Capítulo 3

        — Sabe, eu não sinto o meu corpo fraco, sinto que o que enfraqueceu foi a minha emoção — eu estava do lado do Edward, sentada no tapete cor vinho que estava na sala, com a cabeça apoiada no sofá a ouvir tudo o que ele tinha para dizer. 

          Ele chorava e agarrava a minha mão com mais força, os joelhos estavam dobrados perto do peito, onde estava apoiado um dos braços dele. A camisola azul bebê do pijama estava molhada com as lágrimas e tudo o que consegui fazer foi aproximar-me mais e o abraçar. 

        O choro intensificou, a cabeça dele apoiada no meu ombro esquerdo a esconder parte da cara no meu pescoço, a vontade de chorar junto com ele não faltava. Acariciava as costas dele devagar, ele não estava sozinho ali e podia contar comigo para chorar. 

           — A pior parte é que nem a mentira de que tudo vai ficar bem funciona — o abraço foi desfeito, as mãos agora bagunçavam todo o seu cabelo. — E essa cirurgia... que está marcada para daqui a três dias, mas sequer consigo imaginar-me a ter que passar por todos aqueles procedimentos. 

         — Não posso garantir que vai ficar tudo bem — nem ele acreditava naquilo, porquê que eu precisava dizer? — Apenas sei que estaremos sempre aqui para ti e que também estaremos quando acordares da cirurgia. 

         Ele suspirou e fixou o olhar no quadro grande que estava em cima da televisão, a família dele estava ali, a sorrir comose nada mais importasse naquele momento. 

       — Eu não sei se consigo

       — Tu consegues, sabes o porquê? Porque és o meu burrinho e tudo consegues fazer, basta que acredites mais um pouco — juntei os meus dedos para mostrar a medida que ele precisaria acreditar, só um pouquinho.

      — A cirurgia foi marcada para evitar que o cancro cresça mais rápido, para não dar espaço para ele destruir mais. 

        — Ah, burrinho... pelos vistos essa alcunha  horrível não vai desaparecer  tão cedo — ele riu entre as lágrimas e ver que ainda poderia fazê-lo rir  dava-me esperança. 

        — É muito importante que eu te trate assim, não é todos os dias que respondes por um burro — as gargalhadas soaram cada vez mais alto, a primeira vez que riámos assim depois de ter saído do hospital. 

          Quando erámos mais novos e quando a mãe do Arthur ainda trabalhava como veterinária especializada em animais de quinta, nos levava para  trabalhar com ela algumas vezes e em uma destas vezes o Edward andou atrás de um burro com uma perna quebrada, na hora que chamaram pelo burro, que se chamava Burro — falta de criatividade —  foi ele quem respondeu e tornou-se oficialmente o burrinho. 

Não  canso de o chamar assim. 

          — Os meus sonhos foram enterrados debaixo de terra vermelha e tijolos, não tem como eles saírem de lá — ele ajoelhou e levantou devagar ajeitando o pijama e a sorrir fraco ao ver o estado em que ele estava. 

          — Não foram enterrados, Eddie.

         — Foram sim — agachado ele parecia ser mais baixinho que eu, mesmo que fosse muito mais alto que eu. — Não devia ter pensado muito, deveria ir de cabeça e já fazer as coisas, agora estou aqui, a pensar no que mais poderia ter feito. 

        O rosto foi escondido pelas mãos enormes e dedos grandes que ele tinha. Rastejei até o lugar em que ele parou e o cutuquei com o meu ombro, sabia o quano aquilo o incomodava. 

         — E quais sonhos são esses? — Tudo curiosidade, queria saber quais eram esses sonhos. 

          — Ter filhos, ter a casa magnífica que sempre quis, ser bem sucedido com a  minha querida empresa de apoio as pessoas que não têm nenhum apoio, ai é tanta coisa.

         — Ainda vais a tempo de fazer isso tudo, não estás morto.

          — É, eu não estou morto, não ainda — ergueu a cabeça e levantou o polegar para mim e depois prendeu o meu nariz entre o polegar e o indicador apertando ligeiramente. — Por isso, preciso dormir, preciso não, precisamos dormir e eu fico com a cama. 

         — Eu também quero a cama.

        — Corrida — ele gritou e pulou o sofá e eu dei a volta, o que levou muito tempo e eu acabei por começar a subir a escada quando ele já estava no sexto degrau.

         Apressei as minhas pernas para correrem mais rápido, esforço desnecessário, ele já estava deitado na cama, a fingir um ressonar esquisito, quando eu parei na porta. Eu iria dormir naquela cama nem que fosse para partilhar, estava sem disposição para arrumar o quarto dele antes de dormir. 

          Tinha de tudo espalhado pelo chão, figurinhas de heróis, bonecos de As crônicas de Nárnia, a Feiticeira, o Aslam e até Minotauros, pápeis e cores estavam em um canto bem próximo da porta, como se alguém tivesse desenhado naquela manhã, sendo que ele passou todo o dia de ontem na minha casa. 

        — Não está tão desarrumado assim, tira essa cara de desgosto — eu nem reparei que estava a fazer uma careta, desarrumado era a palavra perfeita para definir o caos que estava. Se bem que o meu quarto não é dos melhores. 

           A colcha verde e vermelha que estava na cama foi afastada e ele abriu espaço para mim, peguei outra colcha na cadeira e dirigi-me ao que seria o meu lugar. 

        Geralmente, eu dormia na cama e ele tirava algum saco-cama do Kaine para dormir no chão ou o contrário, foram poucas as vezes em que dormimos na mesma cama. 

             De repente começamos a ouvir Queen e ao que parecia não erámos os únicos acordados. Under Pressure tocava tão alto que acho que podia ser ouvida na minha casa, que era ao lado. 

           — Desliga isso — o grito do Edward contra o teto foi tão alto que eu tive que tapar os ouvidos e cobrir a minha cabeça com a colcha pesada. 

          — Dorme e deixa-me em paz — o Kaine gritou de volta e o volume da música diminuiu. — Já diminuí, quem reclamar mais vai pagar auscultadores para mim.  

              Revirei os olhos com o senso de oportunidade do Kaine e os fechei para dormir. Muitas pessoas adormeciam na hora que fechavam os olhos, nem passavam por aquele drama de ter mil e oitocentas ideias na cabeça só para esquecer no dia seguinte, eu passava. 

            Fechava os olhos e viam montes de ideias vindas não sei de que buraco dourado, eram perfeitas para fazer o meu sono aparecer depois de muito, muito tempo. A minha cabeça e as suas loucuras. 

* * *

          — Ele tem  mesmo que passar por essa cirurgia? — A cara de desprezo que o Kaine fazia era sempre a melhor, não havia nada com que comparar, os olhos meio revirados e a boca torta com os lábios enrugados virados para o Edward, eram tudo que precisava para  soltar um riso. 

         A sala de espera do hospital aumentava a tensão e a vontade que o Oddy tinha de bater o Pierce porque não parava de perguntar o porquê do Edward precisava passar por uma cirurgia. Estávamos ali, a espera de alguma notícia do Edward desde a hora que  disseram-nos que ele foi para o bloco operatório e depois de 6 horas, nada, nenhuma notícia. 

          A cirurgia foi marcada para as quatro da tarde e mesmo com o sono a dar o ar da sua existência, ninguém queria dormir. A minha cabeça estava apoiada no colo do Rafaello, irmão mais velho do Pierce,  que atirava uma bola para o ar e apanhava no meio do caminho, o Oddy focava todas as suas energias em uma meditação para não bater o Pierce, que tinha o trabalho de ser inconveniente e ser alvo  dos olhares horríveis do Kaine, o Arthur comia o último pedaço de bolo que compramos para comermos, e a tia Monique, que estava do outro lado da sala, com um livro enorme nas mãos relacionado sobre cuidados com pessoas que tenham cancro. Era o tipo de  leitura que ela fazia desde que recebemos a notícia.

          — Eles precisam de um ano para fazer uma cirurgia? — A  bola do Rafaello parou, o Oddy abriu os olhos, o Kaine voltou a olhar para ele e o Arthur paralisou com a boca aberta e a comida prestes a entrar, o Pierce arqueou as sobrancelhas, não fazia ideia que o trio estava disposto a arrancar os fios de cabelo da cabecinha dele. 

          — Oddy, estás autorizado — ele nem precisou que o Rafaello falasse duas vezes, para levantar, estalou os dedos e foi atrás do Pierce. 

             — Não, Oddy feio.

            — É pior quando me tratas como um cãozinho — as pernas do Pierce recuavam em passos lentos em direção ao bebedor. Na maior parte do tempo o Oddy não era agressivo, mas quando alguém o provocava tinha o que pedia. 

         Ele tinha um problema com raiva quando era mais novo e para se acalmar o pai fazia ele dar uns socos em um saco de boxe, tornou-se hábito, a meditação fazia parte da terapia da calma que ele fazia para não atacar as pessoas que o irritavam. Até eu teria medo do Oddy furioso, ficava com as orelhas, o nariz e pescoço vermelhos, as veias nos seus braços ficavam salientes e a respiração era rápida e com falhas, esfregava as mãos freneticamente na roupa e o cabelo ficava grudado na testa e nos ombros,  tinha o cabelo até ao meio das costas, e por ele ser alto e um pouco musculoso facilitava imenso quando o assunto era intimidar. 

           Pontos que mostravam que ele não estava furioso, ele apenas se aproximava vagarosamente até ao Pierce que recuava a cada passo que o Oddy dava. Pus a mão na boca para controlar a gargalhada que iria sair, a cara de quem já tinha levado uma surra evidente no rosto do Pierce. Ele apanhou duas  vezes do Oddy e deixava bem claro que não queria voltar a apanhar.

 

        — Para de ser tão inconveniente, Merida — agora era o Oddy que tentava conter os risos, os meus já estavam soltos. 

        — Merida é a tua quinta namorada — a história da quinta namorada do Oddy era a mais conhecida de todas, era sempre engraçado lembrar dela e ver a careta que ele fazia depois. 

           Pierce voltou para o lugar dele, que era sentado no chão na direção da minha mãos para ter o direito de desfrutar do carinho que eu estava a fazer na cabeça dele. 

         — Familiares de Edward Cross — o mesmo médico que  deu-nos  a notícia, doutor Arian,  estava ali a nossa frente, com um fato lilás e uma bata por cima dele. Ninguém respondeu apenas  levantamos e fomos para perto dele. — Antes de irem ver o Edward gostaria de falar com vocês.

         — Rei do suspense e outras malabarices — as nossas cabeças viraram na direção do Pierce, que estava atrás de nós e não parava com as gracinhas. O Rafaello pôs a mão esquerda na testa e apoiou o braço esquerdo no direito. — Desculpa. 

             —  A cirurgia correu bem, mas infelizmente o cancro estava mais avançado do que se conseguiu perceber.

            — Então a cirurgia não serviu para nada? — A indignação do Arthur era sentida por todos nós, como uma cirurgia dessas poderia não funcionar? 

             — Na verdade, serviu para reduzir as células cancerígenas, elas poderiam crescer ainda mais e destruir mais células saudáveis — nem ele parecia convencido do que ele falava, a mão a coçar a cabeça a toda hora e o esfregar da outra mão na bata deixavam aquilo bem claro. — Mas, podemos complementar o tratamento com quimioterapia, ela pode ajudar a eliminar a maioria das células cancerígenas.

           — Tal como enfraquecer as células saudáveis — o Raffa largou e foi sentar em uma das cadeiras da sala e pôs os auscultadores nos ouvidos. 

           — Sim, ela enfraquece as células saudáveis pela quantidade de químicos medicinais usados para tratar essas doen... 

           — Há outra solução? Menos agressiva? — a tia Monique até aquele momento estava calada a ouvir cada detalhe, sem interromper ou opinar. 

           — Há a imunoterapia, mas nada garante que ela irá funcionar corretamente dado ao estado avançado que o cancro está e pode enfraquecer as células do mesmo jeito — o olhar do médico transformou-se em apreensão. 

           — Posso pensar? — Olhámos todos para a tia Monique que perguntou com a voz embargada. As lágrimas tomavam conta dos olhos dela e o abanar da cabeça do médico seguido da recomendação para não demorar muito, foi o sinal que ela precisava para ir para o chão, quase a gritar. O Pierce e o Oddy ficaram com ela. 

         — Uma enfermeira virá guiar-vos para poderem ver o Edward — e foi a última coisa que o doutor Arian disse antes de dar as costas. 

          Kaine encostou a cabeça na parede e escorregou devagar para o chão com os dedos enterrados no cabelo, os joelhos para cima com os cotovelos apoiados neles. 

          — Eu não sei o que fazer.

         — Só precisamos estar com ele, em tudo — ajoelhei e apoiei os meus braços nos dele, que se cruzaram por cima dos joelhos. Ele limpou a lágrima solitária no canto do meu rosto com o polegar direito e sorriu fraco. 

          — Nós conseguimos fazer isso — ele puxou-me para ficar entre as pernas dele e abraçou o meu corpo pela lateral. 

          — Nós conseguimos.

         Foi tudo o que consegui responder em meio tanta coisa. 

        Eu só pensava em como ele iria reagir, eu fiz ele colocar um pouco de esperança nessa cirurgia para ela não funcionar, e agora ele vai ter que fazer quimioterapia. Fiz ele acreditar em uma coisa que não deu em nada, me sentia culpada, chateada.

— Já mandaste as mensagens para a tia? — A pergunta apanhou-me de surpresa, esqueci totalmente de m****r as mensagens de atualização que a minha mãe pediu, ela não conseguiu ficar no hospital, teve que fazer uma viagem de trabalho para outra cidade.

          — Não, esqueci completamente.

— Não precisas preocupar-te, eu sou tão responsável que já mandei as anteriores e vou m****r outra daqui a pouco — agradecida não era a palavra certa para descrever o quanto estava grata pelo facto de a minha mãe confiar no Kaine, porque se dependesse de mim, ela teria que ligar. — Andem, ainda precisamos ir para casa, vamos esperar para ver o Edward e depois vamos embora — a voz dele soou por toda sala de espera e polegares foram levantados como resposta.

           E ficamos ali, a espera que a queria enfermeira chegasse para nos levar até ao Edward. 

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