IV | Eu Morto

O mundo desaba em cores sortidas. 

Eu sou um corvo.

O mundo remontá-se em escuridão. 

Eu sou a pomba. 

Paz. Paz. Paz. 

Perdi tudo. 

Meus amigos, minha família, minha casa, minha vida. 

Paz. Paz. Paz. 

Espero que a encontrem. 

Eu sou o corpo, o corpo do garoto morto em Raven Town. 

Não há nada vivo em Raven Town. 

- Leo Castellon

***

Eu sabia que estava vendo-os, eu sei que estou vendo. Todos eles. Todos eles. Maxfield também estava lá, ou melhor, ainda está lá. Parado ao lado de Duece, parado ao lado do irmão. Mas, Maxfield estava morto. Maxfield sumiu. Maxfield e Dylan. 

Impossível? Improvável? Errado? Incorreto? Falho? Falso? Coisas da minha mente? O que é isso que vejo se não fantasmas? 

Os outros estão manchados. Eu os sinto, mas eles estão distantes de mais para serem tocados. Nem ao menos lembro o que aconteceu. O que houve? Eu estava lá, estava tudo normal e, de repente, não está mais normal, não estou lá. 

Duece baixou a cabeça, ele havia acabado de voltar de algum lugar, ou de lugar algum. Talvez ele sempre estivesse ali, eu, louco, tolo, cego, não o vi. 

Será esse o efeito de alguma droga? O álcool nunca me deixou assim... Eu não fumo, não me entorpeço. 

Que diabos...? 

- Scott? Scott você pode me ouvir? Pode me ouvir como ouvia os outros? - perguntei. É difícil dizer se estou desesperado ou apenas não acostumado com essa ideia de fazer parte dos outros. Eu estou vivo. Sei que estou vivo. Alguém deve saber que estou vivo. - Scott? 

Nada. Nada. Nada. 

Caminhei até Duece, tentei tocar seu rosto mas não o senti. Ele se dissolveu entre meus dedos como poeira. 

Andei até Hearth. Hearth pode me ouvir. Tenho certeza que pode. Ele pode me ver também. Deus, ele pode. Eu preciso que ele possa. 

- Hearth? Hearth por favor... Diz que pode me ver. 

Nada. Nada. Nada. Nenhuma resposta, nenhum único filete de esperança para mim. 

O que deu neles? O que diabos deu nesses caras? Não, não, não posso aceitar o fato de ter morrido, não posso... Não é... Possível? 

Lincoln filmava algo de sobre o ônibus, tentando encobrir as lágrimas com as mãos trêmulas e deixar as próprias palavras com um ar sombrio - nada funcionava, não funcionava para a voz, tampouco para as lágrimas.

Pode ser uma grande idiotice e a maioria era baseada em fatos loucos das mentes dos autores, mas... Os filmes sempre mostram como câmeras são sensíveis e captam a alma humana - e as vezes, não humanas também. Eu poderia tentar. Não perderia nada mesmo. 

Subi no ônibus, usando a escada meio enferrujada na lateral. 

- Um fantasma deveria flutuar de vez em quando - mas talvez isso confirme que eu definitivamente não sou um fantasma. 

Andei sobre o teto de latão, mas meus passos não fizeram barulho como de costume. Toquei o ombro de Lincoln, nada. Tentei bagunçar seu cabelo incrivelmente arrumado, nada. Fiz a pior imitação de dançarinas havaianas, tentei até mesmo insultar seus irmãos surfistas, mas não houve nada. Nenhuma palavra, nenhum grito de horror ou sobrancelhas erguidas. 

Esse é realmente o meu fim. 

Parti. Fora a única coisa que me restara fazer, afinal. Refiz os passos de Duece, passando pelos muros velhos e as casas todas abandonadas. As roupas que restaram nos varais me fazem sentir saudades - se é possível um fantasma sentir alguma coisa, essa coisa é saudade. 

Lembro-me bem de como foi a primeira vez que voltamos de um desses acampamentos. O sangue fervendo de emoção, vinte e cinco dias fora do alcance dos braços de Elizabeth. Ah, Elizabeth... Cuidou de mim como se realmente fosse seu filho, mesmo tendo tantos outros para cuidar. Sempre me sentia em casa quando desabava em seu colo e me punha à chorar feito um cão perdido.

Eu era só uma criança quando meus pais me deixaram naquele beco sem fundo nem início. Era tão pequeno. Estava tão assustado. Elizabeth soube o que fazer no momento em que me viu. Sua atenção e carinho fora vasto, e eu adorava estar engolfado em tudo aquilo. Fora um longo inverno aquele, um longo e frio inverno. 

Mas as coisas não terminaram tão bem. Fui levado de Raven Town por uma juíza e homens do governo, fui parar num orfanato. Conheci Bernard e Sakuya Castellon Castellon e eles abriram um pedido de adoção. Em pouco tempo, eu já não era mais Leonard Skipper e sim, Leonard Castellon o bam-bam-bam de Kyoto, no Japão, onde Bernard e Sakuya abriram uma pensão que se tornou um hotel e, então, vários hotéis. Até abrir uma filial aqui, na Inglaterra. Eles decidiram voltar e se instalaram em Raven Town por sua paz e sossego. E eu estava de volta, mal conseguia imaginar. De volta para Elizabeth, de volta para o Reino Unido, de volta para Raven Town... Onde a vida não é tão "paz e sossego" quanto imaginávamos.

Agora eu estou morto, Elizabeth, Bernard e Sakuya fazem parte dos desaparecidos, a cidade é um deserto e parece que o mundo está se esgotando, sumindo, girando ao redor daqueles garotos em seu ônibus azul, os únicos que ainda estão vivos... Por quando tempo?

Corvos se aninham sobre os muros de um beco, gritando em plenos pulmões, avisando aos outros que encontraram alguma coisa. 

Sigo-os, não há nada pra fazer afinal de contas.

Um dos corvos parece assustado e raivoso, todos o olham ansiosos. Em seu bico, a carne, ainda sangrenta, parece se contorcer em agonia.

- Sai, sai, sai! - reclamo, e eles parecem me ouvir, pois todos voam aos grunhidos para longe. 

Pulo o muro para o quintal onde os corvos estavam. Fantasmas deveriam atravessar paredes. Pelo visto, sou um fantasma ainda desprovido desses tipos de "superpoderes". 

Não muito longe, uma mala estava revirada no chão, mergulhada numa poça, amassada, úmida e manchada. Por que ela parece desfocada, como se não devesse estar ali? 

Andei até ela, me sentindo um Sherlock meio idiota, incapaz de encontrar alguma coisa importante. Abri a mala, de vagar, talvez um monstro pule e me leve para dentro - nada é impossível nesse mundo de loucos. Está vazia, completamente vazia. Com exceção de um cartão esbranquiçado, manchado de sangue e lama. Tudo aqui parece manchado de sangue e lama. Curioso, abri o envelope. 

Por que meu rosto está lá? Por que estampo a foto naquele envelope? Por que? Não há quem possa me responder, sendo assim, segui em frente. 

A casa à frente não é tão diferente de todas as outras: portas abertas, móveis poeirentos, coisas que deveriam ser feitas e foram deixadas pela metade, cheiro de vidas fora de curso e fantasmas vivos que estão mortos. Mas, essa tem algo a mais: sangue. pegadas cravadas na madeira apodrecida, vermelhas e vivas como se tivessem sido feitas ontem. Elas também não combina com nada.

Sigo-as, não há nada pra fazer afinal de contas. 

As manchas seguem até uma porta onde diz "Fique fora, ou sofra as consequências".

- Ah, senhora porta, eu sou um fantasma - informei, mesmo parecendo idiota informar qualquer coisa para o cartaz numa porta semi-aberta. - Quais seriam as consequências para um fantasma? Voltar a vida? 

Olhei lá dentro, parece um simples quarto de adolescente. Empurrei a porta, mas algo a prendia, tornando difícil minha passagem. Empurrei com um pouco mais de força. 

- Isso seria fácil para qualquer outro fantasma. Claro que seria difícil para - seja o que for que mantinha a porta fechada, escorregou e tombou - m-mim... 

Tropecei para dentro do quarto, caindo de cara numa mancha escarlate e pegajosa. Asas bateram para fora do cômodo e gritaram para todos irem também. Penas negras foram deixadas para trás, embaladas na mesma mancha que eu. 

Me ergui com cautela. Não é como se algum osso pudesse ter sido quebrado ou torcido, mas ainda não me apeguei à esses detalhes. Mal pude me recuperar da primeira queda, mas cai novamente ao ver o que segurava a porta. 

Ali está, curvado e imóvel, manchado e destroçado, olhando para o vazio como se pudesse ver algo lá. A luz criando sombras sob os olhos, atiçando a escuridão que suas olheiras produziram. Sangue em suas roupas, um sapato a menos.

Sentei-me naquele chão egoísta, que roubou o frio todo só para si. Tentando manter a calma, tentando não morrer novamente, tentando entender o que acontecia... 

Ali está, bem à minha frente, eu. Minhas mãos, meu rosto, meu cabelo, meus dedos... Eu, meu próprio corpo... Morto, completamente morto.

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