A Fugitiva

Ela estava com problemas. Muitos problemas. Muitos problemas GRANDES.

Seu pai chegara no quarto aquela tarde com uma expressão preocupada e hesitou muito antes de contar-lhe o que estava acontecendo. O inventor-chefe do Ministério da Tecnologia andara se preocupando demais com ninharias e o Imperador resolvera refrescar-lhe a cabeça mandando que os mercenários fizessem-lhe um buraco para o ar entrar. "A pólvora entra e o sangue sai. Simples assim.", conforme diria Lotório, o Ministro da Alimentação, um frequentador assíduo dos aposentos de Kelmon. E agora era a vez dele.

Felizmente seu pai tinha muitas amizades e fora avisado da decisão do Imperador, tendo a chance de empacotar seus pertences e dar o fora da cidade. Mas ele não podia condená-la a viver no deserto, sem a certeza de ter o que comer, sem um abrigo contra o sol ou contra os predadores. E se encontrasse fanáticos? Ou nômades comerciantes de escravos? Sair para o deserto era como lançar-se ao sabor das ondas do mar. Também não fugiria sozinho, pois sabia que, quando um condenado fugia, seus entes mais próximos o substituíam no paredão.

— Nós não vamos. Eu ficarei e você poderá se juntar aos banidos. Eu já estou velho, não tenho muito tempo pela frente, mas você ainda tem toda a sua vida. Ainda tem muita gente para conhecer e, inteligente como é, ainda pode ter um futuro muito bom... Bem, eu vou até a cidade arrumar algo de bom para comermos. Vamos aproveitar o tempo que temos juntos.

Ela ia protestar, mas a batida da porta a calou. Puxa, ele estava mesmo decidido a ficar... Mas ela não podia simplesmente sentar-se e assistir seu pai ser fuzilado para que ela tivesse mais vinte anos de vida medíocre! Sem essa! Se ele não a queria levar, ela iria sozinha e ele seria obrigado a ir também. Não seria improvável que algum dia voltasse a vê-lo. Quem sabe? Poderiam mesmo acabar se encontrando antes que ela se perdesse no deserto... Porque obviamente era isso o que ia acontecer: não tinha para onde ir e, mesmo que tivesse, sabia que não haviam trilhas no mar de areia e só seus conhecedores podiam singrar-lhe com relativa segurança. Também não podia simplesmente ficar à margem da cidade vivendo junto dos banidos, pois eles certamente a encontrariam lá... Que rumo tomaria? Ouvira sobre povoados longínquos, mas não tinha ideia de como encontrá-los e era improvável que conseguisse chegar a qualquer um deles sem sucumbir aos perigos do deserto. Bem, não importava! Ela tinha de sair e pronto! Se chegasse a algum lugar, melhor, se não, haveria valido a pena por seu pai. Se ele estava disposto a se sacrificar por ela, ela também poderia fazer o mesmo.

Sem que se desse conta, as lágrimas lhe saíam abundantes e ela se sentiu fraca e cansada. Sentou-se a um canto e deixou que seus sentimentos fluíssem.

— Seráfia? Acorde, filha...

Ela abriu os olhos com alguma relutância. Demorou alguns segundos antes que se desse conta da situação e, lembrando-se que aquela era a última vez que via o pai, voltou a chorar, abraçando-o com força.

— Ei... Vamos... Não chore, eu trouxe ovos, carne, pão de raízes e muito mel, tudo o que você e eu adoramos!

— Pai... - sua voz estava empastada pelo choro e ela não conseguiu completar a frase.

— Vamos fingir que nada de importante acontecerá amanhã, ok? Vamos comer, contar histórias e depois dormiremos e sonharemos coisas boas por toda a eternidade. Sabia que Lot me disse que, tentando achar água, uns escavadores encontraram uma múmia enterrada aqui perto da cidade? É! E ela tinha joias muito bonitas. Ele disse que é uma pessoa muito antiga, de antes dos tempos da guerra... Aposto que ela está sonhando até hoje!

Seráfia ainda soltava os últimos soluços, mas deixou que o pai, tomando-a pela mão, a levasse até a mesa onde dispusera os víveres.

O céu já começara a tomar os tons marrons da aurora do Mundo quando Seráfia tomou coragem para deixar a cama. Queria beijar o rosto do pai, mas teve receio de acordá-lo. Ela sabia que ele não estava à beira da morte como afirmara. Seu rosto conservava traços suaves de uma inocência infantil sob a barba negra rala, que teimava em não passar dos dois centímetros. Ele ressonava calma e profundamente no ar fresco da madrugada e ela sentiu o nariz queimando de vontade de chorar ao pensar em deixá-lo, mas as lágrimas não saíram, apesar do coração que se contraía dolorosamente. Pegou sua pequena mochila, ajeitou o protetor ocular - invenção do pai - no topo da cabeça e saiu cuidando para não fazer nenhum ruído. Respirou fundo ao fechar a porta, com uma espécie de alívio ao completar a etapa mais difícil de seu plano.

Os guardas da Fortaleza, como ela já esperava, estavam ocupados demais jogando semas para que vissem a figura miúda e silenciosa que, fundindo-se ao lusco-fusco, passava pela grande abertura no muro cor de ossos. Sabia que a Fortaleza ficava bem ao centro da cidade, então, independentemente de qual direção escolhesse, bastava andar sempre em frente para sair dela. A rigor, todas as terras pertenciam ao Império Mundial, mas a capital, era o único lugar realmente povoado. Fora dela havia o vasto deserto e, em algum lugar dele, a aldeia dos fanáticos. Seráfia calculava que levaria, mais ou menos, um dia e meio de caminhada para deixar os limites do Mundo e contava com sua miudez para mesclar-se com as crianças das ruas e não ser identificada como habitante da fortaleza.

Àquela hora a cidade dormia e a silhueta das fábricas se recortava no céu sem nuvens. Ainda teriam muitos meses pela frente antes que a chuva viesse. Iniciou a caminhada observando cada detalhe. Ela havia saído da fortaleza apenas duas ou três vezes - os habitantes de lá podiam sair sempre que quisessem, mas sabia-se que eram seguidos por espiões que relatariam ao Ministro das Comunicações quaisquer palavras indevidamente pronunciadas. Por isso era muito raro que as pessoas da Fortaleza levassem as crianças em suas excursões à cidade.

Em pouco menos de meia hora, cruzou uma das ponte do Rhondom. A partir dela, as ruas tinham um cheiro forte de fuligem, poeira e urina ao qual seu olfato se rebelou de início, tolerou meia hora depois e, resignado, habituou-se por volta do meio dia. Àquela hora, já havia algum tempo que Seráfia baixara aos olhos o protetor que o pai lhe fizera: era, basicamente, uma armação com dois círculos metálicos com lentes de vidro queimado afixadas com uma correia de couro para prendê-lo à cabeça. Certificou-se, porém, de cobrir bem o rosto com a capa, pois o artefato era privilégio de poucos, mesmo dentro da Fortaleza. Usá-lo, seria denunciar-se.

Viu muitas crianças brincando na varanda dos barracos, sob a nesga de sombra que elas produziam. Não que a claridade fosse demasiada, na verdade a luz do dia era sempre filtrada pela cortina de partículas acima das nuvens - ou pelo menos era isso que dizia o ministro Lotório... Ele tinha teorias para tudo - mas ainda assim era difícil manter os olhos completamente abertos ao sol meio dia, que, em poucos anos cegava as pessoas. Ficou surpresa ao ver a magreza do povo, a amarelidão de suas peles crestadas e seus cabelos ralos. Eles eram bastante diferentes dos habitantes da Fortaleza: mesmo o mais humilde servo do Imperador gozava de água em abundância e refeições diversificadas duas vezes ao dia. Naquela parte cidade - e isso ela também sabia pelo amigo de seu pai - havia apenas quatros poços para a população e a ração que o governo lhes dava consistia apenas de pó de raízes. É certo que havia os mercadores que vendiam diversos gêneros, mas a maioria das pessoas não conseguia pagar por eles. O que geralmente se conseguia eram gordos insetos, lagartos dessecados e ovos miúdos, que as poucas mercearias ofereciam. Logo seu estômago começou a protestar. Ignorara a primeira refeição do dia tentando economizar suas parcas provisões, mas não podia evitar alimentar-se ou estaria arriscando-se a adoecer. Escolheu um canto afastado de quaisquer olhos e apreciou sedenta o conteúdo do cantil, acompanhado de um naco de pão de raízes e um dos dois ovos de lagarto que trouxera. Eles andavam cada vez mais escassos e, sabendo que o pai também deveria partir, calculou apenas um para cada dia que passaria atravessando a cidade. Esperava conseguir comprar algo dos banidos quando chegasse à fronteira.

Duas horas depois do por do sol, as ruas se encheram com as pessoas que saíam das fábricas. Parecia que os mortos haviam se levantado e invadido o Mundo. Aqueles olhos fundos e baços, os ossos do crânio sobressaindo-se, os ombros caídos e o andar pesado sob o brilho esfumado da lua davam um aspecto fantasmagórico à cena. Seráfia mal podia conter seu ímpeto de observar os espectros vivos que cruzavam com ela e, distraída, acabou por esbarrar em um deles. Sentiu uma súbita contorção no ventre e suas mãos ficaram úmidas e frias. Ela sabia que as crianças da cidade não ficavam nas ruas àquela hora: ouvira uma mãe alertando o filho sobre o toque de recolher e sobre o perigo do Estrangeiro que rondava por lá.

Mas o homem nem deu-se conta do incidente. Continuou seu caminho com seus olhos que não focavam lugar algum. A garota respirou aliviada, porém, mais tarde, deu-se conta de que não seria seguro caminhar à noite: havia guardas ocultos por toda parte. Felizmente ela os percebeu antes que a caminhada dos fantasmas terminasse e julgou que, talvez, eles também tivessem se espalhado àquela hora, pois teriam-na abordado se a houvessem visto antes, nas ruas desertas.

Decidiu ficar sob a varanda da casa mais próxima - um puidíssimo pedaço de couro atado a estacas de ferro antigo. Era uma casa relativamente boa, com muito entulho de concreto e até uma porta que impedindo entradas indesejadas. Ao redor, a maioria das moradias era construída apenas com restos de couro, palha e madeira. Eram, de fato, apenas um lugar onde as pessoas se podiam esconder do sol, pois não apresentavam a menor proteção contra o que quer que fosse. Sua agora antiga casa, dentro da fortaleza, era bem diferente: uma longa construção junto à parede oeste era dividida em alojamentos de três cômodos aos quais cada família tinha direito enquanto servisse ao Imperador. Haviam mais outros dois tipos de moradia dentro da fortaleza - um com dois cômodos para os funcionários da cozinha e da limpeza e outros de quatro cômodos para os ministros. Por serem juntos do muro, tinham uma parede feita de grossos blocos de pedra e as outras com entulho de concreto de boa qualidade, o que os deixava mais frescos. Todos eles tinham uma porta protegendo a entrada e os alojamentos ministeriais contavam também com uma porta extra em um dos cômodos.

Deixou-se estar naquele canto escuro, encolhida para proteger-se do vento que já começava a esfriar. Sentia falta de sua cama de couro macio, do aconchego da casa e, principalmente da presença do pai, que sentava-se junto dela para dar boa noite e quase sempre acabava por ficar lá conversando até que a madrugada já estivesse avançada. Naquela noite não foi diferente: ele abraçou-a com força e disse-lhe que deveria se alimentar melhor, como era de praxe. Conversaram muito sobre um novo projeto que ele desenvolvia de uma máquina que produziria água e ele lhe contou uma história muito bonita sobre três irmãos que encontraram uma terra próspera. Ela disse que gostaria de ter um irmão e, como sempre, ele lhe disse que isso não era muito provável, mas também não era impossível.

Acordou com o primeiro toque da luz do sol e, por um instante, achou que ela entrava por sua exígua janela, mas logo lembrou-se de sua nova situação. Sentiu uma leve pontada de tristeza, mas ficou feliz por ter tido um sonho tão bom e tão real. Ainda podia sentir o calor aconchegante do abraço do pai e sentiu-se animada para retomar seu caminho. Observou cuidadosa os arredores de seu esconderijo, especialmente o nicho onde havia percebido um guarda na noite anterior, mas ele não estava mais lá. Aproveitou o frescor daquela hora para adiantar-se na trilha e, antes do meio-dia já havia atingido o Poço Sul, o que significava que já andara metade do caminho e ainda sentia-se com bastante energia para seguir em frente. Pensou em completar o conteúdo do cantil, mas não contava com os três guardas que cuidavam do poço tentando evitar as brigas das pessoas que não queriam esperar para encher seus baldes e cântaros.

Pensou em pedir para alguma criança, das muitas que brincavam na lama que se formava ao redor, que lhe fizesse o favor, mas raciocinou que provavelmente muitos mercadores e caravanas passavam por lá para abastecerem-se de água e ninguém estranharia sua presença no meio de tantos. Esperou que o movimento diminuísse e serviu-se da água. Sentiu, porém, que era atentamente observada e, quando fez menção de partir, um dos guardas segurou-lhe pelo braço.

— Onde conseguiu esse protetor de olhos?

“Tatze!” - Pensou. Esquecera-se completamente de retirá-lo. – “Calma, garota, não entre em pânico!”

— Meu pai pegou em pagamento por mercadorias. - Tentou não parecer desesperada.

— E de quem ele pegou?

“Oh, não! Ele não está perguntando isso!”

— Ele... Ele... De um comprador do quadrante leste.

— Ninguém no quadrante leste tem esse tipo de coisa, menina! Não sem ter que roubar! Se não foi você mesma que o roubou, quero saber quem foi!

— Mas eu não sei, eu não estava lá!

“Drogadrogadroga! É o fim!”

— Vamos, me leve até o seu pai.

Defitivamente era o fim. Mesmo que ela soubesse onde havia uma caravana mercante, qual seria a chance de explicar que ninguém a conhecesse. De qualquer forma, precisava de tempo para pensar.

— Certo...

Depois de quase duas horas estrategicamente caminhadas em direção à fronteira, o guarda, impaciente, exigiu que ela dissesse exatamente onde se encontrava a caravana.

— Ah... Bem... Acho que nesse momento eles já devem estar de partida...

— Sem você?

— Não! - ele era inesperadamente esperto e ela estava ficando sem respostas - Digo que eles devem estar se dirigindo ao deserto, mas lá esperarão por meu pai e seus mercenários, que com certeza estão me procurando...

A súbita mudança de expressão no rosto do guarda fez seu estômago congelar.

— Que seja! Eu não vou me meter com mercenários mercantes por causa dessa droga de protetor! Se alguém do Imperador foi roubado que reclame lá! Eu não vou arrumar encrenca por um crime que nem foi denunciado! - ele a empurrou com força para frente. - Dê o fora daqui, pirralha! Rápido!

A garota não pensou duas vezes: pôs-se a correr, pois sabia que parte dele arrependia-se pela falta de coragem e tentava desculpar-se com grunhidos que ela ainda ouviu antes de desaparecer atrás de um aglomerado de barracos. Continuou correndo ainda por bastante tempo antes de sentir-se não tanto segura quanto cansada e resolvesse continuar caminhando.

Já haviam se passado várias horas desde que o sol estivera a pino, quando Seráfia finalmente sentou-se em um canto ermo e degustou sua primeira refeição do dia, apreciando cada bocado. Sua cabeça doía vagamente e sentia as costas alquebradas. Descansou alguns minutos e preguiçosamente pôs-se a caminho. O incidente a atrasara, mas já podia ver os muros da cidade a sua frente. Chegaria antes do anoitecer.

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