Capítulo 2

Claro que qualquer um ficaria assustado com uma mensagem dessas, principalmente quando se tratava de vencer ou morrer. Mesmo assim, Dustin não sabia o que o nome de Henry poderia ter a ver com isso. Via a estranha expressão no rosto dos dois homens, parados um de frente para o outro, sem entender como essa luta poderia ser diferente de qualquer outra.

— Dustin, pode nos dar licença, por favor? — pediu-lhe o velho e, em obediência, Dustin foi para algum dos corredores. Lá, ele encheu o carrinho de livros para então passar de cela em cela, entregando-os aos presos para que se distraíssem.

Somente quando estavam os dois a sós, Gaemon demonstrou todo o nervosismo que sentia.

— O que eu posso fazer? — perguntou Henry. — Se eu revelar o meu nome no ranking, os que querem a minha cabeça me matam; e, se eu perder essa, eu morro aqui dentro.

— Então vença — falou Gaemon, convicto. — Mesmo assim, deveria saber que Jay, o Áureo, nunca lutou limpo. Se for o tipo de luta que estou pensando, então é melhor tomar cuidado.

— Então eu posso acabar perdendo de verdade, dessa vez?!

Na primeira luta em que Henry estivera, prestou atenção aos movimentos dos lutadores até o final. Porém, o que não imaginava era que o nome do vencedor sempre seria anunciado a todos, aparecendo num telão ao lado de sua imagem. Não gostaria de morrer ali, nem mesmo nesse momento.

Não sem antes conhecer o que havia lá fora.

— O que aconteceu depois da guerra? — Henry perguntou, curioso, ao mesmo tempo tentando desviar o assunto.

— A guerra dividiu o mundo em cinco reinos. Acredito que estejamos na antiga América do Sul, agora o Reino Yedraan — explicou.

Henry se lembrou de ver sobre isso em alguns dos livros de História dali. O governo mundial tinha feito um tipo de diário de guerra, e nele mostraram tudo o que acontecera por causa dela, que acabara com o que era conhecido como mundo antes. Na época, Henry havia lido rapidamente por conta da curiosidade, mas não estava tão completo assim para mostrar as conquistas dos reinos. Era provável que os ratos tivessem comido o restante das páginas, ou que os próprios presos as tivessem arrancado para si, por quaisquer motivos — quaisquer motivos mesmo. Observara o exemplar sobre a mesa e passara as páginas pelos títulos dos índices, vendo as coisas impossíveis que aconteceram.

Lamentou por não ter lido com toda a atenção necessária. Agora seria impossível saber o que esperar quando saísse de onde estava.

— Garoto, acho melhor você achar um jeito de viver, pois eles sabem sobre seu nome e sempre tentaram atraí-lo para a morte por causa disso. Se não desse jeito, de qualquer outro. Se não hoje, logo.

— É... Pela primeira vez me sinto sem saída. — Henry quis brincar, mas o tom sério em sua voz dizia o contrário.

Não sabia se a morte seria algo tão bom assim, apesar de acabar de vez com a sua vida e, finalmente, o libertá-lo daquilo tudo. Nem fazia ideia do que era isso que estava sentindo em seu peito, além de seu coração pulsando e seus pulmões trabalhando. Talvez isso fosse o que o velho chamou de esperança?

— Qual é o seu sonho? — O velho perguntou. E não esperava que fosse mesmo receber uma resposta. — Você é capaz de sonhar com “lá fora”, não é? — perguntou, olhando para o menino.

Henry olhou para o chão de pedra com palha e terra espalhadas, pensando no que o velho lhe dissera... Por um segundo, pôde enfim se esquecer das cicatrizes em sua memória.

Talvez não tivesse perdido tudo, afinal.

— Se eu vencer uma, vou ter que vencer muitas outras lutas em seguida. Viverei em guerra para sempre!

— É claro — concordou o velho. 

Coisa que Henry não queria de verdade. — Mas, preocupe-se mais com os dragões brancos. Você pode ser capaz de vencer quantos vierem, mas não são os presos quem você deve temer. Agora vá, já terminou por aqui. Ajude Dustin a carregar o carrinho. — Mandou ele, acenando para a porta. Era clara sua preocupação, mesmo que quisesse escondê-la ao máximo.

Henry saiu com o carrinho cheio de livros, como era o costume de muitas prisões antigamente. Livros de fantasia, ficção-científica, terror e outros milhares de gêneros literários estavam ali e, se perguntassem durante o longo ou pouco tempo que estivera preso, o garoto poderia dizer que lera todos.

Uma semana após sua chegada, conseguiu fazer algo que ele considerava ser loucura... Era loucura, realmente. Roubara a lanterna e as chaves do cinto de um dos guardas, quando estava entre várias cobaias, e esperou a noite seguinte chegar para sair da cela. Foi à biblioteca, esgueirando-se pelas sombras, sentindo o calor de quem estivesse nas celas próximas com seus poderes descontrolados, mandando sinais dos batimentos de seus corações e diversos pensamentos bombardeando sua cabeça.

Ligou a lanterna, torcendo para que ninguém o visse ou ouvisse, e andou procurando algo que lhe interessasse, passeando com as mãos pelas prateleiras das estantes e, finalmente, achando o livro que queria. Pegou e começou a lê-lo. Isso até ser pego.

Lembrava-se do momento em que conheceu o velho Gaemon, especialmente quando fora salvo por ele naquela hora, pedindo aos soldados — que queriam puni-lo — que o mandasse, às vezes, para ajudá-lo, e, como resposta, a biblioteca passou a ser seu melhor trabalho ali, já que odiava limpar aquelas armas antigas e enferrujadas com ratos mortos e outros cheiros estranhos. E Gaemon passou a ser o único em quem Henry confiava.

Naquela época, distante ou não, ele não pensava da mesma maneira que agora. Não imaginava que, a partir daquela ação — o roubo da lanterna e das chaves, assim como a invasão a biblioteca —, fosse obter coisas que se tornariam tão importantes para ele agora. Coisas que, talvez, pudessem significar sua fuga.

Sempre que passava com o carrinho por alguma cela, ouvia alguém falar com ele, desejando boa sorte ou torcendo para que tivesse uma morte menos dolorosa. Parecia não existir motivos para alguém dali, nos estados em que se encontravam, querer matá-lo por vingança.

Cada vez mais, Henry se convencia do que o velho lhe falara. Não são os presos quem você deve temer.

— Ei, Gransys! — chamou uma voz feminina eufórica, vinda de dentro de uma das celas. Era Aren. Ela parecia derrotada, desde que seu irmão, Vrad, havia desaparecido durante a rajada de tiros assim que foram presos, há tanto ou pouco tempo. Mesmo assim, sorriu ao ver Henry. — Boa sorte, tá?

Henry deu-lhe seu livro preferido, intitulado “Após o Último Suspiro”. Ela não se importou tanto assim com isso, apenas permitiu que ele caísse sobre sua cama de pedra e segurou as mãos do amigo com delicadeza, fitando seus olhos com preocupação, que se esforçava para não abaixá-los.

— Ei, eu não vou morrer... — ele disse.

— Mas e o ranking? Se você vencer, pode ter...

— Muita gente atrás de mim. 

Já sei. Isso não é o mais importante agora.

Henry percebeu que a garota estava ficando triste por ele, mas não havia nada a fazer. Engoliu em seco, apenas, ainda com suas mãos dadas às dela. Tão geladas... tão machucadas... mas, ao mesmo tempo, tão capazes de fazer o resto do mundo desaparecer.

— Se cuida, então, garoto! — ela disse, tentando não chorar. — Vença essa!

— Vai ser contra um dos três a luta.

— Imagina só se fossem os três de uma vez? — perguntou brincando, rindo como se achasse a ideia estúpida e engraçada ao mesmo tempo. Mesmo que ainda temesse por Gransys não ser capaz de vencer. — Amanhã você vai acabar com ele! Você tem uma vantagem. — Sorriu.

— Obrigado. — Ele não sabia a qual vantagem Aren se referia.

Quer dizer, realmente existia a possibilidade de alguém com o poder de eletricidade ganhar de alguém que podia se transformar em ouro? Não somente isso, mas que também podia escolher deixá-lo duro como titânio?

Saiu dali para continuar a entregar os livros, encontrando Dustin pelo caminho.

A noite chegou lentamente, como sempre, e Henry não comeu nada. Decidiu deixar mais daquele vômito de peixe misturado a muitas outras coisas nojentas com uma pitada de larvas para outro que realmente estivesse faminto. Não, ele não conseguiria comer naquela noite.

Pegou a chave que roubara para abrir a biblioteca. Decidiu dormir ali, mesmo não sendo fácil, pois sua cabeça sempre fora agitada desse jeito, mas agora tudo lhe parecia um turbilhão incompreensível, e seu medo e nervosismo lhe causavam falta de ar. Colocou a chave na fechadura, mas ela não girou. Puxou a maçaneta, revelando que ela já estava aberta.

A respiração de Henry, enfim, parou por completo, assim como ele.

Abriu devagar para não fazer nenhum som. Olhou em volta, mantendo a porta aberta, caso precisasse fugir. Não parecia ter nenhuma forma de vida além dele ali, talvez tivesse sido o velho quem se esquecera da porta aberta.

Suspirou e andou até o canto reservado especialmente para ele — sempre os cantos lhe davam mais conforto —, com alguns livros empilhados em volta. Foi um alívio acender a luz da lanterna no único lugar que lhe trazia paz naquele inferno, mas descobriu o porquê da biblioteca estar aberta quando sentiu a dor absurda de algo duro lhe atingindo a cabeça, então caindo no chão. Por muito tempo, sua visão escureceu a ponto dele se perder em sua mente traumatizada, esquecendo por completo onde estava.

Porém, quando retornou, a luz da lanterna caída no chão revelou quem o derrubara.

Era Dustin quem estava ali.

— Puta merda! Me desculpe! — exclamou ele, espantado, tentando ajudar Henry a se levantar.

— Argh! — Henry resmungou de dor, sangrando, zonzo enquanto sua regeneração ainda trabalhava. — O que você estava fazendo aqui?!

— Foi mal, eu achei que fosse um guarda que tinha entrado.

— Merda, você quase me matou. — Só então Henry percebeu que sua fala estava enrolada, e seus olhos demoravam mais que o normal para se reajustarem. — Mas que tipo de soco você tem? — Ele sabia muito bem que o poder de Dustin era o de ferro, mas aquela informação parecia não fazer sentido algum em sua cabeça confusa, cheia de pontos pretos em sua visão.

Não era à toa que o chamavam de Titã de Ferro.

— Henry, cara, você está bem?

— Não. — Colocou a mão sobre a cabeça, sentindo o rompo feito na carne bem próxima ao crânio, que já se curava. Descobriu, naquele momento, o que teria de enfrentar, caso Dustin fosse seu oponente. Ainda que duvidasse que aquele punho prateado e pesado, que já voltava a ser pele novamente, o tivesse socado para valer. — Droga! Tenho que sair desse maldito lugar!

— Qual é o seu nome?

— Já te disse.

— Não, o completo.

Naquele momento, a regeneração já havia avançado o suficiente para que ele desconfiasse que aquilo talvez fosse uma cilada. Mas, se Gaemon confiava nele o bastante para que os juntassem no mesmo lugar, para fugirem os dois — e também considerando que ninguém poderia ajudá-lo tanto assim, quando a luta acabasse —, ele teria que arriscar.

— Eu sou Henry D. Gransys. Esse é meu nome.

Dustin o olhou com algo nos olhos que talvez pudesse ser chamado de brilho, mas, aparentemente, isso não tinha nada a ver com seu nome, que lhe era tão normal quanto outro qualquer.

O motivo era outro.

— Dustin Firebird — falou estendendo sua mão, mesmo que Henry já soubesse. — Então... O velho me disse que você quer fugir da prisão. Eu posso te ajudar.

— Eu não tenho nenhum plano ainda — respondeu apertando a mesma mão que abrira sua cabeça um minuto atrás. Ocultou dele, por ainda não confiar, a existência das chaves.

— Simples, vamos terminar a luta e depois sair chutando a bunda dos guardas, pra que eles abram o portão e todo mundo saia.

— Está bem, mas como faremos isso?

— Hã, com os pés?

— Não! Como faremos pra que dê certo?

— Simples, vamos sair chutando.

— Ok! — Se Dustin continuasse falando, Henry iria ficar ainda mais nervoso. Deu um profundo suspiro, ao mesmo tempo em que sua regeneração chegou ao fim. — O que vai ser depois que sairmos da prisão?

— Eu não sei... — Pelo jeito que Dustin o respondeu, Henry percebeu que havia tocado em um assunto delicado. A guerra. — Não tem mais nada me esperando lá fora.

Os olhos de Henry, assim como os dele, foram parar no chão. Afinal, o garoto mais temido de toda a prisão não era assim tão diferente dele.

“A única coisa que eu espero do mundo lá fora é não ser reconhecido”, pensou Henry, sentindo finalmente o que parecia ser o contrário de aversão por Dustin, ainda de cabeça baixa. Empatia.

— Vem — disse Henry, seguindo pela biblioteca. — Esse é o lugar pra onde eu sempre fujo quando preciso fugir da realidade e esquecer de... tudo.

Dustin não sabia o que o novo amigo tinha em mente, muito menos o que ele quis dizer com “tudo”, mas o seguiu mesmo assim.

Andaram entre as estantes que ele havia arrumado mais cedo, até chegarem a uma parede onde havia um quadro antigo de Dom Pedro I, o que indicava que todos estavam no Brasil, mas Dustin não tinha como saber disso.

— Quem é esse? Alguém importante? — ele perguntou, fazendo Henry o olhar com curiosidade.

— Ele foi um imperador desse lugar, quando era um país, eu li sobre esse cara uma vez. — O quadro ocupava metade da parede dos fundos, com uma moldura grossa e bem detalhada que, talvez, um dia, já tivesse sido dourada. Aquilo fez com que ambos imaginassem quem seriam as antigas pessoas que haviam morado ali. Mas, também fez Henry se lembrar de sua própria casa. “Não”, ele pensou. “Esqueça isso agora”.

— De onde você é?

— De uma ilha livre. Ou nem tão livre. Agora nem existe mais. — As ilhas livres não pertenciam a nenhum país ou reino, apenas ficavam lá e faziam comércios pelo exterior como qualquer lugar.

— Eu vim de Zephiron — disse Dustin, cabisbaixo.

Ouvir o nome desta ilha fez o estômago de Henry revirar, dar bilhões de voltas e voltar no lugar. O que fez ter vontade de chorar, mas não queria fazer isso ali, nem na frente dele. Antes mesmo de ele ser raptado, anos atrás, ouviu falar do ataque de um grupo naval poderoso a várias ilhas. Inclusive essa.

— Droga... Eu sinto muito, cara — disse Henry. — Quando foi que você veio pra cá?

— Eu não sei. Perdi a noção de tempo. — Acontecia com todos que estavam ali. — Acho que eu tinha uns dez ou onze anos.

Ok, agora isso havia se tornado estranho. Dustin começara a chorar. Muito.

A maior surpresa que Henry teve sobre a história que Dustin lhe havia contado sobre si comprovou que era realmente a ilha que fora incendiada, segundo as notícias. Não houve sobreviventes, mas aqui estava Dustin, contando tudo sobre seu passado a alguém em que, supostamente, confiava. Poderia considerar isso como uma amizade? Afinal, ninguém iria contar chorando sobre sua família morta numa ilha para alguém que achasse que iria prejudicá-lo. Pelo menos, era no que Henry acreditava.

— Nove anos. — Henry não conseguia ser capaz de contar mais que um dia desde que entrara naquele lugar, quanto mais nove anos. Sua cabeça o fez viajar com a imaginação voltada para a possibilidade de milhares de coisas terem ocorrido. Dustin pareceu ver pessoas indo e vindo; e deveria estar lá quando Henry pôs os pés na Forja.

Henry tomou um ar pensativo, não dizendo mais nada a seguir, apenas pensou sobre os anos que se passaram. Ele havia ficado lá por quanto tempo? Dois, ou talvez três anos?

— Sua história é bem pior que a minha — afirmou Henry.

— Talvez não. A sua história é horrível para você e você ainda vai carregar isso — “Essa voz.... Não era Dustin, claro que não era, mas sim, uma voz cansada e velha. — Cada um tem sua história e nenhuma merece comparação para saber qual a mais triste.

Quando o velho mostrou sua cara na luz fora de seu quarto, ao lado da biblioteca, Henry pensou que estivesse indignado pelo comentário do jovem, mas na verdade estava cansado apenas.

— Vamos logo, garotos. Amanhã é um grande dia.

Ele parecia estar estranhamente ansioso pelo dia seguinte. Talvez pela possibilidade de haver uma luta na qual Henry, finalmente, ganhasse e conseguisse fugir, junto de Dustin.

— Senhor — reclamou Henry.

— Senhor? — perguntou o velho. Isso conseguiu fazê-lo rir um pouco. — Você nunca me chamou de senhor, garoto. Não é por que eu não vou te ver mais que você precisa começar. Além disso, odeio essas formalidades todas.

O velho sentou-se na cadeira, esfregando os olhos enrugados.

— Eu já o chamei de senhor algumas vezes.

— É? E nunca disse que gostei.

— Gaemon, o que deveríamos fazer com o que vai acontecer... amanhã? — intrometeu-se Dustin.

— Amanhã que traga os seus problemas — suspirou e inclinou-se na cadeira.

— Mas e se o Henry vencer mesmo?!

Gaemon colocou a mão sobre a boca, como se pensasse nas múltiplas alternativas em uma prova. Mas ele sabia bem o que iria dizer, antes mesmo de abrir sua boca:

— Henry. Você pensa que perdeu tudo e todos, tem medo de sair e ficar sozinho em seu “canto dos sonhos”, lá fora... Mas, veja isso: vocês dois estão na mesma situação. Ambos viveram perdas e aprenderam com isso. O que os tornaram possíveis amigos, pois perder não significa não poder mais fazer novos amigos, mas sim aprender para que esses novos sejam melhores e a incerteza não exista mais. — Ele falava, seriamente. Olhava dentro dos olhos dos dois, mas, em especial, para os de Henry. — Quando você vencer aquela luta amanhã e seu nome aparecer no ranking pela primeira vez, para todos os presos verem, duas coisas podem acontecer: eles podem tentar te matar; ou eles podem te ajudar. Você confiou em mim e eu confiei nele. Agora o que você precisa fazer é aprender a confiar também. A enxergar quem é o seu verdadeiro inimigo, e também ver o quanto esse jovem ao seu lado se preocupa com você. Você espera que essas pessoas estejam espalhadas pelo mundo, quando na verdade, elas estão bem aqui, prontas, esperando para serem libertadas daqui e de seus traumas também.

— É verdade o que ele diz, Henry — admitiu Dustin. — Eu estou aqui.

— Mas eu nem te conheço direito e...

— Isso não é uma questão sobre tempo, Henry —, interrompeu Gaemon, nervoso. Henry se calou, surpreso por vê-lo assim. — Eu já te disse: não se trata de confiar, mas de não temer. Isso leva à confiança. Se trata do quanto um está disposto a aguentar... a se sacrificar, pelo outro.

Henry pensou sobre tudo que havia vivido. Desde o momento em que perdera tudo e todos e fora obrigado a ser trazido para este lugar, então vira tantos sendo submetidos à desumanização e à loucura, obrigados a suportarem experiências que, se não lhe concedessem poderes, iriam lhe garantir a morte e, agora, a possibilidade dele mesmo também ser morto...

Sim. Agora tudo estava realmente claro para ele. Os inimigos não eram os prisioneiros. — Nunca foram. Pois tudo, desde o começo, era culpa dos malditos dragões brancos. Era a eles que a fúria de todos deveria ser direcionada. E seriam eles os dois nomes mais perigosos: Henry D. Gransys e Dustin Firebird, juntos, que seriam os responsáveis por devolverem a todos suas vidas.

Henry olhou novamente para Dustin, e este sorria seu familiar sorriso de serpente, mas em seus olhos estava a complacência, como se dissesse: “Agora você entendeu, amigo”.

A fala de Gaemon, mesmo que autoritária, havia causado o efeito certo.

— O Titã e o Dragão estão aqui, finalmente... — Gaemon sussurrou, de forma que ninguém pudesse ouvi-lo, a não ser ele mesmo. Então disse normalmente: — Voltem às suas celas, amanhã cedo venham aqui! Há mais algumas coisas para serem feitas e planejadas antes da fuga.

Era um velho bom para os dois, mesmo que às vezes parecesse ser misterioso demais. E foi, perguntando-se quem aquele homem realmente era — que, nem sequer, lembrava de seu próprio passado ou falava sobre si mesmo, mas que sabia tanto do futuro e que fazia de tudo só por querer ajudá-los —, que eles voltaram para suas respectivas celas.

Na manhã seguinte, as caixas de som espalhadas por todo lugar anunciavam que Henry lutaria pela tarde. O coliseu estava sendo limpo por metade dos prisioneiros da Forja. Aquela seria mais do que uma luta em que ele deveria vencer e que todos os que já haviam o enfrentado esperavam pelo mesmo...

Aquela seria a última luta naquele coliseu antes da fuga.

As pessoas sabiam quem Henry iria enfrentar. Era um dos três maiores do triunvirato da Forja do Dragão: Jay, o Áureo, possuidor da capacidade de transformar seus membros em ouro — assim como Dustin também conseguia, porém ferro —, poder esse que somente doses insanas de radiação lhe concederam. – Sendo os outros dois Thalia e Ken. Ninguém sabia quais os poderes desses últimos dois. 

Muito menos o tamanho de suas forças. Thalia nunca precisou lutar, e Ken sempre aparecia do nada. Especulavam que, talvez, seu poder fosse o de teleporte.

Henry nunca os vira pessoalmente, mas, pelo que diziam, aquela poderia ser a luta mais fácil de sua vida. Para Jay, não para Henry.

Ansioso para que as horas passassem rapidamente, Henry perguntou a Gaemon o porquê de aquela prisão se chamar Forja do Dragão. Então, enquanto Dustin terminava seu trabalho de empilhar e derrubar livros, o velho lhe contou que o motivo do nome era porque, desde o começo da Terceira Guerra Mundial, aquele lugar havia sido usado apenas pelos dragões brancos para refúgio, mas que também fornecia as armas necessárias ao exército do Reino Yedraan, para que a guerra pudesse continuar a avançar sobre o mundo. Ninguém sabia o que acontecia dentro daquela caverna e nem tinham interesse. Raptavam jovens e crianças como cobaias desde o início da guerra, mesmo assim ninguém dera conta de nada.

Também contou que Dustin fora transferido para ali logo após muitos considerarem o que aconteceu em sua ilha, há oito anos, como o início da guerra; mas... era apenas boato. A guerra de verdade, aquela que derrubaria o governo mundial e extinguiria a família de Henry demorou um pouco mais para começar...

Até tudo, finalmente, explodir.

Henry tinha medo.

Nunca vira o coliseu tão limpo quanto estava naquele momento. Tudo porque Karlag, em pessoa, estava ali para prestigiar aquela luta. As arquibancadas brilhavam sem sujeira, restos de batalhas ou poeira alguma, especialmente na área separada mais alta — como um local exclusivo, um camarote —, onde Karlag e as três pessoas mais importantes que compunham o triunvirato estavam sentadas. Uma mulher com compridos cabelos, belamente pintados de verde-escuro, um par de olhos lilases intensos e um longo vestido com fenda lateral, exibindo a tentadora pele morena de sua perna esquerda: Thalia. 

Um homem loiro e forte, com cabelo feito de fios de ouro e olhos tão dourados quanto: Jay. 

Outro homem: esse com olhos e cabelo prateados, cabeça raspada nas laterais, vestindo roupas casuais quaisquer e sempre sorrindo, despreocupadamente: Ken. E, por último, entre eles, o segundo grão-mestre do Dragão Branco: um homem grande e o mais forte dali, de braços cruzados e com todos os músculos à mostra — dava para ver a tatuagem de Tiamat em seu peitoral —, calça militar e cabelos toscamente pintados de vermelho, pele morena e um olhar que crepitava intimidação de baixo dos óculos escuros, além de — olhando-o assim tão de longe —, parecer ter perdido o braço direito, por ele mais lembrar uma prótese robótica: Karlag.

Muito sangue, inocente ou não, já havia sido derramado por eles ou por causa deles. E agora os quatro estavam ali, presentes no mesmo lugar.

Uma sirene ensurdecedora disparou por completos cinco segundos. Seu som detestável chamou a atenção de todos e, em menos de dez minutos, os jovens prisioneiros iam enchendo a arena, um de cada vez — na entrada do coliseu, soldados dragões brancos os revistavam, garantindo que nada,além deles, entrasse. Junto deles, Henry, que ainda temia. Via tanto garotos como garotas se acomodando nos bancos, todos esperando que alguma coisa acontecesse. Todos esperando que fosse Henry quem o fizesse.

Ao seu lado, estava seu amigo Dustin. Ainda lhe era estranho pensar nele assim, mas sabia que aquele não era o momento certo para pensar sobre nada disso.

O tremor que tinha por dentro era evidente em si.

— Dustin... O que você acha que vem agora? — perguntou ele que, após ter passado por tantas situações perigosas ali, tentava controlar o coração, que batia forte para mais essa.

— Eu não faço ideia, carinha... — ele respondeu, com seu olhar desconfiado, parado nos quatro, lá no alto. — Mas, qualquer coisa, eu vou estar por perto, na primeira fila.

Henry não soube dizer se ficou completamente tranquilo ouvindo isso. Na pior das hipóteses, ele morreria. E sabia que, se isso acontecesse, tudo fracassaria. Todos que dependiam dele, provavelmente, também seriam...

“Não”, ele pensou. “Isso não vai acontecer. Não antes de todos sermos livres”.

“Não antes de eu ter certeza de que ela está bem”.

Engoliu em seco e se forçou a parar de tremer. Fechou suas mãos e, rapidamente, todo o medo que sentia se tornou raiva. Uma raiva pura e intensa por aqueles que o prendiam, os causadores daquela guerra.

Eles tinham que pagar.

Todos que chegavam — para o enojamento do triunvirato —, iam emporcalhando um pouco a perfeita limpeza da arquibancada com seus pares de sapatos e roupas imundas, feridas maltratadas e suas semidesnutrições. Cerca de quarenta mil pessoas ocupavam o pequeno coliseu por completo, todas olhando diretamente para Henry, que já estava de pé no centro do ringue.

Tantos rostos por todos os lado, carregando em si a sua mesma dor... Era impossível acreditar que alguém ali quisesse seu mal.

Não são os presos quem você deve temer.

Henry olhou para cima instintivamente, como era de costume, vendo o céu que só tinha direito de ver uma vez por semana. Por pouco tempo. Ele esperava poder vê-lo por completo em breve.

Então olhou diretamente para os quatro na arquibancada, que sorriam.

— Olhem só a audácia daquela formiga. — disse Jay, o Áureo, olhando para a pequena criatura que enfrentaria, com desprezo. — Desculpe, senhor, mas não teria um oponente melhor?

Karlag o ignorou por completo. Encarava em silêncio e de braços cruzados o garoto que poderia, ou não, ser uma ameaça. Tudo dependia do quanto ele já sabia.

— Ótimo — completou Jay, para si mesmo —, ele vai morrer de qualquer jeito, sendo aqui ou lá. Como preferir.

— O que foi, Jay? — sibilou Thalia, espalhando seu tom de voz sensual entre os três homens que a cercavam. — Está com medo de um garotinho?

O Áureo deu de ombros, fingindo não ter se sentido ofendido e, principalmente, envergonhado.

— Claro que não, Thalia. Até parece que não conhece a minha força — falou, expondo os músculos de seu braço, bem próximo ao rosto dela.

Ao seu lado, Ken não gostou de vê-lo se exibindo para ela.

— Pare com isso! Você está bancando o idiota. — ele disse irritado. Era óbvio que sentia ciúmes, todos sabiam. E tão óbvio quanto, era Thalia tirar proveito disso. — O que esse tal Henry tem de especial para Karlag querer uma luta contra um de nós?

— Não sei, mas tenho que admitir, esse Henry é uma graça! — ela disse, sorrindo com malícia. — Caso ele perca, poderiam não matá-lo? Eu gostaria muito de tê-lo para mim.

— Está bem, Thalia — Karlag finalmente se pronunciou, mesmo que só sua presença ali já fosse o suficiente. Falava para Thalia, mas ainda mantendo seus olhos fixos à frente. — Isso vai acabar matando ele, de qualquer jeito.

Ela riu como se não soubesse do que Karlag estivesse falando, apoiando seu corpo incrivelmente sedutor sobre o parapeito do camarote; então gritou para que todos ouvissem a nova sentença: caso perdesse, Henry pertenceria a ela, o que fez vários jovens gritar de inveja. Para os garotos que já a viram, Thalia era o sonho de suas vidas. Ser escravo dela não lhes parecia ser algo tão ruim assim, pois com certeza seria uma vida melhor do que a que levavam na prisão, eles acreditavam.

Alguns rapazes passaram a olhar feio para Henry; outros até mesmo chegavam a vaiar a sentença.

O grupo responsável pela limpeza do terreno externo começou a atirar flores, que haviam recolhido, para a mulher. Quando a viram pegá-las e lançar um beijo, seus corações quase pararam.

— Cara, essa eu perderia de propósito! — Henry ouviu um jovem, de mais ou menos dezoito anos, gritar da arquibancada. Como se ele fosse sortudo ou detentor de algum prêmio.

Mas ele não enxergava desse jeito. Tudo o que Henry queria era se vingar do triunvirato e de todos acima deles.

— Muito tentador. Eu até perderia, mas dispenso — ele gritou de volta, na mesma altura, para que todos também pudessem ouvi-lo. Deu de ombros, sorrindo também com a mesma malícia. — Tenho um compromisso marcado, e não vou deixá-lo pra lá  por sua causa. Desculpe!

Falar isso fez com que todos gritassem ou rissem. Muitos pensavam que estivesse brincando; outros não acreditaram que ele pudesse estar recusando uma proposta dessas — seus últimos momentos seriam os mais agradáveis possíveis, mesmo que fossem os últimos —, mas a maioria temeu por sua afronta a um dos Três. Mesmo assim, ele não se importava, pois conhecia o que Thalia usava contra todos aqueles jovens, tanto que quase fora hipnotizado por ela também.

Ela tinha a beleza como poder. Seu rosto, seu corpo, seu cheiro intoxicante, sua voz envolvente como a de uma sereia, até mesmo seus lábios que, muito provavelmente —, pelo menos, era no que Henry acreditava ser verdade —, fossem venenosos. Tudo servia para hipnotizar, para atrair suas presas. Olhar em seus olhos por muito tempo podia ser letal.

Mas esse não era seu maior poder, realmente. O que a radiação lhe dera ainda era um mistério.

— É por isso que te chamam de Afrodite Assassina, Thalia? — Henry disse de queixo erguido, mas no fundo estava lutando ao máximo para manter sua mente concentrada. Sentia o poder que emanava dela à distância. Era um misto de desejo, loucura e perversão que ele queria experimentar. Tudo dentro de si dizia que ele tinha que dizer sim. — Eu admito que fosse gostar muito de aceitar a sua oferta de bom grado, mas eu sei que vou morrer se fizer isso. E eu não vou morrer sem antes ser livre, mesmo que tenha que derrotar todos vocês.

— Como ele ousa falar assim com a gente?! — perguntou Ken, indignado. Olhou nos olhos de Karlag, mas eles não diziam nada. Voltou-se para o Áureo, procurando alguma resposta. — Jay?

Ele apenas sorria, diante do ódio espumante daquele que já imaginava matando. Só isso já foi o suficiente para sentir prazer.

— Ele é ousado — o loiro completou, rindo também de Ken, achando toda a sua preocupação desnecessária demais. — Vai ser fácil calar a boca dele. Acho que ele não gostou de você, Thalia.

A Afrodite Assassina deu de ombros.

— Como se eu fosse me importar. Todos vocês sabem muito bem que esse nome que me deram está completamente errado. De qualquer jeito, eu não o quero mais.

— Mas você ainda vai tê-lo — corrigiu Jay. — Espere aqui.

Assim que terminou de dizer, Jay saltou do camarote, aterrissando no meio do coliseu em frente ao garoto que queria morto. O estrondo feito por sua queda fez vários tremerem.

Menos Henry, ele era apenas ódio e vingança. “É agora”. Parados um de frente para o outro, encarando-se, Jay sorrindo, ninguém esperava que o primeiro soco viesse dele, que correu na direção do Áureo com seu punho cerrado. O oponente nem sequer se mexeu, simplesmente esperou que a mão de Henry viesse e falhasse ao se chocar contra seu rosto, que havia ficado dourado.

Afastando-se, Henry sentia dor por seu pulso torcido; os dedos virados ao contrário.

“A radiação...”, com lágrimas de agonia nos olhos, ele se lembrou de que a radiação não somente havia lhe concedido o poder se transformar em ouro, mas também o detalhe de que podia torná-lo tão duro que nada poderia atravessá-lo, bem diferente do que ouro maciço realmente era.

A multidão gritava loucamente, vários se esquecendo de torcer para alguém, pois sabiam que aquela era uma luta diferente de todas as outras — um preso, enfim, enfrentando os três primeiros e mais temidos do ranking — e que só aconteceria uma vez, por isso seus nervos estavam tão descontrolados, embora para muitos aquilo fosse algo horrível de se assistir.

Jay gargalhava. Nem mesmo seu cabelo perfeitamente penteado para trás havia sido desmanchado.

— Quer mesmo lutar, garoto? Se perder agora há uma boa possibilidade de...

— Cale essa boca de merda, seu dragão branco! — Henry berrou tão alto quanto sua garganta permitiu. — Foram vocês quem começaram essa guerra!

Era tudo o que Karlag queria ouvir. Tudo o que Henry menos deveria ter dito. E tudo que mais se arrependeria por tê-lo feito. O oponente à sua frente simplesmente parou, espantado, assim como aqueles no camarote e os prisioneiros na arquibancada. Graças ao roubo da chave, a sua fuga para a biblioteca e ao velho Gaemon, Henry conhecia mais da guerra do lhe era permitido saber.

Talvez fosse o único a conhecer a verdade — de como tudo começara —, talvez Dustin também soubesse, mas agora toda a Forja do Dragão se encontrava boquiaberta pelo mesmo motivo.

Karlag, que até então não demonstrava nada, apontou para Jay com uma fúria tão intensa que seus olhos faiscaram.

— Deixe o acordo pra lá — vociferou, com os dentes trincados —, mate-o agora!

Mal aquelas palavras haviam sido pronunciadas, Jay já corria em direção a Henry para atacá-lo. Em questão de segundos, um borrão dourado vinha para esmagar quem via como um inseto. Por pouco, Henry conseguiu desviar do soco que viera na direção de sua cabeça, mas o movimento o fez cair no chão. Sem conseguir encontrar ar, arrastando seu corpo, afastando-se do Áureo, o garoto viu o dourado de suas mãos se espalharem pelo corpo. Então seu oponente por inteiro se tornou um homem feito de ouro, inclusive no interior de seus olhos. Ele pôde ouvir sua risada.

— Não devia ter provado que sabe tanto sobre nós, garoto! — Jay gritou. Então recomeçou a correr, o peso do seu corpo levantando poeira atrás dele. — Você já era!

Ele pulou. Vendo-o assim, lá no alto, com a luz do céu refletindo o brilho do seu corpo, era uma linda visão. Porém, tão linda quanto mortal.

Henry jogou seu corpo para o lado, rolando pelo chão, escapando do momento em que Jay caiu com seus punhos fechados prontos para destroçá-lo. Enquanto viu o membro do triunvirato ficar de pé, ele mesmo já havia se levantado, com seu coração batendo forte e, em suas veias, a vontade de derrotá-lo ainda era grande.

— E aí, tá difícil? — perguntou Henry, debochado. Ele devia ter ficado quieto.

De dentro da nuvem de poeira que se formara, um pé de ouro veio e golpeou seu rosto, arremessando-o pelo ar. Se lhe perguntassem somente o que lembraria seria a sensação de estar voando sem que realmente quisesse, então, o choque doloroso que esmigalhou vários ossos.

Henry estava novamente no chão. A regeneração já consertava suas partes quebradas, mas a dor era tanta que ele não conseguia — nem queria — se mover. 

Sabia que isso significava sua morte, sabia o quanto todos dependiam de sua vitória, mas tudo nele era apenas aquela dor intensa que não o permitia parar de agonizar. A cratera que se formara onde suas costas haviam batido era enorme, capaz de fazer quase que toda plateia se calar e se perguntar como ele ainda poderia estar vivo.

O som dos passos de Jay era pesado, o ouro batia no chão e levantava poeira, mas Henry só podia ouvir um chiado, que tomara conta de seus tímpanos. E seus olhos, cobertos por seu próprio sangue, mal podiam ver a imagem do homem dourado que vinha, caminhando lenta e friamente em sua direção.

Sua cabeça, tão atordoada quanto quando fora golpeada por Dustin, demorou a voltar a si e entender o que estava acontecendo. A pressão em seus ouvidos acabou, e ele descobriu que o coliseu inteiro gritava loucamente para que ele se levantasse. Só então, finalmente, ele recuperou os sentidos o suficiente para perceber que era tarde demais para tentar fazer qualquer coisa, pois a mão de ouro de seu assassino já estava ao redor do seu pescoço, elevando-o do chão. Rapidamente, o ar lhe escapou os pulmões e sua visão já não existia mais. A força brutal daquele homem era tanta, que ele nem sequer se mexia, enquanto Henry o chutava os joelhos com todo o desespero de quem queria viver.

— E aí, tá difícil? — perguntou Jay, sorrindo ironicamente.

Sangue quente cobria o rosto do garoto e descia por seu corpo, e suas pernas mal tinham forças para continuar a se moverem. Mesmo assim, sua raiva e vontade de se vingar continuavam latentes. Sua mente não parava de gritar, dizendo que não podia morrer ainda.

Mas, infelizmente, ele não estava preparado para o que viria.

O Áureo derreteu seu braço de ouro, tornando-o sólido novamente quando já estava quase tocando o solo. Porém, o que mais surpreendia era que seu braço agora tinha a forma da lâmina de uma espada de dois gumes — grossa e brilhante. A joia mais bela e mortal que ninguém ali jamais vira, até então —, que veio numa velocidade que Henry não teve como impedir que o atravessasse. Transpassou sua barriga, saindo pelas costas, então o jogando no chão. Os restos de carne cortada e de sua coluna quebrada saindo, expostos pelo buraco em sua camisa.

Em algum lugar da plateia, Aren chorava.

Jay olhou para cima, buscando prestígio para seu ego, mas só viu Thalia parecendo estar triste por perder o novo bichinho de estimação. Alguns dos jovens tinham nojo ao olhar para a vermelhidão que estava o braço afiado do membro do triunvirato e ao redor do corpo largado do seu oponente. A desilusão e a possibilidade de nunca escaparem dali começava a falar mais alto, afetando cada vez mais a todos.

O que antes era gritaria, agora dava lugar ao silêncio vindo da tristeza.

Entretanto, o que nem aqueles no camarote esperavam, era que Henry fosse se levantar mais uma vez, mesmo com sua barriga aberta. O buraco sangrento, que pulsava e cuspia mais daquela cor intensa e nauseante, diminuía aos poucos embaixo da mão que tentava tampá-lo; dava para ver a carne se recompondo e os ossos voltando para o seu lugar... Nos olhos de Henry, todo o ódio que incitava os presos lhes traziam de volta a esperança e a revolta para os líderes.

Exceto, Jay. Ele nunca estivera tão excitado numa luta. Tanto que abandonou sua forma dourada, somente para olhá-lo diretamente nos olhos em sua forma humana — mesmo que nenhum dos dois realmente o fosse.

— E então? Um oponente digno, não?

— Sim! — gritou Henry, eufórico. — Regeneração, esqueceu? — O poder de sua ira queimava em seus olhos, onde raios azulados dançavam ferozmente, fitando seu oponente.

“Já chega...”, para Jay, aquela luta já havia ido longe demais. Seu ego já o alertava disso, o dizia que estava demorando mais que os outros a matá-lo. E isso o envergonhava. Olhava para os milhares de rostos ao seu redor e se sentia humilhado. Tudo por causa daquele inseto. 

Ele não poderia vencer!

— Por que você não morre?! — Urrou furioso, avançando mais uma vez contra Henry. Era a cabeça dele que sua mão mirava. Iria esmagá-la e por fim àquilo, pois era ele quem deveria vencer! Ele quem deveria provar a Karlag que era o melhor do triunvirato da Forja do Dragão.

Mas...

Henry parou seu soco, segurando-o com suas mãos, acumulando terra no solado dos seus pés — que eram empurrados para trás —, e conseguiu deixar seu oponente em choque...

Literalmente falando.

“Agora, essa é minha chance!”, Henry pensou. Aquele era o momento, o único que sabia que teria. Não podia falhar, e foi o que aconteceu. De sua mão, o brilho azulado de seus raios podia ser visto à distância. Usou seu poder para eletrocutar o estômago de Jay, agora que seu corpo estava vulnerável e parecia estar vencendo, enfim, para o alvoroço de toda a plateia. Henry empurrou o adversário, desequilibrando-o, que caiu enfraquecido.

Sim, ele estava mesmo vencendo. Sorriu.

Jay se ajoelhou com dificuldade, suas mãos pressionando a marca vermelha dolorida em sua pele. Estava irado, porém, mais consigo mesmo, por ter errado daquela maneira — nem mesmo tinha coragem de olhar para o camarote, prevendo os olhares de desgosto que receberia de Ken e Thalia, mas, principalmente, de Karlag. O cheiro de carne queimada se espalhou pelo coliseu, chegando até Henry, que finalmente o via como um alvo fácil, que talvez não representasse mais tanto perigo assim.

Ele estava pronto para socá-lo com seu punho envolto por raios que subiam até a altura de seu cotovelo, mas algo o impediu. Odiava quando coisas assim aconteciam, mas essa ele teve um ódio especial.

Rapidamente, aquela sensação úmida que envolvia suas pernas chegou à cabeça, então foi como se sua garganta e os pulmões estivessem queimando vivos, porém numa estranha fogueira gelada.

Estava se afogando.

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