Capítulo I - Ariela

— A última vez.

Prometi em alta voz pela milésima vez, não para uma amiga ou um parente, mas uma promessa feita à mulher que me encarava no reflexo do espelho. Estava visivelmente transtornada, batom levemente borrado no canto da boca, o corretivo sob os olhos já não escondia as noites em claro, ao contrário, evidenciavam ainda mais o efeito dos pesadelos intermináveis, e o lápis preto escorreu, deixando a imagem medonha.

— Você é uma vergonha, Ariela! — repreendi a imagem patética que me encarava com o mesmo desgosto, se retorcendo com a pronúncia do meu nome.

Nunca entendi a necessidade da minha mãe em escolher nomes estranhos, mas ela achava o significado do meu nome lindo – Ariela, “leoa de Deus” – e eu sempre achei tão estranho quanto o nome, mas não teria como mudar aquilo, o estrago foi feito há vinte cinco anos atrás e, mesmo que eu pudesse, não mudaria. Não tiraria de mim nada que veio dela. Nada.

— Se controla! — ordeno novamente para o espelho. Bêbada? Sim. Chorosa e depressiva, novamente na noite paulistana? Não.

Demorei meses para conseguir sair da cama após a morte dela. A imagem do seu corpo frio no necrotério me atormenta. As coisas que deixei de fazer, tudo o que não disse, vêm à tona como uma avalanche demoníaca todas as noites, aterrorizando o meu sono e acabando com a minha razão. Não deixaria que aquela merda toda estragasse a minha noite, não aquela noite.

Estava comemorando, se é que isso era possível, a minha contratação por uma multinacional e minha ida para Santa Catarina. Foi a minha válvula de escape, a vaga literalmente caiu no meu colo. Havia acordado de madrugada, após um dos pesadelos mais fortes que já tive nos últimos nove meses, estava sentada na cama, tentando acalmar meu coração e apagar da minha mente as imagens do corpo da minha mãe se levantando naquela maca fria e me chamando, e peguei o celular somente para focar em qualquer coisa que não fossem lembranças e lá estava, naqueles anúncios em que você até ri quando lê e mais parece enganação. Cliquei exatamente por isso, achei engraçado a forma que a vaga para a área administrativa estava sendo anunciada.

Benefícios demais, salário excelente, lugar paradisíaco e ali, em uma rede social. Achei que o brasileiro havia perdido completamente o limite para a mentira e paguei para ver, e não é que era verdade? Fiz a inscrição na brincadeira, desliguei o celular e voltei a dormir, quando acordei já passava das onze da manhã e havia uma resposta em meu e-mail, solicitando meu curriculum. Enviei e, após algumas entrevistas on-line e uma presencial em uma filial na minha cidade, fui contratada.

A vaga era para a “ilha da magia”, mas não liguei, daria qualquer coisa para sair correndo daqui. Em um mês consegui organizar tudo e deixaria toda a dor para trás. Assim acreditava.

Iria me mudar em alguns dias, já estava com tudo organizado. Consegui um apartamento alugado perto da empresa porque não tenho carro e não quero ter que vender um rim para pagar os gastos com Uber no meu cartão de crédito no final do mês e muito menos depender de transporte público. Não sei como é lá, mas sei bem que o transporte público de São Paulo é caótico.

Estava indo com o coração em paz. Meu pai, após muita conversa, aceitou ir morar com o meu irmão e minha cunhada, e ele, com toda a certeza, era a única pessoa que ainda me mantinha presa nesse lugar, nessa casa, mergulhada em todas essas lembranças. Não quero mais nada disso, não quero ter que me deparar com as coisas que ela pintava ou os paninhos que fazia questão de encher de desenhos e linhas, não quero mais ter que lembrar.

— Ela! — Senti o toque suave em meu ombro, mas não consegui me virar. — Não chore amiga.

Não notei que estava chorando. De novo.

E novamente estava eu lá: bêbada, toda borrada e sendo amparada por minha amiga. Dani tem sido sensacional e, nos dias em que nem mesmo eu me aguento, ela permanece firme ao meu lado, sendo meu suporte emocional.

— Vem, vamos sair daqui. Deu por hoje.

E a noite de comemoração estava acabada.

— Não, por favor! Desculpa, mãe, eu sei... eu sei... me desculpa... me desculpa... Não, não faz isso... por favor... não, mãe!

Acordo com os meus gritos novamente e a mão esquerda segurando o pulso direito.

As batidas do meu coração descompassadas, pulsação acelerada e a respiração já não existe mais. É sempre a mesma coisa, estou trocando minha mãe no necrotério, ela está fria, dura, deitada na maca de metal. Coloco a calça e a blusa e odeio a combinação. Infelizmente é a única roupa que levaram para o hospital, mas esqueceram as meias. Ela odeia ficar com os pés gelados. Sorrio com meu pensamento, pois ela já não está mais ali, é somente um corpo vazio e não vai ligar, mas é no exato momento desse pensamento cretino que ela abre os olhos e me encara. Seus lábios se abrem e sua voz chega aos meus ouvidos, machucando a minha alma, sua acusação é dura e cruel: Você sabe que eu passo frio, como pode me enterrar sem meia, Ariela? Como pode fazer isso?

Tento me explicar, mas não adianta, ela continua me acusando e acusando, me despedaçando por dentro, até que sinto uma mão forte segurando o meu pulso direito e me puxando com força, então acordo. Quando abro meus olhos, ainda consigo sentir o peso do olhar acusador da minha mãe e a sensação da mão do meu salvador em meu pulso.

Estou enlouquecendo.

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