Capítulo 04

A água quase morna escorre pelo meu corpo, descendo apressada e esquentando minhas partes íntimas, que seguro com firmeza. O sabão escorre dos cabelos, adentrando a boca e mordo os lábios, segurando um gemido ao pensar nos lábios polposos de Adrián. Eu devia ter beijado aquele desgraçado.

Como um castigo dos céus a água cessa. Sou imediatamente interrompido e passo as mãos no rosto ensaboado, meus cabelos estão cheios de espuma e nem comecei o banho direito! Olho para o cano, não sai mais água e torço o registro, fechando-o.

Empurro a cortina plástica de pontas rasgadas, puxo minha toalha cinzenta e enrolo na cintura. Abro a porta:

Sidda! — grito com força torácica para que ela seja capaz de me escutar. — Acabou a água do chuveiro?

Ih! — Ela aparece vindo da cozinha, sinto cheiro de café. — Você sempre reclama do fedor de Zuzu, hoje dei banho nele!

Justo hoje?! Bem hoje?! Eu tenho a prova para o Exército! — resmungo.

Azar o seu. — Ela dá língua e me vira as costas, balançando suas tranças para longe do corredor de nosso minúsculo apartamento no Setor Iota; a falta de sorriso e a seriedade em seu olhar predizem que ela pensou em tudo como uma vingança.

Volto para dentro do banheiro pensando em como não voltei para a igreja e não peguei os tickets para levá-la ao cinema. Ela tem razão de estar aborrecida comigo: fiz uma promessa e não cumpri. A pior coisa que você pode fazer com um Heidrek é não ter palavra.

Seco meu corpo como posso com a toalha, tirando a espuma. Meus cabelos ficarão endurecidos e, sabendo disso, já os prendo em um coque. Coloco a cueca limpa e vou para a sala, em cima do sofá estão largadas minhas roupas, visto o conjunto e vou para a bancada da cozinha me servir de café.

Minha irmã está por ali, picando talos de verduras para o coelho. Pego a caneca e Sidda junta os talos em um pote, mesmo sem cortar, saindo da cozinha. Ela evita ficar no mesmo recinto que eu, ainda brava. Solto um suspiro e escuto o som da porta fechando. É... a vida nem sempre é perfeita.

Dou alguns goles em meu café ralo, tentando me concentrar um pouco. Preciso acordar completamente e manter a cabeça focada na minha pontuação! Existe um limite máximo para se inscrever no Exército, dos 18 aos 24 anos, depois disso, já era; você não é mais apto para ser um recruta e digamos que estou no limite. Nos outros anos eu não me achava capaz para tal feito e nem tentei, mas ano passado Aki me convenceu e, de quebra, convenceu seu irmão também.

Treinamos bastante, eu fiquei bem forte e cheio de músculos rígidos. Sou grande, pesado e, embora não seja muito ágil, tenho muita potência. Força, resistência e impacto são os meus pontos fortes; com eles eu pretendo conquistar um lugar no batalhão.

Fazer parte do exército exércitonão é coisa fácil, há notas de corte rígidas no seu primeiro ano, mas uma vez que você consegue ser designado para um grupo de combate, basta manter suas pontuações. Certo, não é moleza, mas eu precisava parar de ser um preguiçoso - e já tinha chegado até onde eu não pensei que conseguiria.

Emagrecer não foi fácil. Sempre gostei de comer, de ficar deitado no sofá e de lamentar a minha falta de sorte na vida, mas Aki mudou isso em mim: se ela conseguiu tirar Hiro do sofá, claro que conseguiu me tirar de lá também.

E tudo isso só precisou de uma motivação, uma só: Sidda. Minha irmã realmente merecia mais do que eu conseguia sendo um preguiçoso em depressão pela morte dos nossos pais. Sidda não teria chances de se inscrever no exército devido às suas limitações e eu devia isso para ela.

Coloco a caneca vazia em cima da bancada e volto para o sofá, de onde pego minha jaqueta cinzenta. Sinto algo pesando no bolso e então me lembro da caixa metálica de Adrián. Visto a jaqueta, puxando o zíper para cima e coloco o capuz sobre os cabelos úmidos. Solto um suspiro chateado; abro a porta para sair, mas antes de passar para o corredor com cheiro de urina, coloco a mão no bolso, tirando a caixa.

Não tinha ousado abrir a caixa até então, mas eu estava esperançoso que segurá-la por um tempo significaria que ele sentiria saudade de seus cigarros, seus chicletes, e que procuraria por ela. Se bem que ele mesmo disse que tinha em abundância cigarros e chicletes no Andar Nobre e talvez aquela caixa fosse como uma maldita gorjeta.

Encaro o objeto que fica até pequeno em minhas mãos grandes; metálico, dourado e fino, com um botão de pressão para abrir. Aperto o botão e abro; virando a tampa para cima, encaro seus cigarros, o cheiro de tabaco em pó é bem diferente do que mascamos, é pior eu diria, mas o aroma dos chicletes é um pouco melhor, adocicado, e me fazem lembrar de Adrián na mesma hora. Porém, vejo algo que, supostamente, eu não deveria ver.

Na tampa, na parte de cima da lata, é possível ver algo preso à sua superfície metálica, um falso fundo que esconde uma placa metálica onde um cartucho está preso com cuidado.

O que é isso? — A voz de Sidda me assusta. Eu percebo minha irmã bem às minhas costas.

Nada. — Fecho rapidamente a tampa da caixa e enfio no bolso da calça. Giro, pigarreio e coço o nariz. — Só algo que uma pessoa que eu conheci esqueceu.

Uma pessoa que você conheceu... — Sidda repete vagarosamente erguendo a sobrancelha direita, que fica bem acima dos olhos castanho-esverdeados, o que me faz engolir em seco. Ela está segurando Zuzu, seu coelho fedido (agora de banho tomado) nos braços como um bebê. — Sei. — Ignorando o assunto, ela estende a mão para frente, com um cordão marrom-claro amarrando galhos e folhas. — Fiz para você, para dar sorte. Guarde nos bolsos para nenhum padre ver.

Solto o ar dos pulmões e pego o cordão. Poderia ser considerado um tipo de bruxaria pelos padres, certamente, mas é um cordão inofensivo que nossos ancestrais faziam para amarrar os desejos e trazer força e sorte. Dou um sorriso e um beijo no rosto de minha irmã.

Tranque bem a porta enquanto eu não estiver. — Passo para fora de casa, colocando o cordão no mesmo bolso da caixa, torcendo para que ninguém me reviste durante as provas.

Os padres tentam combater nossas tradições há anos, mas algumas coisas simplesmente continuam existindo, quer eles gostem ou não: colocamos uma vassoura atrás da porta para afastar má-sorte e varrer o mal para fora, sinos na porta com intuito de afastar maus espíritos e orar para os antigos deuses. Não fazemos isso exatamente diante dos olhos de Ascensor, mas bem debaixo de seu nariz. A língua antiga ainda vive em nossas bocas e alguns de nós sonhamos com o dia em que teremos vozes mais altas para recitar nossas preces e desenhar nossos símbolos pelos muros, como a Sankta Capelo faz com os deles. Bem, alguns poucos de nós, como no caso da minha família.

A maioria das pessoas que moram ao nosso redor temem muito o Estado e não seguem mais a Antiga Religião. É o mesmo com o setor em que minha melhor amiga mora; muitos perderam os costumes budistas e dos antigos samurais. E não só a gente, mas outras religiões e crenças foram pisoteadas pelas crenças do Andar Nobre.

Respiro fundo, ouvindo Sidda trancar a porta como pedi e começo a andar pelos pequenos corredores cheios de portas, cada uma é uma microrresidência igual a nossa.

Ei, grandão! — Avisto Aki e seu irmão na parada das esteiras de trilho. Ela abre um sorriso e posso ver seus cabelos lisos e escuros presos em um coque, já preparada para as provas físicas. — Está quase atrasado!

Hironobu, ao seu lado, apenas acena com a cabeça, mantendo as mãos no bolso da calça e parecendo muito preocupado, porém, se bem o conheço, é só preguiça de acordar cedo mesmo!

Olá. — Aproximo-me deles, trocando um aperto de mão com cada um e fico diante da portinhola de metal.

Os trilhos de metal são as vias-expressas. Segundo a avó de Aki são como antigos trens. Aqui em Ascensor eles são chamados apenas de “carro-esteira”, pois é exatamente o que são. A avó de Aki dizia que esses carros eram de antigas montanhas-russas que ela ia quando criança, antes do Grande Desastre que confinou as famílias em Ascensor. Segundo a avó de Aki, eram para andar em alta velocidade e fazer acrobacias no ar, porém, eles andam tão devagar que duvido que algum dia foram velozes.

Os carros-esteira levam você para locais mais distantes e só funcionam em horários e dias específicos, mediante a taxa de um crédito-transporte. Hoje, como tem prova no Exército, está aberto, mas você precisa ter o seu nome na lista para poder subir no elevador. Normalmente usamos esses carros-esteira para ir ao Átrium pegar nossa cesta-básica ou ir ao cinema, quando você tem um ticket para isso. A maioria das pessoas prefere mesmo pegar as esteiras e caminhar, são gratuitas.

Está com cara de quem dormiu bem. — Aki repara, rindo, mostrando os dentes grandes e simétricos. Ela é sortuda por ter conhecido minha irmã, a pasta de dentes que Sidda produz faz bem para os dentes, eles duram mais. Algumas pessoas chegam aos trinta anos já sem muitos dentes e a maioria dos moradores do Andar Épsilon tem os dentes amarelos e quebradiços. — Apostei com Hiro que sua irmã ia te bater tanto que nem apareceria hoje.

Acho que ela só não me matou porque temos a prova — explico com um erguer de sobrancelhas simulando espanto.

E onde é que você se meteu? — Hiro coça o queixo. — Não assistiu à missa? Seu nome ficou com um “x” vermelho no telão. Tome cuidado com isso, sabe que três causam um problemão, chicoteiam as pessoas na praça até rezarem.

Pois é — desconverso um pouco. Não fico muito à vontade de dizer o que eu estava fazendo ou com quem. Só de pensar em ser chicoteado no Átrium, na Praça da Vergonha, meu corpo todo estremece de medo. — Preferi tomar uma cerveja. Uns guardas malditos me deixaram irado.

Guardas? Hum... — Aki espicha os olhos castanhos na minha direção, insinuando alguma coisa.

Na mesma hora um pequeno carro de montanha-russa em forma cilíndrica esverdeada, com uma cabeça de centopeia na ponta parecendo um desenho antigo. Eu me sento em um dos vagões, a única segurança é através de uma barra metálica, um tanto enferrujada, que fica em cima de nossas pernas e eu tenho dificuldades em caber ao lado de alguém, pois sou bem musculoso e alto. Hiro e Aki sentam-se no vagão a minha frente, mas Aki gira, ficando de lado, para continuar conversando.

O carro treme bastante quando atravessa os trilhos e deixa nossas vozes estranhas, ao ponto que precisamos gritar um pouco para conversar, por cima do barulho das rodas lentas.

Conversei com um soldado no Àtrium ontem e ele me deu alguns detalhes sobre a prova que iremos fazer. — Aki explica contente como quem tem uma carta-trunfo em um jogo de cabaré. — Eles vão testar o nosso físico com corridas, levantamento de peso, montagem de armas…

Montagem de armas? — Hironobu se arrepia e confesso que também não gosto de ouvir essa modalidade, está aí algo que não sei fazer.

Passam um vídeo antes explicando e você tem que decorar, quem fizer mais próximo do pedido ganha mais pontos. Prestem bem atenção aos detalhes nesse ponto. — Aki ergue um dedo em nossa direção. — Hoje é o nosso grande dia e não queremos que nada estrague isso. — E dá um tapa no ombro de Hiro, como se ele tivesse algum motivo para estragar tudo.

O que houve? — pergunto, percebendo.

Eles se entreolham, Aki solta um suspiro e apoia os braços no encosto do carro metálico em que estamos.

Michiru estava com dores hoje, nós a deixamos no hospital. A Dra. Charo não estava lá, mas a enfermeira disse que o bebê pode nascer se ela entrar em trabalho de parto. — Hironobu conta.

Ei, mas isso é ótimo! — Comemoro com um tapa no ombro de Hiro, mas ele me olha como se fosse uma má notícia. — Se nascer hoje, vai dar tempo de vocês mudarem para o Andar Gama e ele terá um quarto só dele, não é?!

Ahhh, isso seria ótimo. — Hironobu suspira, colocando o queixo apoiado em sua mão, seu olhar preocupado se perde um pouco pela paisagem de casas abarrotadas e corredores que ficam cada vez mais limpos enquanto nos afastamos da parte mais pobre.

Em Ascensor, quanto mais no centro e perto do Àtrium você estiver morando, melhor. Atualmente o Setor Iota, em que moramos, não é dos piores, mas estamos em melhor condição do que todos que moram nos setores Teta, Zeta e Épsilon! Ómicron e Pi ficam colados no Rio Ró, que é fétido demais para ser um bom local e depois dele vem os que realmente estão em más condições: Sigma, Tau, Pi e Ômega, esses últimos são as instalações que avançam sobre o Grande Muro da cidade e ali há perigo de radiação e de contaminação.

Ainda bem que não tenho filhos. — Aki suspira logo depois do irmão.

Minha amiga tem esse pavor incrível em sua vida: se tornar esposa, engravidar, ter seu sonho interrompido por uma paixão avassaladora que a tire do centro. Desde sempre Aki diz que vai ser grande e se tornará capitã; quando brincávamos correndo pelos corredores de Iota, ela costumava ser uma ninja-super-heroína que salvava os animais e os mais fracos! Eu acho que se juntar ao exército exércitoé o que realmente ela foi designada para fazer.

Aki declinou muitos namorados para perseguir seus sonhos, especialmente que em Ascensor uma pessoa só pode se casar uma vez, então digamos que escolher um parceiro é algo que tem de ser realmente válido e abençoado pelos padres. Você não sai por aí beijando qualquer um, é crime fazer isso, de certa forma é um crime contra a castidade matrimonial. Claro que entre os mais jovens os beijos acontecem aos montes, mas se um cara engravida uma menina ele tem de se casar imediatamente para que nenhum dos dois sejam expulsos, como aconteceu com Hironobu.

Para evitar o mesmo deslize do irmão, Aki nunca se relacionou exatamente com ninguém e foram poucas as vezes que a vi trocar beijos com alguém — e digamos que o cara tinha que gastar muito tempo tentando conquistá-la para tal.

Eu, por outro lado, se tivesse a minha vida investigada estaria verdadeiramente encrencado. Especialmente se me vissem com Adrián. Onde eu estava com a cabeça? Certamente não estava em meu melhor juízo!

Uau! Que superfila! — Aki reclama, cortando meus pensamentos; levanto a cabeça apenas para ver o que ela comenta, enquanto o carro-esteira para bruscamente com um solavanco. — Devíamos ter vindo mais cedo!

Confesso que é um pouco perturbador: há centenas de jovens parados diante dos elevadores tendo seus nomes conferidos por guardas, à espera de sua vaga para poder subir e adentrar a prova. São realmente muitos e somos imediatamente acometidos pelo receio de perder a prova.

A barra de metal destrava e podemos empurrá-la para sair. Sou o primeiro a descer e estendo a mão para minha amiga, mas ela não pega, revirando os olhos e me lembrando de como odeia esse tipo de cavalheirismo masculino.

Isso é fila para mais de meio dia. — Hironobu diz, arregalando seus amendoados e pequenos olhos orientais, chegando do meu lado.

Vamos pensar positivo. — Aki bate as mãos em uma palma.

Percebo que ela está usando uma pulseira de contas que é um meio japamala1 budista, para dar sorte. Ela percebe meus olhos e rapidamente retira a pulseira, colocando-a no bolso da jaqueta. É, não sou só eu que escondo coisas por aqui!

Vamos logo para a fila. — Empurro os dois para descermos da plataforma e nos juntarmos às centenas de futuros recrutas esperando por uma chance de melhorar de vida.

Diante daquela multidão é que percebo que somos apenas mais um de muitos, com os mesmos sonhos, as mesmas necessidades e a mesma força de vontade em subir alguns degraus na vida. Coloco a mão no bolso, agarrando o cordão que Sidda fez e pensando no quanto terei de dar o melhor de mim.

Eu preciso subir.

1 Uma espécie de terço.

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