo?

– Declarando guerra.

– Ficou maluco é? Ela vai vir aqui fazer outro daqueles escândalos.

– Acha que estou me preocupando com isso?

– Léo, que deu em você? Olha, lá vem ela, se vira sozinho, fui.

Ao ver que ela se aproximava se afastou e ficou olhando de longe, mas ao invés de me esculhambar como sempre ela fazia nessas situações, passou por mim, bufando de raiva e foi embora mas nem bem ela se afastou muito, aí eu provoquei de verdade:

– Tchau princesa! – Continuei olhando pra ela, o Edu ao ouvir isso quase caiu de costas, eu não sabia se ria da cara que ele fez, que passou por todas as cores, ou se ria da reação dela, preferi me concentrar nela. Como numa cena de filme, ela simplesmente parou, a uns três metros de mim, virou-se pra trás e perguntou:

– Você falou comigo? – Apontando o polegar direito pra si mesma.

– Falei sim, só falei tchau princesa! Algum problema nisso?

– Eu não acredito – ela riu baixinho, caminhou bem devagar em minha direção, parou a um metro de mim, não pude olhar pro Edu mas com certeza ele fez uma cara de assombro que eu dava tudo pra ver, fixou aqueles maravilhosos olhos claros dentro dos meus e tentou ser o mais ríspida e áspera que podia.

– Escuta uma coisa garoto...

– Garoto como se eu sou mais velho que você?

– Cale sua boca! – começou a levantar a voz – você não se enxerga não?

– Não.

– Nota-se, pois então trate de fazê-lo, acha mesmo que uma pessoa da minha classe ficaria com um moleque como você seu inútil? Ponha-se no seu lugar.

– Impossível...

– Eu mandei você ficar calado seu traste aliás, faz o seguinte – dessa vez ela fez algo inédito, chegou bem mais perto de mim, tão perto que dava até pra ouvir as batidas rápidas do coração dela, dava pra sentir seu perfume, até podia ouvir sua respiração a centímetros de mim, chegou a uns cinco centímetros do meu ouvido e falou baixo o bastante apenas pra que só eu ouvisse – por que é que você não volta pro buraco de onde saiu, esquece que eu existo e morre por lá mesmo? – dessa vez olhou bem de frente perto o bastante pra que meu nariz quase tocasse o dela, olhou fixamente dentro dos meus olhos enquanto perguntava ainda bem baixinho – ouviu? Morra, seu verme!

Virou-se de costas e foi embora batendo o salto da sandália no chão com força, de propósito pra fazer barulho. Quanto a mim, dessa vez fiquei chocado, ela nunca tinha chegado tão perto assim de mim, seus olhos tão perto dos meus, tão faiscantes, tão ríspidos pareciam quase a me ler por dentro, a própria aura da presença dela, embora carregada de ódio, me trancava até a respiração, aquela voz tão baixinha, embora com palavras tão ferinas, ainda soavam nos meus ouvidos guardando por várias horas ainda o tom daquela voz que de outra ocasião era doce e melodiosa. Foi aí que acordei pra realidade, o Edu estava do meu lado pondo a mão na minha testa:

– Que deu em você? Enlouqueceu? Que foi que ela te falou?

– Edu, chega de ficar choramingando pelos cantos morrendo de medo dessa víbora enquanto ela se acha dona de tudo pisando em todos como se fossem seus escravos, pouco me importa o que ela faz ou deixa de fazer da própria vida, em mim ela não pisa mais não.

É logico que eu estava mentindo, eu me importava com ela até mais do que comigo mesmo, eu só não queria dar o braço a torcer, estava começando a me cansar de ser envergonhado em público.

– Então pode comprar teu caixão pois o Daniel vai ficar sabendo disso.

– Acha que eu tenho medo dele? Ele pode ser realmente um cristãozinho de meia pataca, se é que se pode chamar aquilo de cristão, mas assassino nunca soube que ele era.

– “Ele” talvez não, mas os amigos dele por aí afora eu não sei não. Minha nossa, dessa vez você enlouqueceu mesmo!

Pois foi dito e feito, até que o Edu estava mais ou menos certo, uns dias depois, a noite, eu estava já com o case do violino nas costas sentando na moto pronto pra dar a partida, quando do meio do nada, uma mão surgiu por trás de mim e me tomou as chaves.

Daniel.

– Acho que já sei o que é que você quer.

– Que bom, então vamos direto ao assunto, nerdzinho idiota.

Ainda sentado na moto, com capacete não mão, fiquei apenas olhando enquanto ele falava:

– Eu só vou te falar uma única vez nerd, esquece a Daniela sacou? Já faz um tempo que eu tô sabendo que você anda provocando a minha gata, esquece a Daniela seu nerdzinho de merda, essa gata é minha, entendeu? Entendeu? – ele insistia esperando a resposta.

– Entendi – eu não me atrevia a responder absolutamente nada, fiquei de cabeça baixa olhando pro painel da moto só ouvindo ele falar, até porque o Daniel era bem maior que eu, enquanto eu tinha um metro e setenta e cinco, ele tinha muito mais do que isso, além de que fazia exercícios regularmente em academia, e tinha o corpo muito bem cuidado.

– Que bom que você entende rápido nerd, então CAI FORA! – gritou as últimas palavras jogando a chave em cima de mim e ainda ficou olhando desafiadoramente com os braços cruzados enquanto eu colocava o capacete, dava a partida na moto e saía.

Entrei pelo portão de casa, estacionei a moto nos fundos do antigo armazém como era de costume, tranquei, e subi as escadas correndo, joguei tudo no sofá da sala, corri pra meu quarto, me joguei na cama e fiquei ali olhando pro teto, eu não acreditava no que tinha acontecido, ela havia mesmo contado tudo pro Daniel, e contava sempre desde a primeira vez, era óbvio que eu me borrava de medo dele, nunca fui bom de briga e se ele me pegasse literalmente me quebraria todo, fiquei assim meio em estado de choque por uns quarenta minutos, o telefone tocou umas dez vezes, mas eu não consegui nem me mexer, me acalmei uma meia hora mais tarde quando resolvi assistir alguns daqueles slide shows que eu fazia com as fotos dela, e que agora eu postava no meu disco virtual na internet, pois eles foram se multiplicando tanto que começou a ficar difícil de esconder do Arthur. Como ele tinha pleno acesso no meu computador pessoal, uma por causa do trabalho pois foi ele que me arranjou esse emprego onde ele também trabalhava em meio expediente e outra por que era de uma marca que ele babava, uma marca de última geração que seus pais ainda não permitiam que ele comprasse por ser muito caro, tive de tirar os arquivos da Danny do computador e guardar em outro lugar, assim, eu poderia “vê-la” sempre que quisesse. Dormi meio assustado naquele dia, e por uns dias não tive nem coragem de “provocar” a víbora novamente.

Eu e o Edu sempre fazíamos alguns trabalhinhos extras pra nossa orquestra, era na verdade um pequeno grupo instrumental, composto de uns vinte instrumentos mais ou menos, dos quais eu e o Edu tocávamos violino, às vezes nosso dirigente, um pianista chamado Marcello Corrêa, pedia ora pra mim ora pro Edu, pra restaurarmos umas partituras antigas dele, a gente sempre ganhava uns trocados por causa disso, embora eu sempre insistisse que não precisava, ele fazia questão de pagar pelo serviço, o Marcello era muito gente boa, meio ocupado como todo pianista de igreja grande, mas sempre que eu sabia que ele tinha algum tempo livre, ligava pra ele e lá ia eu estudar piano na casa dele.

Mas dessa vez estávamos ensaiando uma música nova pra ser apresentada numa ocasião especial, e como ainda faltava uma parte pra imprimir, fiquei com um pendrive dele e combinamos que eu imprimiria em casa e levaria pra ele no ensaio seguinte, só que chegou o dia do ensaio seguinte, um domingo à tarde, e não sei por que casualidade do destino, fiquei sem energia elétrica em casa, embora eu tivesse nobreak a bateria não seria suficiente pra imprimir uma peça daquele tamanho, corri pra casa do Arthur, ele não estava em casa, fui pro Edu, a impressora dele quebrou, ligamos pra Ária, ela já tinha saído, comecei a me desesperar, a solução foi correr pra uma lanhouse e bancar a impressão do próprio bolso, felizmente tinha uma dessas lanhouses bem ao lado da igreja, é uma dessas que de tão perto a gente até pensa que é uma extensão do salão de jovens, de tantos que vão até lá aos sábados a tarde apenas pra “acessar o site da igreja” como eles diziam. Entramos eu e o Edu, a lanhouse estava lotada de gente querendo “ler a Bíblia” pelo computador, felizmente era domingo e ainda tinha um computador vazio, conectamos o pendrive e já atrasados pro ensaio iniciamos a impressão. eram umas trinta folhas, e pelo nosso horário o ensaio já tinha começado sem nós, aí a cada cinco minutos o Marcello ligava pra gente pra nos apressarmos, eu como fico completamente fora de controle quando sou apressado por alguém, passei o maior sufoco pra não esquecer nada na mesa até porque eu precisava salvar uma cópia da partitura em meu disco virtual, apenas por segurança e também porque eu guardava uma cópia de todas as peças que nossa pequena orquestra tocava, pagamos o rapaz do caixa e ao sair quase tive um troço ao cruzar com a minha deusa no corredor tive que parar, não tinha jeito ela percebeu que eu parei pra vê-la, mal deu pra ver os cabelos soltos no meio das costas pois ela já entrou logo bufando porta adentro, acho que com medo de que se eu olhasse demais talvez arrancasse um pedaço dela. Mas deu tudo certo mesmo tendo chegado meia hora atrasados no ensaio, o que pra mim era a pior coisa do mundo pois eu sempre odiei chegar atrasado aos meus compromissos, e muito mais ainda quando estes envolviam música.

Depois que essa ocasião especial passou, umas duas semanas mais ou menos, eu continuava fazendo meus slide shows com as fotos dela. Era a única maneira que eu tinha de ter um sorriso dela. Saí de casa uma tarde de sábado para ir ao culto jovem e cruzei com ela na recepção, só que dessa vez eu estava sozinho, mesmo tendo recebido uma prensa do Daniel naquele dia não pude deixar de mexer com ela de novo:

– Minha nossa, essa garota é um anjo.

Nesse exato instante a Ária apontou no portão da igreja e pôde ver quando a Danny se virou pra falar comigo, só que estranhamente, ela não brigou, eu já estava preparado pra outra chuva de pedras, mas dessa vez não veio nada:

– Leonardo me deixa em paz vai, eu não ando muito bem esses dias tá? – virou-se novamente e se foi rumo aos banheiros que ficavam nos fundos perto do estacionamento. Eu fiquei ali abismado, sem entender porque dessa vez ela não tinha brigado comigo.

– Ária você viu isso?

– O que?

– A Daniela não brigou comigo, será que ela está doente?

– Ela não anda muito bem com o Daniel, parece que eles andaram se estranhando.

– Será que finalmente ela tá abrindo os olhos para as brincadeiras daquele traste?

– Não acho não, eles brigam sempre por ciúmes dela ou dele, não é a primeira vez, é bem verdade que dessa vez parece que a coisa foi feia mesmo, mas não é a primeira vez não.

Depois disso, uns quarenta minutos depois ela estava de volta na igreja, e a julgar pelos olhos estivera chorando, aquilo cortou meu peito, ver o grande amor de minha vida sofrendo por alguma coisa e eu não podia ajudar. A irmã da Ária, era mais uma daquelas patricinhas nojentas dali e muito provavelmente uma das responsáveis pelo comportamento orgulhoso da Daniela e de muitas outras garotas dali, pois a Klísia era uma garota de muita influência, e ela estava lá pra consolar a Daniela, se bem que seu consolo não fosse lá grandes coisas, pois muitos diziam que elas se mereciam pois a amiguinha, era tanto víbora quanto ela. Continuei mais alguns dias com o coração apertado por causa daquelas lágrimas, morrendo de raiva do Daniel, seja lá o que fosse que ele estivesse aprontando, sonhando com aquele anjo, tentando imaginar o que teria acontecido dessa vez entre eles dois e por vários dias fiquei com a imagem de seus olhos molhados em minha mente.

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