A Mandrágora na Areia
A Mandrágora na Areia
Por: Domi Milani
O Crononauta

Sentia os olhos arderem enquanto se abriam com alguma dificuldade. O ar parecia impregnado de uma estranha acidez e Andreas demorou ainda mais alguns segundos para se dar conta de que não estava acordando atrasado para o trabalho. Uma forte expectativa contraiu seu estômago com uma agradável dor. Seu coração saltou no momento em que se deu conta de que espécie de torpor se recuperava e antes que houvesse terminado de abrir os olhos, um arrepio de esperança percorreu-lhe a espinha.

Como estaria o CERN agora? O que não saberiam seus colegas do futuro?! Oh, infinito! A tecnologia, o conhecimento, os novos costumes, e... e o SEU nome numa reluzente placa dourada! Tudo isso passou-lhe num raio pela mente. Ele sabia que havia vencido! Sabia que sua pesquisa estava correta e que sua máquina funcionara como esperado. Claro, havia aquela minúscula partícula de dúvida, mas ela estava tão fundo agora! Tão escondida que não foi capaz de manifestar-se naquele despertar dolorido e glorioso.

Havia um odor persistentemente ácido que lhe secava a traqueia enquanto ele tentava focalizar a visão. Pela primeira vez lhe ocorreu que sua sala poderia estar sendo usada para qualquer outro experimento... Seu corpo parecia pesado e seus ossos reclamavam mesmo dos movimentos mais lentos. Hey, havia algo em sua boca! O físico tocou com a língua pedaços duros e lisos que, em seguida, cuspiu na mão, percebendo logo de imediato o que eram: a gengiva estava nua e seu tato não negou que entre seus dedos encontravam-se todos os seus trinta e dois dentes.

Engoliu em seco. Sentindo a tensão crescer, hesitou ao levar a mão à cabeça e percebeu, numa crescente onda de desespero, que dela pendiam fios ralos e muito longos e que inúmeros deles simplesmente se deixaram ficam enroscados entre seus dedos quando ele os levou até perto dos olhos, que, então soube, não voltariam a encontrar o foco ideal da visão. A bruma que toldava as formas e suavizava incomodamente os contornos tinha origem nos cristalinos enrijecidos pela... pela... Ele não podia pensar nisso! Sua mente se recusava a tocar essa hipótese! Não, não fazia sentido! Ele não poderia suportar que fizesse sentido! A onda de desespero agora era um tsunami pronto a quebrar-se no porto da sanidade.

Ele não podia ter envelhecido.

Seu grito ecoou fraco e rouco nos dezesseis metros quadrados de fibra de carbono que o protegiam do calor gerado pela viagem temporal, mas que não puderam impedir que o tempo passasse no interior da cabine da mesma forma como passou no exterior.

Andreas contava agora exatamente mil e vinte e nove anos, dois meses e três dias. Há mais ou menos um milênio e um lustro, o então jovem fora admitido como estagiário no Centro Europeu de Pesquisa Nuclear, trabalhando com pesquisas na área de física teórica. Sua empolgação e genialidade, porém, lhe renderam uma parceria não-oficial com seu orientador, numa viagem experimental pelos grandes tratados sobre o tempo e o universo. A sala do orientador logo se transformou num arremedo de biblioteca hawkiniana e, despertando interesse geral da comunidade científica local, algumas poucas salas foram anexadas formando um pequeno complexo de estudos do tempo. A cada passo dado, o domínio sobre as trilhas que conduziam ao futuro e ao passado aparecia mais nítido e palpável, culminando na decisão de construir a câmara, apoiada e financiada por, pelo menos, meia dúzia de milionários lunáticos.

E aí estava o resultado: o projeto era um completo sucesso. As viagens no tempo era agora comprovadamente possíveis e realizáveis. Mas Andreas acabara de descobrir que, ironicamente, ninguém, nem mesmo seus entusiásticos patrocinadores, iria querer desfrutar da nova tecnologia.

Mas ainda existiam perguntas a serem respondidas: quantos anos havia viajado? Obviamente não seriam os mil anos que havia programado para o teste, do contrário, não teria sobrevivido, já que o tempo era inexorável para o corpo humano. Qual seria sua idade agora? Cento e vinte, aproximadamente? Era provável... Menos que isso, ainda teria alguns de seus dentes. Qual seria a consequência da volta a seu tempo? Se a constituição celular não ignorava a passagem do tempo, mesmo que acelerada, como reagiria ao seu retrocesso? Parecia-lhe risível pensar que seus sistemas se regenerariam... Seria possível que envelheceria os anos da volta? Talvez o tempo fosse como um caminho: não importa com que velocidade você o percorra, mas sim a distância percorrida. Se assim fosse, sabia que não sobreviveria à volta.

Respirou fundo, o coração pesado pela aparência realista da teoria recém formulada. Se não iria sobreviver à viagem de volta, que assim fosse. Não ia perder, porém, mais nenhum minuto em divagações, fossem elas fundamentadas ou não. Existia, fora da pequena cabine, todo um mundo novo para ser descoberto e ele supunha que havia, pelo menos, noventa anos de história para conhecer. Precisaria de uma bengala, provavelmente, mas isso era o menor de seus problemas. Talvez as coisas nem fossem tão ruins, levando-se em consideração a rápida evolução da medicina... Poderia recuperar parte de sua visão e conseguir remédios para as dores que sentia pelo corpo.

Havia, porém, um outro senão: a questão da movimentação do planeta com o passar dos anos. Alguns seriam irrisórios no período de um século, outros, talvez, pudessem deslocá-lo um punhado de metros. Sem contar o movimento de translação e rotação, que poderiam tê-lo perdido no espaço... Tinha configurado a máquina para exatamente mil anos à frente, calculado a variação do tempo formal e tudo o mais de forma que esses dois movimentos planetários mais rápidos não o tirassem da atmosfera, mas, se não havia se passado seu pretendido milênio, quem garantiria que não estaria do outro lado do mundo? Podia ver que não estava no espaço e isso era bastante sorte.

Respirou fundo, destravou a porta e abriu-a, sentindo um nó no estômago.

Não estava mais no CERN, isso era claro. Não podia, porém distinguir qual era a hora do dia, pois o céu era de um amarelo sulfuroso e, apesar da visão ruim, ele pode perceber que havia uma fina névoa permeando o ambiente. Era dela o cheiro e a acidez que primeiro sentiu ao acordar. E fora da cabine, eles eram bem piores. Parecia estar numa rua de terra batida entre enormes construções de pedra. As altas chaminés tentavam tocar o céu, como num arremedo de mal gosto de uma catedral gótica. Elas fumegavam furiosamente seus gases negros e havia um ruído constante de grandes volumes metálicos se chocando. Vários metros à frente, Andreas podia perceber uma grande movimentação de pessoas e máquinas barulhentas. Concluiu que se encontrava nos fundos de uma grande fábrica. Fechou cuidadosamente a porta de sua cabine, e, apreensivo, constatou que o reservatório de combustível havia rompido e agora estava vazio. Obviamente tinha estado desacordado por tempo suficiente para o gás vazar todo pela grossa rachadura. De qualquer forma, a melhor ideia ainda era descobrir que tipo de mundo era a Terra agora.

Confirmou, sem qualquer surpresa, que estava certo ao calcular a dificuldade em andar. Suas costas insistiam em fazê-lo olhar o chão e seus joelhos rangiam dolorosamente a cada passo. Apoiou-se, porém, nas paredes e prosseguiu em direção às pessoas sem prestar mais atenções ao seu incômodo corpo. Conforme o vozerio se aproximava, os muros em que se apoiava iam se tornando mais baixos e quando finalmente saiu daquele beco, surgiu um grande portão de ferro fundido, que o permitiu observar a fachada da construção. Eram, pelo menos, cinco andares de janelas minúsculas protegidas por mais grades férreas. Ao centro, uma enorme porta, também metálica, garantia o acesso principal a o que quer que ocorresse lá dentro. Produziam adubo químico, talvez? Havia uma meia dúzia de pessoas muito atarefadas dentro das grades, todas muito sujas, com calças marrons e camisas muito surradas. Alguns usavam chapéus que o lembraram dos filmes de far west que assistia quando criança. De fato, mesmo as roupas tinham alguma semelhança. Que maldito lugar seria aquele, afinal? Em que canto do planeta caíra?

Na rua em frente, as pessoas passavam apressadas. As mulheres se vestiam de maneira bastante antiquada, também, com corseletes e saias compridas de um tecido que parecia um algodão rústico. Algumas eram tingidas, em geral de tons avermelhados e terrosos, mas havia uma ou outra cor-de-uva. Muitas pessoas usavam estranhos óculos escuros de grossas armações metálicas, presos à cabeça por tiras de couro. Os sapatos eram todos botas escuras de solado baixo presas com cadarços. Instintivamente, examinou suas próprias vestes: seu jeans estava bastante puído, mas sua blusa de tecido sintético pouco havia se desgastado. Seus sapatos estavam prestes a perder o solado, já que a cola ressecara completamente. O crononauta riu-se ao figurar um velho barbudo como um Merlim de jeans e All Stars, mas não pensava em adquirir aquelas roupas peculiares dos nativos. Observando o fraco desenvolvimento tecnológico e social, cogitou estar na China ou em algum país africano, mas a maioria das pessoas era clara demais para ser africana e ele não vira olhos orientais entre os que estavam descobertos. Não conseguia concatenar a realidade que seus olhos dificultosamente captavam com a ideia de que cem anos haviam se passado desde que vira grandes obras da ciência, como sua própria máquina do tempo ou seu também querido LHC, em cuja construção trabalhara ativamente.

Ouviu um barulho de pequenas explosões em série junto de um alto ranger de metais e procurou de onde viria aquele som súbito. Logo virou a esquina uma máquina que parecia ser um arremedo de carro. Parecia-se muito com os primeiros carros da história, com três grandes rodas que pareciam de bicicletas, a posterior comandada por um volante em forma de meia-lua e os escapamentos verticais localizados atrás do banco do passageiro soltando uma fumaça muito negra. As pessoas abriam caminho profundamente admiradas pela estranha máquina e seu condutor ainda mais peculiar. Andreas se lembrou de Rhett Butler e seu indefectível bigodinho dândi, com o cabelo penteado para trás e um queixo proeminente. Ele também usava um daqueles estranhos óculos escuros, mas trajava uma espécie de sobretudo de algodão tingido de um vermelho muito brilhante. Deveria ter acabado de sair da loja. Seu chapéu parecia uma mistura de cartola e boné e era ornado com um pequeno arranjo de penas marrons. Algumas pessoas se curvavam a sua passagem, como se fosse uma espécie de nobre e umas poucas acompanhavam o carro parecendo pedir alguma coisa. De qualquer maneira, "Rhett" seguiu seu caminho sem parecer perceber ou se importar com qualquer coisa.

Aquele lugar parecia-se cada vez menos com a Terra do futuro que todos imaginavam. Teria voltado no tempo? Não era exatamente um conhecedor da história, mas aquilo tampouco se parecia com qualquer época passada. Não era o reino de Vitória ou o novo mundo na América. Não conhecia quase nada da história oriental, mas sabia que eles deveriam ter os traços característicos há muito tempo. Estava receoso de andar pelas ruas. Aquilo não era o que ele esperava encontrar e, obviamente, ele também não era o que AQUILO esperava encontrar. Procurou esgueirar-se discretamente, sempre apoiando-se às paredes. Algumas pessoas o observavam sem disfarçar a curiosidade e outras simplesmente o ignoravam. Os prédios eram muito próximos uns dos outros, a maioria feito de pedras com portas de metal. Alguns tinham portas de couro e outras ostentavam uma pintura avermelhada bastante desgastada. Não demorou muito para estranhar o fato de haverem poucas coisas de madeira e praticamente nenhum vidro nas janelas. Observou, porém, que os objetos de barro eram bastante populares, assim como aquele rústico tecido que ele supunha ser de algodão.

Viu uma espécie de restaurante, em cuja área fronteiriça várias pessoas comiam. Observou que a maioria comia estranhos insetos negros num espeto. Seriam mesmo insetos? Sentiu-se enojado. Queria falar com alguém, precisava de ajuda com sua velhice, de combustível para voltar e algo com que pudesse consertar o tanque, mas a cada passo a esperança de encontrar essas coisas parecia mais insana. Sabia que talvez estivesse em uma região pobre e que, se encontrasse o centro da cidade talvez o cenário melhorasse, mas tinha muito receio de iniciar um contato com quem quer que fosse. Sem contar a implacável probabilidade de que ninguém lá pudesse compreender as línguas que dominava.

Alguns minutos de árdua caminhada lhe disseram que estava na área central da cidade. Os estabelecimentos comerciais escasseavam-se dando lugar a toscos casebres, que, a cada metro pareciam mais terem sido feitos com qualquer coisa que fora encontrada. Nas paredes haviam muitos tijolos quebrados, pedaços de concreto reaproveitados... Havia até mesmo uma antiga televisão fazendo as vezes de janela! Mas era engraçado como elas pareciam seguir um certo padrão, com uma porta encimada por um toldo – quase sempre em frangalhos, uma janelinha à direita e o telhado em ângulo reto com as paredes. Obviamente não estava em nenhum lugar da Terra que fosse vítima de grandes nevascas, do contrário a população já teria aprendido a fazer telhados em formato de “A”. Não podia interpretar o clima da região por apenas algumas horas de observação, especialmente porque não era um especialista no assunto, mas o lugar não parecia gozar de muita umidade no ar. Podia excluir, sem grande margem de erro, a possibilidade de estar numa área tropical, o que ele julgava confirmar-se pela ausência de vegetação. Pensando bem, além de alguns ramos secos e raízes no mercado, não vira nenhum sinal de plantas. Isso já lhe dizia um bocado sobre sua localização. Poderia estar no Oriente Médio... Isso explicava a pobreza da cidade, a falta de traços orientais ou da pele negra. De fato, vira bastantes pessoas com a pele bronzeada como a dos gregos... Os desertos deviam ter tido seu clima reforçado pelo aquecimento global no último século.

Defronte às casas, várias crianças brincavam, todas descalças, com roupas bastante surradas, seus cabelos queimados pelo sol e seus corpos mirrados pela má nutrição. Sentiu pena daqueles pequenos, mas eles pareciam não se importar com suas mazelas, simplesmente corriam, gozando da verdadeira liberdade que só aos que ignoram o mundo pertence, rindo como os pardais gorjeiam. Um garotinho estacou ao avistá-lo, os curiosos olhos fixos em sua longa barba branca. Andreas sorriu e o menino simplesmente voltou a brincar.

Ele já não pensava mais na cabine que ficara para trás, a ânsia pelas descobertas o levava para as fronteiras daquele lugar. Havia poucas casas agora e muito espaço entre elas. Reparou que, nas áreas mais sombreadas ao redor daquelas construções cresciam pequenos arbustos de folhas vermelho-arroxeadas e logo descobriu sua causa: lá perto havia um grande poço onde uma pequena multidão se aglomerava. A água era evidentemente escassa, mas ao mínimo sinal dela as plantas teimavam em crescer. Continuou seu caminho desconhecido, porém, sem despertar a atenção das pessoas, que estavam muito preocupadas em conseguirem seu quinhão do precioso líquido. Algumas dezenas de metros depois, as casas finalmente acabavam. Era uma comunidade bastante diminuta. À sua frente, tinha agora uma pequena subida, que acabava numa espécie de falha geológica. Quinze minutos de caminhada permitiam-lhe ver, embasbacado, que aquilo não era apenas um grande buraco formado pelo movimento das placas tectônicas e que, tampouco, havia deixado a área da fronteira franco-suíça.

Aquilo, isolando a cidadela, cruzado agora por uma patética ponte de madeira e ferro, no meio de toda aquela rusticidade, era o seu LHC. Ele não poderia ter dúvidas, ajudara a construí-lo, conhecia cada centímetro do colisor de partículas, repassara cálculos e cálculos necessários para trazê-lo à realidade. E agora ele estava lá, apenas seu cadáver decadente, repleto de poeira, ferrugem e entulho. Mas como a maior máquina do mundo havia sido trazida à superfície - ou, mais provavelmente, como a superfície havia sido rebaixada até ela - era uma questão deveras intrigante. Em algumas partes ela estava mais de cem metros sob o solo. Não pôde deixar de caminhar até a ponte. Apesar dos pesares da velhice, precisava prestar as homenagens póstumas aos restos inúteis daquele que vira crescer e cumprir seus desígnios.

A ponte era toscamente construída, como algumas poucas que ele pisara quando criança nas propriedades rurais em que visitava durante as férias. Esta, porém, tinha dimensões bem mais ambiciosas. Com uma certa apreensão agravada pelos rangidos das junções das peças e pelo balançar incerto que seus movimentos provocavam, Andreas chegou ao primeiro quarto da insegura construção. De lá, podia observar uma considerável extensão da cidade – ela se estendia por vários quilômetros além daquela ponte. A paisagem parecia-se com uma foto muito antiga, embaçada por sua visão deficitária e pela atmosfera poluída, ela era pintada em tons de marrom, preto e um branco tão sujo que quase não podia ser assim chamado. As ruas tortuosas e estreitas permeavam aglomerados de casas desaprumadas e terminavam em grandes construções cinza fumegantes. O que tanto se produziria naquelas fábricas? Havia um número um tanto exagerado delas em comparação ao tamanho da cidade. Bem ao centro do anel que formavam os túneis do Colisor havia uma grande fortaleza de muros esbranquiçados. Era maior que vários dos povoados que outrora estiveram naquela área.

Distanciando-se da fortaleza, as casas ficavam mais espaçadas e menores. Com um pouco mais de caminhada, avistou uma estranha movimentação em direção a uma extensa tenda arredondada, toda de um tecido que outrora fora tingido de vermelho escuro. Ao seu redor havia uma cerca e nos fundos pequenas barracas se erguiam. Um circo?

Desprovido de um norte, Andreas apenas intuiu uma íntima e despropositada vontade de seguir até lá. Sem motivo para não fazê-lo, apenas retomou o caminho que já fizera, da mesma maneira lenta e cambaleante que agora era tão sua, e rumou para a peculiar construção.

O céu de enxofre ia se tornando mais e mais escuro e a Lua se destacava como um enorme círculo fosforescente. Ela aparecia grande como aquele novo idoso jamais vira, poderia dizer, sem muita dúvida que o satélite aproximara-se da Terra nos anos passados. À frente da grande tenda que avistara da ponte, luzes avermelhadas e tremulantes surgiam formando um semi-círculo. Ainda mais pessoas juntavam-se no local e, com um aperto no peito, questionou-se mais uma vez até que ponto seria seguro e vantajoso falar com alguém. De qualquer maneira, não duraria muito tempo vagando sozinho naquele lugar que já não era mais sua pátria.

A estrutura da tenda não era grande, mas impressionava pela estranha e suntuosa decoração, tão contrastante como o visual simples e desanimado da cidadela. Nas bandeirolas que pendiam da cobertura, haviam estrelas de seis longas pontas formadas por inúmeros cacos de espelhos que faiscavam festeiros à luz das altas tochas, das quais pendiam múltiplas fitas coloridas. Um homem de feições atrevidas e jeito espalhafatoso falava alto e incessantemente sobre as atrações. Andreas descobriu, não sem grande alívio, que podia entender a maior parte do que ele dizia, mesmo alguns neologismos eram-lhe compreensíveis ou, pelo menos, soavam familiares, embora algumas outras palavras fossem totalmente estranhas à seus ouvidos. Tinha um bigode farto e sobrancelhas no mesmo estilo, uma delas encimando um tapa-olho muito preto. O outro olho, o que estava à vista, era de uma bela cor de mel muito clara e transparente. Era engraçado como suas roupas imitavam as de um antigo lorde inglês que houvesse passado uma semana sem tomar banho depois de cair numa poça lamacenta enquanto cavalgava. Trazia uma jaqueta vermelho-escuro muito desbotada sobrepondo-se a uma camisa branco-suja arrematada por um lenço preto amarrado pomposamente no pescoço. Ao peito, trazia diversos ornamentos de um metal de aparência enferrujada que lembravam-lhe sua infância, as insígnias de entulhos que os pequenos generais usavam em suas brincadeiras de guerra. Suas calças, do mesmo tom da camisa, estavam vestidas por dentro de botas marrons de amarril, iguais às que vira nos pés de praticamente todos os que estavam calçados, eram apenas mais longas, chegando quase até os joelhos. Tinha os cabelos ralos, à altura dos ombros, prendidos em um irrisório rabo-de-cavalo castanho-claro que se esgueirava por baixo de um daqueles chapéus híbridos de cartola e boné, que vira anteriormente na cabeça do "nobre Rhett". Nas mãos, balançando no ar enquanto falava, trazia uma bengala cor de ouro envelhecido adornada com penas amarradas em cordinhas de couro, objeto, este, que o cientista inconscientemente invejou.

As pessoas adentravam as cercas com os olhos maravilhados e nem se deram conta do velho crononauta que, se mesclando à pequena multidão, as acompanhou até a Gran Tente des Maravís - conforme dizia o tabuleiro na entrada. A ampla construção de pano e estacas estava abarrotada de curiosos, a atmosfera abafada e extremamente quente com o calor das pessoas, das lamparinas e do Sol, que mesmo invisível àquela hora, nunca se deixava esquecer. Aquele era um daqueles circos de horrores que ele julgava extintos há muitas décadas. O apresentador falara sobre galinhas de três cabeças, gêmeos xifópagos, criaturas com cem olhos, besouros gigantes, homens-lagartos... Ele sabia que aquilo era, no mínimo, noventa por cento de fraude, mas seguiu a multidão quando a primeira cortina se abriu.

Houveram alguns gritinhos agudos - as mulheres nunca perdiam essa mania, algumas exclamações de espanto, outras de medo e mesmo algumas de indignação. Andreas não precisava de mil e vinte e nove anos para saber que o populacho era mesmo, geralmente, bastante impressionável. Obviamente se tratava de um trabalho de taxidermia razoável, como ocasionalmente apareciam em sua época. Esperou que o povo dispersasse da frente daquela redoma para poder se aproximar. Demorou vários segundos para conseguir, naquela iluminação precária, focar a visão no que estava dentro do vidro, mas seu esforço não foi vão: O lagarto tinha uma enorme cabeça repleta de olhos. Piscando. Refletindo a luz das lamparinas enquanto sua língua saía a intervalos quase regulares da pequena boca e alternava a posição erguendo ou abaixando algumas de suas SETE patas. Aquela criatura estava viva. Não era um trabalho de taxidermia, nem mesmo - retrucou seu próprio questionamento - de robótica. Aquilo era uma obra prima da radiação nuclear.

Aí então tudo ficou claro.

Aquela Terra absurda, aquele ar asqueroso, aquele calor, a falta de tantas coisas que pareciam simplesmente nunca ter existido... Então era esse o resultado da guerra nuclear.

Seu coração contraiu-se num pesar hediondo. Sentiu uma vertigem e teve de apoiar-se no móvel que suportava a gaiola vítrea do animal. Seus olhos arderam, mas era algo que vinha de dentro. Não podia ser verdade. Ele não queria que fosse. Não... Mas ao lagarto seguiram-se meia dúzia de seres humanos com as mais abomináveis mutações, animais que mal podia saber o que eram. Todos vivos, todos reais! Alguns ele até podia tocar! Alguns conversavam entre si, alguns choramingavam!

Andreas não pode mais conter as lágrimas. Tantas vidas dedicadas a um conhecimento tão precioso, um conhecimento tão distante, tão raro... E veja só o que trouxemos. Sentou-se no chão de terra batida, o rosto entre as mãos e entregou-se. Chorou copiosamente o infeliz destino de suas pesquisas, fadadas a cair nas mãos dos grandes chefes de Estado, sua próprio condição decrépita, suas chances irrisórias de retornar à sua casa e tudo que isso pudesse representar. Fora condenado a viver num mundo que a ambição criara, mas que apenas a sua ciência tornara possível.

Um toque leve, porém firme em seu ombro o tirou de seus lamentos.

— O que houve? – a voz do mestre de cerimônias ecoou suave e curiosa.

Andreas levantou o rosto e encarou o rapaz, sem saber o que dizer. É, aquilo colocava um ponto final na sua hesitação em entrar em contato com as pessoas.

— Está tudo bem? – Seus olhos chamejavam com as lamparinas. Havia admiração e curiosidade neles.

— Sim... – Pela primeira vez escutou sua nova voz. Era rouca. Era a voz de um velho.

— O que aconteceu com você? Você é de Grantura mesmo?

— Grantura? É esse o nome deste lugar?

— Sim. Você não é daqui?

— Não – Ele era. Nascera em Meyrin e nunca tivera vontade de deixar a cidade. Mas aquilo não era sua casa. – Eu estou tentando voltar para casa. Eu preciso de um médico, de remédios para dor, de uma bengala e de combustível para minha máquina! Onde posso encontrar?!

- Acalme-se. Eu não estou entendendo muito bem o que você está precisando, mas vamos, levante-se. Vou lhe dar algo para beber e conversaremos melhor. Meu nome é Oheyn e o seu?

— Andreas.

Oheyn ajudou-o a levantar-se e guiou-o até uma espécie de sala de contabilidade. Havia uma pequena mesa de madeira escura e uma cadeira do mesmo material, ambas bastante e belamente trabalhadas. Sobre a mesa havia uma pequena máquina com números metálicos, que Andreas supôs ser uma calculadora. Alguns papéis grossos e amarelados com desenhos de aberrações dividiam o espaço com canetas douradas e um recipiente manchado de tinta preta. No chão havia um tapete de lã trançada muito surrado, uma grande poltrona num estilo semelhante ao vitoriano ficava sob uma bela lamparina encaixada num alto pedestal. Defronte, uma mesa de centro estava repleta de guloseimas acomodadas em recipientes de bronze e vidro colorido. A um canto havia uma estranha máquina com, aproximadamente, um metro e meio de altura, toda cheia de cânulos, com uma espécie de torneira na parte da frente. Haviam outras pequenas engenhocas aqui e acolá, algumas parecendo bastante delicadas, cheias de pequenas engrenagens e rodinhas. O recém-chegado admirou-se da destreza dos mecânicos-artesãos daquela curiosa época, imaginando que talvez houvesse alguma chance de conseguir consertar sua máquina do tempo, se não da forma como gostaria, talvez de alguma outra maneira.

O anfitrião sentou-se atrás da escrivaninha e ofereceu-lhe o lugar na poltrona.

— Andreas, correto? – o outro respondeu com um gesto afirmativo de cabeça – Bem, então você é um forasteiro e está machucado. É sua perna?

— Não. Eu não estou propriamente ferido e não é só a minha perna. Eu estou velho, provavelmente estou sofrendo de reumatismo, artrite, alguma coisa assim... Tenho muita dificuldade para andar, mesmo manter-me em pé é doloroso. Preciso ver um médico.

— Certo. – O rapaz tinha o cenho franzido – Entendo que esteja com dor, embora nunca tenha escutado falar nessas coisas como médico e as outras que você citou. Acho que você quer vinhos curativos, certo?

— É... Quem pode me indicar o melhor vinho curativo para minhas dores?

— Não se preocupe. Auna, minha filha, vai saber ajudá-lo. Mas, afinal, de onde você vem?

— Sou de um lugar chamado Suíça, já ouviu falar?

— Suíça... Suíça... Já... Já ouvi falar, sim... Mas não é da sua terra, era um lugar no velho mundo... Você sabia que há quase mil anos houve uma terra com o mesmo nome da sua?

— Mil anos?

— Sim, nunca ouviu falar da grande guerra que destruiu o mundo?

— Não... – então era isso, ele estava prestes a descobrir o que ocorrera

— Dizem que antigamente havia um povo muito perigoso vivendo aqui, eram humanos diferentes, que viviam quase cem anos cada, eles eram fortes e tinham grandes máquinas... Ainda existem restos delas por aí... Mas um dia eles resolveram guerrear usando todo o seu poder e quase tudo desapareceu. Haviam grandes construções, muito maiores que as nossas maiores fábricas... Eu sei que existiam, já vi os alicerces delas com meus próprios olhos. E você já viu a fronteira deste reino? Ele é chamado de Rhondom, o antigo anel, está aí desde o início de nosso tempo. Raras são as pessoas que já o percorreram. Algumas se aventuram dentro dele para conseguir peças. São restos muito ricos em material, mas muitos já morreram lá.

— O LHC... – ele estava perdido em seus pensamentos.

— O quê? Mas, me conte, lá na Suíça as pessoas tem cabelos blandes como os seus? É realmente muito peculiar... Já vi pessoas com cabelos amarelos claros, mas nunca tão blandes e tão longos!

— Como?! Nunca viu ninguém com cabelos brancos?

— Ora, não! Se você está em Grantura há algum tempo deve ter reparado que aqui não existem pessoas assim. Seu rosto, suas mãos também são muito diferentes... Eles parecem mais... Não são lisos como o meu, veja. – Oheyn esticou o braço.

— Eu estou com a pele enrugada por causa da minha idade... Quantos anos uma pessoa vive por aqui?

— Não sei... Uns trinta e cinco? Acho que já ouvi falar em alguém que chegou aos quarenta... Por quê? Quantos anos você tem?

— Isso depende. Há quantos anos você disse que o mundo antigo foi destruído?

Os olhos do mestre de cerimônias estavam arregalados e sua postura ereta demonstrava intensa curiosidade, mas ele se limitou a responder a pergunta.

— Quase mil anos...

— Você tem certeza? Não quer dizer cem anos? Cinquenta?

— Kyntta[1]! Meu avô nasceu há mais de cinquenta anos! Ele já contava histórias sobre a guerra e já tinha sido há quase mil anos... Grantura está aqui há mais de trezentos anos, que eu saiba. É um dos maiores reinos que conheço e eu já andei muito.

Seria possível que tivesse realmente viajado mil anos no tempo? Então, como podia estar vivo, se comprovadamente havia envelhecido cada dia? A não ser que não estivesse... Não, seria muito absurdo encontrar restos do LHC no inferno! Mais absurdo do que o próprio inferno. Trezentos anos? Também não poderia viver tudo isso...

— Eu não sei como vocês contam o tempo, mas eu sou um desses seus “antigos humanos”. Eu ajudei a construir o que vocês chamam de Rhondom. A gente o chamava de Grande Colisor de Hádrons.

Incredulidade e espanto se mesclavam no rosto do mestre de cerimônias da Gran Tente des Maravis. A boca semiaberta e a sobrancelha esquerda em desnível com a direita.

— Não acredita, né? Eu também não acredito que tenha mil anos. Ou melhor, mil e vinte e nove, porque eu tinha vinte e nove quando liguei a máquina do tempo. Não, vocês devem ter um sistema diferente de contagem de tempo. Mas, sim, posso ter uns cem anos... As pessoas da minha época às vezes atingiam essa idade. E sabe do que mais? – Andreas sentia que uma certa insanidade pairava no ar e que as coisas que dizia não passavam de delírios, que acordaria atrasado para o trabalho nos próximos minutos, com o rosto inchado e a boca seca, cambalearia até a cozinha em busca da cafeteira enquanto sua mente lhe explicaria que a dor no corpo que sentia no sonho era causada pela ressaca de um fim de semana agitado. – Meu país ficava aqui nesse lugar e era completamente diferente, fazia frio na maior parte do ano e sempre tínhamos neve. Grantura não passa de uma fantasia bizarra, um cruzamento de Inglaterra vitoriana com velho oeste americano e revolução industrial, tudo plantado no deserto do Saara! Eu sei que você não faz ideia do que isso seja, como não sabe o que é medicina e átomos e pizza, mas eu tenho que te dizer, colega, eu poderia ser rei por aqui, mas acabaria louco tentando por ordem em tudo isso! Não faço ideia do porquê de não ter morrido nessa viagem e não faço a mínima questão de conhecer esse futuro malogrado, eu só quero é voltar para casa e conseguir uma pensão do Estado para morrer em paz!

Oheyn parecia ainda mais abismado, mas, afinal, bizarrices não eram o seu ramo?! Encontrar um “elo perdido” não era uma coisa nada comum, não, sor! Maluco ou não, cem anos ou mil, aquilo seria uma ótima lufada de ar novo em seus negócios!

— Acalme-se, dellu[2]. – Ele se levantou da escrivaninha e, tomando um belo copo da mesa de centro, dirigiu-se à maior das máquinas na sala e, abrindo a torneira, encheu-o de um líquido incolor. – Tome. O calor às vezes nos põe confusos. Fique aqui, pedirei a minha pequi um pouco de vinho-elixir.

O gentil anfitrião saiu e Andreas, sentindo palpitações de nervoso tomou o conteúdo do copo. Era apenas água naquela horrível temperatura ambiente, mas ele se sentiu um pouco melhor. Nem se dera conta da sede e agora também se apercebia da fome que começava a manifestar-se. Felizmente Oheyn voltava acompanhado de uma jovem miúda, que obviamente era sua filha. Devia ter seus dez anos, mas havia comedimento e experiência em seus gestos. Tinha a pele bastante queimada, com muitas sardas nas maçãs do rosto e sobre o pequeno nariz. Seus olhos também tinham a fagulha de curiosidade dos do pai, mas seus cabelos eram belamente cacheados, de um castanho permeado de mechas queimadas pelo sol. Ela os trazia presos numa espécie de coque desarrumado, com muitas madeixas escapando. Tinha uma pequenina cartola púrpura presa um tanto de lado, uma delicada blusa em um tom róseo cheia de babados arrematada por uma espécie de colete-corselete de couro trabalhado. Sua saia, de muitas camadas cor de tijolo, era sobreposta por um grosso cinto à altura do quadril em que se atavam vários saquinhos de couro e alguns pequenos frascos de metal. Sua bota era curiosamente comprida, indo até acima dos joelhos, onde sua saia acabava na parte frontal.

— Notis bons, sor Andreas! Aqui está uma boa comida para dar-lhe força. Coma devagar, depois lhe darei um ótimo elixir de erva roja para que o cansaço e a dor de seu corpo desapareçam! – Sua voz não negava a pouca idade.

Ela depositou uma bandeja acobreada em seu colo. Três ovos, pouco menores que os de galinha estavam cozidos e cortados ao meio rodeando um purê arroxeado. Alguns pãezinhos integrais estavam em um prato secundário e uma pequena tigela trazia uma espécie de favas cozidas. Hesitante a princípio – passava longe do tipo “aventureiro gourmand” – não demorou muito a ceder à fome e entregar-se ao repasto. Não era nada ruim, quem quer que houvesse sido o cozinheiro, certamente era bom no que fazia.

A “pequi” Auna, como Oheyn a chamava, logo voltou trazendo-lhe um forte xarope cor de sangue à base de álcool. Sentiu a nuca esquentar como se houvesse tomado uma boa dose de conhaque de um só gole, e, em minutos, sua cabeça pareceu mais leve e suas preocupações mais distantes. As dores perdiam-se em meio à densa bruma do cansaço e Andreas sentiu que precisava de um lugar macio para deitar a cabeça. Oheyn gentilmente ofereceu-lhe um lugar em uma das várias carroças que estavam estacionadas ao fundo da tenda. Era como se fosse um quarto de madeira, de, aproximadamente, três metros quadrados sobre rodas. As duas janelas eram protegidas por barras de ferro e leves cortinas - um conjunto destas também protegia um canto com um buraco no assoalho, que o crononauta julgou ser uma latrina. Uma espécie de colchão – na verdade parecia mais uma almofada gigante e disforme – fazia as vezes de cama e foi bastante satisfatória para o corpo cansado do novo idoso.

— Boa noite, dellu! Não se esqueça de por um pouco de óleo nas engrenagens da máquina contadora, estou certo que é essa a solução para o problema.

— Sim, obrigado, Yerunko! Nos vemos amanhã!

A breve conversa tirou Andreas de seu sono perturbado e foram precisos alguns segundos para que ele compreendesse que o sacolejo de seu quarto era um novo hóspede entrando, enquanto a porta se fechava com um sonoro baque metálico, indicando que havia sido trancada por fora.

— Porque estão trancando a porta!? – perguntou com uma nota de desespero na voz.

— Acalme-se... Andreas?

— Sim. E você, quem é? Porque está aqui?

— Quando Oheyn disse que você seria nossa nova aberração, fiquei extremamente curioso em conhecê-lo! Você realmente é da era dos homens antigos? Imagino como deveriam ser encantadoras suas máquinas! Eu sou Yerunko, o “homo mechano”. Ele riu-se breve, mas gostosamente. É um prazer conhecê-lo, “elo perdido”! – A mão que seu novo colega de quarto colocou em seu ombro era fria, dura e pesada. E fez um inusitado e fino rangido quando ele dobrou os dedos. Ambos os braços de Yerunko eram esqueletos de metal, com exceção de, aproximadamente, quinze centímetros de carne humana nos quais eles eram atados com uma grossa tira de couro.

Boquiaberto, Andreas notou que uma de suas pernas também tinha o mesmo feitio, mas esse membro era completamente mecânico, unido ao corpo por uma espécie de roupa íntima de cobre que ficava-lhe sobre a calça de uma perna só. A face esquerda também tinha uma cobertura metálica que ia até onde seria sua sobrancelha e um círculo de vidro escuro ficava onde deveria ser seu olho. “Homo mechano” era um epíteto bastante adequado.

— As histórias sobre o antigo mundo me encantam! Como tecnófilo, sempre cogito que materiais teriam, que prodígios construiriam... Antes de Oheyn me trazer para a Tente des Maravis, eu era armeiro do imperador, mas sempre gostei de construir toda espécie de máquinas! Sei que você vai estranhar a falta de liberdade e lamento por sua sorte, pois passei muitos dias difíceis até me acostumar, mas meu lado egoísta se alegra de ter tal companheiro de confinamento.

— Confinamento? – Ele estava confuso. Não estava preso! Seu anfitrião tinha sido muito gentil e, apesar daquele estranho som de um grande cadeado se fechando na porta... – Você deve estar enganado, Oheyn está apenas me ajudando, e... – A voz morreu na garganta enquanto o reconhecimento da armadilha em que havia caído aclarava-se em sua mente.

— Não tenha dúvidas quanto aos benefícios da ajuda de Oheyn, não, ele é um bom homem! Mas entenda que, bem, ele não ia querer que suas aberrações o abandonassem, não é? Também fiquei transtornado quando soube que seria uma das atrações da Tente e que não seria livre para tomar outro caminho, mas depois percebi que isto era o melhor que podia ter me acontecido. Essas próteses, sor Andreas, fui eu mesmo que construí conforme meus membros iam se perdendo com a minha doença. Quando meu olho caiu, eu fui expulso de meu cargo no palácio e todos sentiam medo de mim, pois acredita-se que o mal do Nada é contagioso. Eu vivi com muita dor e passando fome fora dos limites do meu reino por vários meses até que a Gran Tente des Maravis chegou por lá. Naquela ocasião eu já perdera um antebraço, mas havia encontrado material para construir uma prótese, tanto para ele quanto para o olho. Foi então que Oheyn me encontrou, me ajudou e me transformou no “homo mechano”... Aqui tenho comida, tenho os elixires de Auna e, com o tempo, ganhei a confiança de nosso patrão e agora passo a maior parte do tempo fazendo o que mais me deixa feliz: construir novas máquinas. Você as deve ter visto na sala dele... Algumas, como o reservatório automático de água, nem mesmo os imperadores tem. Eu já nem ligo mais de me exibir para os curiosos que nos visitam, é como um pagamento simbólico que devo em troca da vida calma que levo. No fim das contas, sou muito mais livre aqui do que quando era armeiro e não tinha tempo para meus próprios projetos. E aqui ninguém se importa com o Nada. A mãe de Auna morreu disso e nem ela, nem Oheyn ficaram doentes, apesar de terem estado ao lado da mulher...

Andreas simpatizava com Yerunko. A paixão em sua voz quando falava de suas invenções era como a de seus colegas cientistas, quando discutiam a física das partículas, os espaço distante ou mesmo as viagens no tempo. Mas achava que o “homo mechano” devia sofrer de um estágio avançado da Síndrome de Estocolmo.

[1] Kyntta: expressão de espanto.

[2] Dellu: amigo.

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