O Sonhador

Era o Estrangeiro, indubitavelmente. Como inúmeros na cidade, ele trajava uma capa acinzentada muito suja, com um capuz que escondia quase todo o rosto, mas Hoven podia ver seus olhos cor de ratazana e seus cabelos claros empoeirados do deserto. Tinha uma cicatriz funda que partia da sobrancelha esquerda e parava próxima ao maxilar. Não se lembrava de alguma vez ter visto olhar igual àquele: era alerta, desconfiado e uma chama muito viva brilhava nele. Aquela chama que faltava às pessoas do Mundo.

Ele sentiu um arrepio na espinha, um pulso elétrico perpassando-lhe o corpo quando o avistou. Era o estrangeiro que todos estavam esperando temerosamente, aquele que traria a Praga e a Guerra, do qual o clarividente prevenira o Imperador havia dois meses. Tentou gritar, alertar as pessoas e chamar os guardas, mas a voz não queria sair, o coração pesava como se fosse cometer um grande erro e os olhos do Estrangeiro queimavam nos seus com aquele brilho aquoso que lhe dava uma imensa vontade de chorar.

Então ele acordou em seu velho e surrado couro de camelo. O corpo coçando das picadas dos insetos - os redondos e lustrosos carrapatinhos pareciam ser as únicas criaturas que se alimentavam bem ultimamente. O sol ainda hesitava, espiando arredio pela borda do deserto; as pessoas aproveitavam, inconscientes, dos melhores momentos de seu sono e logo seriam arrancadas dos aconchegantes braços de Morfeu para a estafante rotina das fábricas. Mais tarde a sábia Alura lhe diria que, para a maioria deles, era "tudo a mesma coisa". Seu irmão, sempre revoltado com a situação marginal a que a família fora condenada, logo acordaria para o trabalho fora dos muros: era aquilo ou ter de abandonar a proteção do Imperador.

Àquela hora a temperatura ainda estava bastante agradável e Hoven decidiu levantar-se definitivamente. Tomou um grande copo de água da bilha, apreciando o frescor que ela adquirira com a noite. Colocou um pouco do pó de raízes em sua tigela e, aproveitando que o irmão dormia, pegou um naco da carne defumada que guardavam para o almoço.

O Mundo era grande, mas, maior que o Mundo era o deserto. Sentou-se à porta do barraco para olhá-lo. O mar de areia assustava Hoven tanto quanto o Imperador, mas ele nunca se cansava de espiá-lo: às vezes – só às vezes – no cantinho de sua mente, parecia que, para além do deserto haveria algo a se descobrir. Algo além das terríveis caravanas, das feras, do sol mortal, dos fanáticos e das psíquicas.

Sempre que alguém corria perigo era por causa das coisas que vinham do deserto. Era por isso que o Imperador não permitia que as pessoas se aventurassem fora dos limites do Mundo. Era por isso que os banidos ficavam satisfeitos em entregar, sete de cada dez partes do que colhiam ou caçavam para os impositores[1] – aqueles homens com longas baionetas que vinham toda semana coletar a parte devida ao Imperador do Mundo. Esse era o preço para que o exército voltasse os olhos para fora dos muros e para que todo banido tivesse acesso, três noites por mês, aos poços do Mundo.

Vez ou outra as caravanas levavam como escravo algum banido, mas, quando viam, os guardas não o permitiam. Já os fanáticos não eram uma grande preocupação: eles costumavam aparecer sempre que a Lua sumia do céu. Seus cavalos eram enormes, assustadores, maiores que os do Imperador. Nenhum banido era tolo o suficiente para ficar no caminho deles que, até onde Hoven sabia, só estavam interessados nas fábricas. Eles irrompiam da noite escura, os quatro da frente armados com foices compridas que, não raro, rasgavam a garganta dos guardas que lhes pulavam à frente. Entravam no Mundo como um vento de destruição e jogavam suas bombas nas fábricas.

Hoven nunca vira de perto, mas ouvira dizer que elas punham chamas em tudo, até mesmo nas pedras. Diziam que muitas pessoas morriam, mas as fábricas nunca paravam de trabalhar. Claro que nem todos os fanáticos que entravam nos domínios do Imperador conseguiam voltar para o deserto: o exército sempre derrubava um ou outro, que acabava pendurado nos muros para servir de exemplo para seus companheiros. Hoven achava que devia haver algum outro motivo para isso, porque, afinal de contas, os fanáticos não pareciam estar entendendo o recado.

As psíquicas eram mais raras, mas mais perigosas: todo mundo sabia como elas se pareciam, mas elas sempre vinham muito bem disfarçadas. Eram mulheres jovens, mais altas que a maioria das pessoas, as pernas grossas, os seios se desenvolvendo sem receio, os cabelos brilhantes, a pele de um negror resplandecente, como a carapaça de um besouro. Seus dentes é que geralmente denunciavam o disfarce: eles eram grandes, brancos e nenhum deles faltava. Diziam que elas eram descendentes dos antigos humanos, que viviam cem anos e que causaram a grande destruição. Fazia sentido: toda vez que uma delas era descoberta ou ficava aborrecida por qualquer motivo, as coisas pegavam fogo e explodiam.

Hoven pensava que, se algum dia encontrasse uma psíquica disfarçada, seria melhor fingir que não passava de uma mulher comum e tratá-la com amabilidade, ao invés de chamar os guardas – como eles recomendavam. Se ela não se irritasse, certamente iria embora sem causar danos.

Essas coisas todas lhe davam medo, mas não lhe entristeciam. Seus pensamentos, porém, insistiam em navegar por águas amargas e, sem qualquer motivo aparente, pensou em seus pais. Ele tinha apenas uma lembrança muito vaga do pai. Teria uns três anos quando ele fora executado por traição. Pela mãe soubera que, até então, viviam dentro dos muros da Fortaleza, um privilégio e ao mesmo tempo uma restrição de quem trabalhava próximo ao governante supremo - a Fortaleza era o melhor lugar para se viver e trabalhar, mas os que tinham tal sorte eram vigiados de perto pelos mercenários do Imperador para que nenhuma informação secreta saísse dos grossos muros esbranquiçados. Seu pai fora um desses mercenários, mas ele não sabia e, agora que a mãe falecera, nunca saberia qual fora seu deslize fatal. Ela sempre evitara falar sobre Naoru-kar, seu falecido marido. Com o tempo, o garoto aprendera a não perguntar sobre ele: doía demais ver-lhe o rosto riscado pelas lágrimas que ela nunca pode evitar. Seu irmão reagia a tais perguntas de uma maneira diferente, bem mais violenta. Zesten não suportava ter de encarar seus sentimentos e achava mais fácil quebrar coisas do que chorar. De qualquer maneira, Hoven pensava, de nada valia chafurdar o passado. Sua situação não iria mudar, não importa que histórias fossem contadas. Sua família, como as de todos os executados, fora banida da cidade e o mais próximo que ele podia chegar de sua antiga casa era quando tinha permissão para buscar água em um dos poços.

Enquanto comia sua farinha, mordiscando devagar o pedaço duro de carne defumada, o sonho veio-lhe novamente à cabeça. Aquilo era terrível. Chegou À conclusão de que deveria informar os guardas que o Estrangeiro estava por vir. Se ele sonhara, então era certo que não tardaria muito até que os mitos se concretizassem.

— Hoven?

Ele enfiou o restante da carne na boca antes de voltar-se para o irmão com um “Hum?”.

— Nada. Acabei de acordar. – Era um pouco difícil falar com aquilo escondido na bochecha.

Zesten­ era cinco anos mais velho que Hoven e quase dois palmos maior que o irmão. Seu corpo era quase tão franzino quanto o dele, mas ele aprendera cedo que uma atitude agressiva funcionava tão bem quanto a força física para manter os curiosos afastados. Ele se espreguiçou um pouco antes de levantar-se e o mais novo engoliu, não sem algum esforço, a carne mal mastigada.

— Zesten?

— Que é?

— Eu sonhei com o Estrangeiro.

O mais velho o olhou por um momento e, naquele instante, ele quase achou que o irmão podia estar interessado no que dizia.

— Tatze![2] E o que tem?! Você está com medinho do Estrangeiro, pequi Hoven? – Ele falseteava a voz, caçoando do outro sem disfarçar o gosto por humilhá-lo – Você tem medo de sonhar? Kyntta! Então não durma mais! Use esse tempo para procurar alguma comida, quem sabe você deixa de ser um inútil!

Agora ele tentava se lembrar porque diabos resolvera mencionar o sonho para Zesten. Seu irmão ficava mais amargo a cada ano que passava e sempre lhe lembrava de como deveria estar crescendo, mas que, ao invés disso, continuava um fracote que bem pouco o ajudava no trabalho. Hoven se sentia um pouco culpado: ele sabia que o irmão estava dizendo a verdade, mas não tinha a menor ideia de como poderia mudar a situação. O Oráculo lhe dissera que, se comesse mais, cresceria mais rápido, mas Zesten lhe dera uma boa surra quando lhe comunicou esse diagnóstico.

Zesten odiava o Oráculo com todas as suas forças. Na verdade, ele odiava tudo o que não podia entender e aquele homem enrugado como uma fruta seca, com os cabelos brancos como a Fortaleza era algo que simplesmente ninguém entendia. De qualquer maneira, Hoven gostava da companhia do Oráculo. Ele contava histórias assustadoras sobre os Antigos e o garoto às vezes tinha sonhos bastante ruins com elas, mas, de qualquer maneira, ele gostava de ouvir aquela voz rouca e paciente.

No começo da tarde, quando voltava com o primeiro cesto de ovos para casa, ele resolveu desviar-se um pouco de seu caminho e passar em frente ao barraco do Oráculo. Curiosamente, parecia não haver ninguém por lá. Isso era raro: os banidos vinham de todos os lados para vê-lo, os mercadores das caravanas nunca deixavam o Mundo sem falar com o velho e ele próprio já vislumbrara por debaixo de longas capas, dezenas de botas, daquelas que só as pessoas de dentro dos muros costumavam usar.

“Vou só dizer olá”, pensou, respondendo à sua própria consciência, que lhe dizia que deveria voltar logo, ou Zesten se zangaria.

A residência do Oráculo era a mais rica de todo o derredor do Mundo. Ele tinha bons couros e tecidos para dormir sem sentir o frio do deserto, sempre tinha boas comidas e uma vez mostrara a Hoven um compartimento secreto, onde mantinha água armazenada em uma máquina estranha. Aliás, ele tinha muitas coisas mecânicas, a maioria das quais o garoto não sabia bem para que serviam. Ele mesmo as fazia.

— Tardis bons, Oráculo-Kar!

— Tardis bons, pequi Hoven. Não foi com seu irmão hoje? – Ele ergueu rapidamente os olhos para o garoto, ajeitando um par de óculos de lentes grossas com o dedo indicador, ao mesmo tempo em que apertava os olhos de uma maneira tão exagerada, que fazia-lhe o lábio superior erguer-se, mostrando a gengiva desdentada.

— Vim descarregar o cesto.

— Hmmm...

Houve um momento de silêncio. O Oráculo mexia com uma série de vidros arredondados e não pareceu nem um pouco intrigado com a presença do garoto.

— Eu sonhei com o Estrangeiro hoje.

— Eu sei. Muita gente sonhou. – Ele continuou mexendo com sua engenhoca – Eu também.

— Então... Então é verdade?

— O quê, filho? – O velho finalmente levantara os olhos azuis para o garoto, repetindo seu gesto de ajeitar os óculos sobre o nariz.

— Que... – Ele não queria ter de pronunciar aquilo. De alguma maneira, parecia que, se falasse, teria mais chance de acontecer. – Que... Ele... Ele vai chegar...

— Sim, é verdade. – Ele fez um gesto afirmativo com a cabeça e voltou a atenção ao que fazia.

Hoven ficou petrificado. Sentiu a traqueia contrair-se e o estômago retorcer-se com o pavor. Todos sabiam que nada pior poderia acontecer. Todos sabiam que o Estrangeiro iria trazer uma praga que obrigaria todos a abandonarem suas vidas, que traria a morte a tudo que conheciam e sangue, muito sangue seria derramado. Dizia-se que nada, absolutamente nada poderia detê-lo.

— Precisamos avisar os guardas... – A voz de Hoven saiu num sussurro rouco, fruto de um imenso esforço para por as ideias em ordem.

— Aos guardas? Claro que não, pequi!

— Mas ele vai matar todo mundo! – Agora ele quase gritava, em um tom incerto e choroso.

— Hoven, você sabe que somos proibidos de falar do Estrangeiro. – O garoto tentou argumentar, mas o Oráculo ergueu uma mão, impedindo-o. – Veja, os guardas fingem que não ouvem os banidos comentando porque não querem ter muito trabalho, mas ir falar direto a eles já é abusar da sorte.

— Mas, Oráculo-Kar, se o Imperador souber que o Estrangeiro está vindo, pode m****r mais guardas... Pode nos proteger...

— Ah, Hoven! – Ele soltou um riso sarcástico que mais pareceu uma tosse – Você realmente acha que ter mais guardas é uma boa ideia? Enfim, escute: você não deve falar do seu sonho para ninguém e, muito menos, mencionar que eu também o tive. Estou falando sério, pequi! Se você disser, eu negarei.

Ele tirara os óculos e encarava o garoto com firmeza. Os olhos quase cegos do Oráculo tinham uma certeza ímpar e o garoto não achou ânimo para contrariá-lo. Ele continuou:

— Alguém já falou ao Imperador sobre a chegada do Estrangeiro, antes que qualquer um tivesse ouvido sobre ele. Isso foi antes que eu estivesse aqui, mas eu soube, eu pude sentir a incredulidade de Lucen-Kar quando o Imperador o declarou um traidor. Você sabe de quem eu estou falando, não sabe? Sabe o que houve com ele?

Hoven apenas balançou a cabeça, negando.

— Ora... O nome dele foi proibido, mas é claro que todos ainda falam do Clarividente! Ha! Então você não sabia... – Ele empurrou o alto do nariz com o indicador e apertou os olhos exageradamente, sem notar que estava sem os óculos. – Bom, aí vai: Lucen-Kar era um clarividente, como eu. Ele vivia muito bem na Fortaleza, sim, sor! O antigo Imperador gostava dele porque sempre sabia o que aconteceria. Porque, Hoven, não basta espiar atrás da porta do tempo: você tem que entender o que vê. Lucen-Kar entendia. Então o velho Imperador morreu e o Imperador que você conhece subiu ao trono. Ele era ainda bem jovem, como seu irmão é, e queria fazer muitas coisas diferentes. Um dia, o Clarividente lhe disse que um estrangeiro viria destruir o que ele construiu, viria como um vento muito forte, que traz mudanças drásticas e morte. É, foi mais ou menos isso que ele disse... Ah! E também falou em vingança. Foi isso que deixou o Imperador irritado. Ele respondeu que ninguém poderia querer se vingar, porque ele era um soberano justo e que suas ordens eram a lei. Qualquer um que as contrariasse estaria cometendo um crime e, portanto, seria punido, pois assim é a Justiça. Disse que não há lugar para vingança quando há Justiça, portanto, insinuar que alguém se vingaria era uma mentira. E que Lucen-Kar mentia para amedrontá-lo, para amedrontar o povo, que pensaria que seu Imperador seria fraco a ponto de sucumbir nas mãos de um criminoso e que o Mundo não era seguro.

Os olhos de Hoven estavam imóveis, pregados nos do Oráculo. Ele absorvia aquelas palavras como se fossem água fresca para um homem perdido no deserto. O velho apertou os olhos, revelando novamente suas gengivas nuas.

— Então o velho Lucen descobriu o que acontece quando as pessoas morrem. É isso aí, pequi. Eu apostaria minha carcaça que é por isso que o Imperador não tem um Clarividente. Eu sei que é por isso que ele não tem este clarividente. De qualquer maneira, ele não quer ouvir o que vai acontecer, ele quer ouvir o que gosta e pra isso ele já tem idiotas suficientes.

Seus olhos encontraram os de Hoven, que demorou alguns instantes para se livrar do encanto que as histórias tinham sobre si.

— Agora vai. Eu não preciso de talento nenhum pra saber que seu irmão vai lhe dar uma sova se você demorar. Eu espero que você tenha entendido o porquê de não espalhar essa conversa sobre o Estrangeiro.

— Entendi! – Ele falou apressado, enquanto saía correndo em direção a sua casa.

[1] Impositores: assim são chamados os coletores de impostos no Mundo.

[2] Tatze: uma expressão de contrariedade, o equivalente a “droga”.

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