Capítulo 5|Judite

Meu cérebro desperta para um dia muito quente, e minhas têmporas bombam de tal forma que me fazem amarrotar a testa e me negar a abrir os olhos. Rolo para o outro lado da cama, onde um grosso fio de luz me aquece as costas nuas. 

— Ah, não! — choramingo, irritada que finalmente tenho que acordar.

Arrastando-me até estar sentada na cama, afago a pele aquecida, sonolenta e irritada com tanta pancada de luz. Bocejo e me livro do calor do lençol para sair da cama.

Meu quarto está um forno. Preciso de um banho gelado para desfrutar dos efeitos do choque térmico. Deve ser início da tarde. 11 e quaisquer minutos, meu relógio biológico chuta. Só então percebo que dormi muito mais tempo do que imaginava que era possível. Ao tropeçar em duas embalagens vazias de sumo, solto um riso manhoso e coço meus olhos ardentes. Estou como se tivesse sido envolta por uma ressaca das boas, quando não passa de um cansaço quase injustificável.

— Bom dia! — grito através da minha porta para o corredor vazio, porque tenho certeza que minhas irmãs estão acordadas. 

Meus pés arrastam-me, semi-nua, até a cozinha, de onde suaves estrondos escapam. As duas organizaram tudo o que fiquei por organizar assim que acordasse, inclusive o pequeno almoço. 

— Já é boa tarde. 

— Já são 12 horas? — minha voz soa rouca e interrompida.

— 13 e alguma coisa. — Yara responde da mesa. 

— Jesus! — suspiro e esfrego a cara — Estava com um sono fora do normal. Dormiram bem? Que horas acordaram? — desmorono na cadeira diante da mesa e me sirvo meio copo de água gelada.

— As 10. Estavamos a tua espera para comermos. — pesca uma batata do prato, leva à boca e digita uma mensagem.

A mesa está arrumada para uma ótima refeição de início do dia, embora tenha passado do meio dia.  Meu estômago berra de fome enquanto bebo a água gelada. Quando termino, passo rapidamente o olhar pela cozinha para ver se está tudo em ordem, e agradeço pela ajuda quando concluo que fizeram um ótimo trabalho. Tati se junta a nós, na mesa, no mesmo instante que bocejo, e diz: 

— Vai descansar. — em sua mão, há um copo com colchão da noiva a transbordar. Passa o dedo pelas bordas e leva à boca. Analiso o movimento com sonolência, levando um pouco de tempo para responder pela lentidão do meu cérebro. 

— Mais logo. Tenho que vos levar para casa. — quando noto que não visto nada para além de shorts finos, me levanto, o que faz minhas temporas bombarem e o ambiente girar um pouco — Estou com dores de cabeça. — espalmo minha testa — Vocês tomaram banho?

— Sim, já. — sem deixar de digitar, Yara responde.

— Deixem-me fazer o mesmo. Não vou demorar. 

Foram precisos longos dois minutos para que eu estivesse dentro da minha banheira, com um balde cheio de água fria, diante do qual me agacho e faço uma curta contagem decrescente antes de jogar a primeira caneca de água contra meu corpo, mas travo. Seguro a caneca entre os joelhos, balançando-a com os movimentos que faço alongando os ombros rijos. 

Meu corpo e mente estão um pouco mais ativos. Alguns estalos depois, afundo meus dedos na caneca e fecho os olhos. Inconscientemente, repasso os momentos de ontem. Uma sequência de momentos que me atravessa a mente de forma breve, até aquele em que me senti cercada por um forte cheiro. A dúvida me desalinhou o cenho e me fez procurar pela sua origem. Quando me virei, estava lá um homem imenso. Nem a luz branca da minha cozinha iluminou seus detalhes como eu precisei que fizesse. Era de um tamanho e masculinidade que não me lembrava de ter visto antes. Não de um jeito tão peculiar. A barba inundava quase a metade de seu rosto angular, escurecendo-o ainda mais perante minha análise, no qual procurei alguma familiaridade. Não achei no rosto. Achei em sua voz. A familiaridade foi uma apunhalada de susto, fazendo-me vibrar. Era Lionel. Lionel Ofiço. Da sua voz, pude derivar a de Lionelo—meu antigo Lionelo—, pela forma como desrespeitava o poder de um acento. Identificaria aquele "Olá" em qualquer que fosse a circunstância. Embora esteja mais grave, continua sendo o dele. 

Fazia muito tempo que não o ouvia. 

Meu útero é despertado por uma onda de arrepio. Os lábios, dos quais me lembro agora, são um luxo que pula através do volume de sua barba. Caio sobre meus joelhos e molho-os com a água que cai junto.

— Sinceramente...— sussurro para mim mesma e é minha deixa para devolver a cabeça ao lugar e começar a tomar meu banho.

— Teu telefone! — minha irmã grita.

— Quem é? — me endireito e, antes de começar a me lavar, encho minha escova com pasta dentífrica. Quase me esquecia de seguir minha sequência higiênica.

— Júlio!

— Vou retornar quando sair!

Mais ou menos 15 minutos depois, estou fresca e pronta para os planos que tenho para domingo. Tenho meu quarto finalmente arrumado. Visto um vestido amarelo com pequenas estampas coloridas, calço chinelos dourados de tira horizontal, meu cabelo está preso na nuca, com uma média bola crespa que forma o Totó.  Passei roll-on, um pouco de perfume pelo pescoço, onde meu fino fio de ouro se encontra há mais de 8 meses.

Satisfeita, volto para a cozinha mais disposta.

— Meu telefone? 

— Está aqui. — minha irmã caçula me entrega, seus dedos sujos de gordura das últimas batatas que coloca para dentro.

— Demorei? 

— Um pouco. Adiantamos e comemos todas as batatas fritas, ou iam ficar frias. 

— Já podemos comer. 

Um silêncio confortável enche o ambiente enquanto nos servimos dos ovos, salada de alface e palitos de mandioca panada. Uma refeição típica de nós 3 e minha mãe, faz muitos anos. Já com nossos pratos e chavenas cheios, enquanto comemos, procuro preencher o silêncio.

— Luther chegou bem? — pergunto para Yara e encho a boca com dois palitos de mandioca.

— Chegou. Me mandou mensagem ainda ontem. — tomou um gole de seu chá — Lionel, como prometeu, lhe deixou em casa. 

— Que bom. — coço o canto dos meus lábios — Como é que vocês estão? Dormiram bem?

— Muito bem, e você? 

— Ainda não me situei. Talvez normal. — pico uma boa quantidade de salada e como, esperando instalar-se na minha boca para voltar a falar — Gostei dele.

— Eu sei. — sorri "discretamente". Está mais a vontade com o assunto, o que me faz sentir bem.

— Faz muito tempo que não lhe vejo. — comenta Tati.

— Então eu e mamã somos literalmente as únicas que não sabiam que Yara namora com ele?  

— Deixa disso. — sorri

— Mamã sabe. 

— Me sinto seriamente excluída. Nunca pensei. — estreito os olhos na direção dela, que ainda mantém o sorriso envergonhado-barra-chasqueante*. 

— Gostou de reencontrar seus amigos? — pergunta para desviar.

— Claro. É sempre bom reencontrar amigos de infância. 

— Melhor ainda quando se trata de crush's. 

— Crush's? — indago com a boca cheia.

— Sim. Bem, crush. No singular. Lionel.

— Nunca te disse que ele era. — sorrio abertamente.

— Não precisou. Talvez não tenha percebido antes porque era muito nova, mas agora eu vi.

— Viu o quê? — detenho minha chávena na frente da boca enquanto aguardo por sua resposta.

— Vocês dois. — chupa as pontas de seu polegar e indicador — Luther perguntou sobre vocês. 

— O que, exactamente, ele perguntou?

— Se houve ou há algo entre vocês.

— Por quê ele perguntaria isso? 

— Acredito que todo mundo viu o mesmo que eu.

— Eu também vi. — Tatiana se intromete, seus olhos ainda em sua comida.

— Viu o quê? — devolvo minha chávena e cruzo os dedos sobre a mesa.

— Ah. — Yara toma minha atenção de volta — Para comprovar que houve uma coisa entre vocês, podemos começar pelo facto de não ter se oposto em nenhum momento. — sorri, triunfante.

— Quem? — franzo o cenho, confusa, mas desperto quando rola seus olhos grandes — Ahn, eu. — faço uma pausa para formular algo para dizer — A quê exactamente é suposto eu me opor?

— Não sei. — dá de ombros — Nada. 

— Mh. — é o único som que emito.

Levo pelo menos um minuto para voltar a comer. Outra onda de silêncio embala o lugar, mas, agora, sinto que, através dele, minhas irmãs cobram algo de mim. Algum tipo de explicação ao que colocaram em suas mentes. Ser aberta com ela sobre minha vida nunca foi nenhum problema. Muito pelo contrário. Gosto de ter seus pontos de vista, junto com os de minha mãe—não que tenha muito o que analisar. Mas acontece que não tenho nada a dizer. Foi bom rever Lionel, porém não fui além de seu corpo quente, seu rosto esbelto e sua voz em troca de palavras curtas. Isso não é o suficiente para ter algo sólido e coerente para dizer sobre como me sinto.

— O que vocês acham? — solto antes mesmo que me aperceba.

— Eu, particularmente, acho que vocês deviam se reaproximar. — Yara espalma seu peito — Daí em diante, só vocês vão decidir como serão as coisas. 

— O que terá para decidir? — quebro um palito de mandioca ao meio e atiro para dentro da boca.

É melhor que seja eu a fazer as perguntas. Talvez, com o que minha irmã diz, me situe de alguma forma. 

— Não sei. — toma mais de seu chá.

— Tati? — me viro para a pequena, que agora me olha. 

— Mana?

— O que você acha?

— Nada. — balança sua cabeça, o que me faz rir — Ele luta? 

— Como assim? — é difícil acompanhá-la.

— Ele luta? 

— Artes marciais. — reforça minha irmã.

— Quando conheci, sim. Praticava artes marciais. Agora, não sei. Porquê? 

— Parece que luta. 

— Não sei. — como o outro pedaço da mandioca.

— Aproveita perguntar, quando se virem de novo. 

Sou apaixonada pela cozinha da minha mãe. É bem antiga, modesta e com uma festa de tons de creme e castanho, exactamente onde queimei meus primeiros bolos. Meu pedaço favorita dela é o armário cheio de loiça. Há o suficiente para duas festas cheias e mais um jantar de natal. Sua madeira tem um cheiro doce, por isso encosto-me nela sempre que possível, inclusive agora.

A senhora move-se pelo lugar como se seus pés já tivessem decorado os passos a dar. Em sua mão esquerda há uma colher de pau do tamanho de seu antebraço; na outra mão, uma tigela transparente cheia de folhas verdes que pretende adicionar ao refogado. 

Mesmo com o peso do sono, que volta rotundamente, me mantenho bem atenta aos seus movimentos e a nossa conversa. Há uma explosão de aromas no ar, desde o doce da madeira até o salgado do refogado, fazendo minha boca se inundar de saliva quando opino:

— Para mim, não tem o que reformar, aqui. Renovar a pintura está de bom tamanho. 

— E pintar de que cor?

— Não sei. — esfrego os lábios um no outro enquanto penso em qual cor combinaria com a cozinha — Talvez um castanho bem pálido. Ou creme... Desde que combine e que seja uma cor pálida. — assisto lançar um punhado de sal na panela — Tem dinheiro suficiente?

— Tenho. — limpa a mão no avental e fica na ponta dos pés para girar a colher de pau desde o fundo da panela.

— Não precisa de ajuda? Tenho umas economias que não pretendo usar tão já. Posso repor.

— Não. Já tenho o dinheiro. — devolve a tampa da panela e vai se sentar na cadeira do outro canto da cozinha — Como foi o almoço de ontem? Correu tudo bem?

— Sim, correu. Foi muito bom. Estava lá o Júlio e o Lionel, lembra deles?

— Lembro. Seus amigos. Devem estar uns matulões. 

— Sim, estão. Lionel tem esse tamanho...— estico meu corpo até bater com a mão bem perto do fim do armário ao meu lado —...e eu chego dos cotovelos dele. — deixo minha mão cair tão forte que cria um estalo quando encontra minha coxa. 

— Quantos anos eles têm agora?

— Vinte e poucos. — dou de ombros.

— Já têm esposas? Filhos? O que fazem da vida? — arranca o pano que está em seu ombro e começa a sacudir para se refrescar.

— Júlio tem uma namorada chamada Lola, que também estava em casa ontem. Lionel, não sei ainda. Mas duvido que tenha. 

— Por quê?

— Não sei. Não me...— minha boca logo de dilata quando bocejo, sem sequer ter previsto —...não me pareceu que está comprometido. 

— Mas estão todos bem?

— Sim, estão. 

— E você, minha filha, como está? — me olha serenamente, apreciando a surpresa que sua pergunta me faz.

— Eu estou bem.

— Suas irmãs me falaram sobre você e seu amigo. — passa o pano para outra mão e volta a refrescar-se.

— Não é verdade. Eu conversei com elas sobre isso. Não é nada disso que estão a pensar. 

Minha mãe me estuda, mas de forma despachada. Se levanta e volta para seu lugar na frente do fogão, em silêncio. Não diz nada. Começa uma de suas cantigas da igreja e é como tivesse se desligado do assunto antes mesmo de um suposto fim.

Espero minhas palavras se dispersarem no ar e olho para os dedos que agarram meu telefone. Com movimentos lentos, ligo-o para ver as horas. O relógio marca 17 horas e 2 minutos, o que justifica a insistência do sono. Aos domingos, é meu habitual dormir muito cedo para me sentir minimamente pronta para o peso da semana laboral.

— Mamã, eu já vou. — falo para suas costas gordas e me levanto.

— Não vai esperar para jantar? Vou terminar daqui a pouco. — devolve a tampa e se vira.

— Não. Vou comer o que tenho em casa. Estou com muito sono e preciso descansar, porque amanhã vou acordar cedo.

— Está bem. Quando chegar em casa, me liga. — planta as mãos na cintura.

Enquanto me acompanha até meu carro, me conta um pouco mais sobre o que pensa em reformar na casa, com o dinheiro da venda de uma parte do seu terreno. Apresento meu ponto de vista e ela fica por pensar e debater com minhas irmãs, das quais me despeço com voz alta e faço minha manobra.

Agora, com todos os vidros abertos, faço as contas de quantos minutos me atrasarei. A fadiga não é nenhum amigo da condução, e é tendo noção disso que conduzo até minha casa nas calmas. Ao total, meia hora de atraso. 

Assim que chego, tranco tudo, me dispo e vou ver algo leve para comer antes de dormir. Preparo rapidamente uma papa de farinha de milho e água. Quando fica pronta, sirvo num prato de soupa e adiciono açúcar, manteiga e leite em pó. Enquanto como, retorno as chamadas que fiquei por retornar mais cedo. 

Ligo primeiro para Júlio. Pela sua voz, está tão cansado tanto quanto eu. Pergunta se ficamos bem, diz que chegaram bem e que Lola mandou-me comprimentos. Depois de uma rápida troca de agradecimentos, desligo e ligo para Vitória, com quem tenho praticamente a mesma conversa. Agradece por tê-la recebido, nos despedimos e desligamos.  

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo