Sex Digitī À Beira do Abismo: Um Conto Olímpico Fantástico

 De repente, não mais que isso, Calíope ainda me sorrindo, quase flanando, levanta-se como um suspiro, num pé de pensamento, quase uma brisa, e pôs-se a caminho da saída, por entre toda a gente, até desvanecer em meio a esfumaçada e colorida atmosfera densa deixando muito mais do que só o aroma de seu perfume para trás. Ela realmente havia me inspirado.

 Não saberia explicar o que ela me inspirou, mas me fez pensar nisso tudo que disse sobre frases musicais, acordes como versos, a música como um poema, não como metáfora de um poema, mas literalmente um poema de frases simplesmente sonoras, sentimentos sem palavras, algo abstrato, só que arranjado na forma de hexâmetro dactílico. Tudo isso ficou ressoando na minha mente obsessivamente desde então; crescendo como uma vida dentro da minha cabeça e se espalhando pelo meu corpo todo. Mas faltava um tema...

 Parecia que algo dentro de mim havia sido mudado. Alguma coisa começava a tomar forma dentro de mim. Eu estava com vontade de experimentar alguma coisa nova e diferente com a música. Mas ela também me deixou uma outra pulga atrás da orelha. O quê afinal aconteceria comigo se eu não sentisse aquele amor?

 De qualquer forma, não era sentado sozinho que eu iria encontrar minha prometida se a própria musa em pessoa me sugeriu ir ver a morena que estava comigo no sobradinho, lá no boteco do rock. Como nada mais fazia maior ou menor sentido, nem era menos ou mais racional do mesmo jeito que fora, antes disso tudo acontecer, para mim, por mais que não fosse Nix a minha consorte, até o nome dela é bonitinho, esse é seu nome, só Nix até onde soube, o quê afinal eu teria a perder indo procurar por ela e ouvir um som? Era muita informação para colocar em ordem. E foi exatamente isso que fiz.

 De longe já se podia ouvir, ao se aproximar da quadra, o zum-zum-zum do povo misturado com a música indicando o caminho para o bar até de olhos fechados. Estavam tocando She's Lost Control quando eu ia começar a flanquear a aglomeração e alguém me tapou os meus olhos com as mãos igual brincadeira de criança vinda correndo saltitante pelas costas.

“Advinha quem é?”

“É a mulata passista mais linda da passarela!”

“Ah! Para de ser canastrão, gatinho. Eu sou mignon. Passista é forçação de barra... pra te beijar eu preciso usar um salto. Ou então você tem que descer o meio fio! Desce, gatinho. Eu sei que você estava me procurando só de olhar sua carinha. Deixa te dar um beijinho...”

 Que garota fofinha... já me recebeu com um beijinho tão gostoso. Afinal, diga o que disser, quando o beijo bate, é tudo de bom. E o nosso beijo dá liga.

“Que bom que você apareceu, gatinho. Eu achei que a gente não ia mais se ver. Você falou comigo meio estranho.”

 Nix estava toda de preto, só de calça jeans e camiseta, unhas pintadas de preto, e um moletom daqueles com capuz, amarrado como um avental para cobrir a bundinha linda e redondinha dela. Aliás, ela não é nada baixinha, ela é bem o meu número. Foi precisamente pensando nisso que me veio a mente perguntar para ela:

“Gatinha, você é tão carinhosa... a gente acaba de ficar junto, aí reconheço que agi estranho, mesmo assim você parece que já esperava que viesse atrás de você... então me fala a verdade, isso tudo é sua autoconfiança, ou é outra coisa?”

“Já que você falou nisso, gatinho, foram as minhas novas amigas que disseram para eu não me preocupar, porque elas achavam que você viria me ver logo. Como elas são tão legais, eu acreditei nelas. Por falar nelas, olha elas aí! Vocês não morrem nunca!!! Eu estava falando de vocês agorinha pro meu gatinho! Olha só que figura, essa se chama Melpômene, elas não são daqui, devem ter falado muito mal da violência do Rio pra elas, olha só o porrete dela! Gente... Mel, eu posso te chamar de Mel, né? Ela não é de falar muito.”

 Melpômene além de carregar realmente um porrete... não apenas um porrete, mas uma verdadeira maça de guerra com uma maçã dourada na ponta, ainda por cima estava de coturnos pretos e máscara de tragédia.

“Essa doidona aqui é Tália!”

 Tália era o chocante extremo oposto de Melpômone; toda colorida, esvoaçante, calçando um par de borzeguim que ficavam hilários nela, e ao invés de usar sua máscara no rosto, ela usava a máscara de comédia como um leque para se abanar. Pequenas margaridinhas discretas pareciam brotar no chão, mesmo entre as frestas de concreto, onde aquelas surradas galochas pisavam.

“Agora as outras que não estou vendo, não sei onde elas estão. Uma é loira e se chama Euterpe. A outra é ruiva, se chama Terpsícore, e não para de dançar. Tem que ver! Ela empolga a galera!”

 Eu tratei de me dirigir a Tália, porque, para falar a verdade, eu achei que a outra me deixaria no vácuo: “vocês só podem ser as irmãs de Calíope. Não é mesmo?” Mas antes que Tália me respondesse, Nix, que estava eufórica de alegria com todo aquele carnaval fora de época, olhou para mim surpresa e me perguntou se eu já as conhecia.

“Ué? Vocês já se conhecem? Como assim, gente? Você é amigo da irmã delas?”

“Ai!!! Vocês é que são umas comédias!!!” Disse Tália, antes que eu tivesse tempo de pensar direito no que disse Nix. “Como vocês dizem aqui no Brasil; nós viemos aqui pra beber, ou pra conversar???”

“Minha irmã é uma tragédia mesmo.” Disse Melpômone.

“E você sabia que ter bom humor é sinal de inteligência, Melzinha?”

“Minha irmã Tália deve ser a inspiração para todas as mesmas velhas piadas de velório que já foram contadas nos últimos mil anos. Pior que isso, só aquela ali que está dançando como uma tonta.”

“Viu, gatinho? Não falei que elas eram umas figuras? A dançarina ali no meio do povão é a Terpsícore, que te falei. Olha! Ela está acenando para nós... um beijo, querida!”

 Assim que fomos quase todos apresentados, a banda que estava tocando Joy Division quando cheguei me chamou, do nada, através do microfone:

“Jacinto, se você estiver aí, tem uma moça aqui que está te chamando para o teclado... e; Terpsícore, sua irmã está te chamando para a guitarra. Só não demorem não, porque a gente tem hora. VALEU! Obrigadão GALERA!!!”

 Terpsícore mesmo dançando e andando, sumiu como uma flecha no meio das pessoas em direção a parte de dentro do bar. Nix, ficou mais animada ainda me incentivando e batendo em mim para ir logo. Tália disse, com ar de gozação, que agora aquilo tudo ia ferver. E Melpômone disse:

“Agora terei que cantar porque se Euterpe for cantar será uma verdadeira tragédia; e sem mim não tem coro. Vocês sabem.”

 O crowd da Lapa é mesmo qualquer coisa. Mas naquela noite em especial, as pessoas todas estavam diferentes. Em outro clima. Era como se a mera presença das musas contagiasse mesmo todo o mundo.

 Assim, consegui chegar ao teclado sem ninguém se esbarrar em mim, nem derramar bebidas em mim ou me queimar de cigarros enquanto passava. Melpômene passava ao meu lado.

“Eu sou Euterpe. Você é mesmo um tipão... vamos doar um júbilo para essa massa aí, garotão! Todo mundo aqui vai de Locomotive Breath!!! Você sabe cantar essa, né maninha? Então vamos botar pra quebrar!”

 Euterpe tinha somente uma improvável flautinha dupla que se não me engano chama-se tíbia, nunca tinha visto algo assim pessoalmente, toda enfeitada com fitas, aparentemente feita de bambu com cabaça, e com aquele corpinho magrinho estava me dizendo que iria tocar – um dos maiores clássicos de Ian Anderson que inspirou até Iron Maiden – de botar pra quebrar. Pensei, das duas uma; ou a gente sai consagrado, ou a gente é que sai quebrado. Mas que bobagem... O que estava pensando? É claro que aquelas musas é que botariam fogo em tudo, ora essa.

 Então, eis que algo estranhíssimo aconteceu. As pessoas que estavam mais ou menos dispersas em meio a aglomeração que se espalhava na calçada e um bocado pela rua, meio que reagindo surpreendentemente ao nosso movimento de improviso musical, foram se chegando, prestando atenção, e se comportando mesmo como um só coro. Nada disso nem de longe havia me passado pela cabeça que pudesse acontecer assim tão espontaneamente.

 Eu tocava Jethro Tull com as musas, que dançavam e cantavam, quando tudo ao redor virou uma pista de dança; tinham-se tornado tudo aquilo uma instalação de arte performativa a céu aberto. Pessoas tiravam suas camisas para balançar e girar no ar como se estivessem num estádio. As mulheres punham-se sentadas sobre os ombros de seus namorados em pé, com as cabeças deles apropriadamente entre as pernas delas que queriam poder olharem melhor para nossa performance dentro do bar por cima de todos que pulavam e se agitavam juntos; em sincronia.

 Surge, logo adiante de Melpômone, um mendigo trajando chapéu coco fazendo mil piruetas entre o povo; bem pretinho, velho e fogoso; com cabeleira branca e barba tão hirsuta quanto solene, com uma garrafa pela metade com aguardente, gritando, como corifeu, aleivosias para o coro:

“Vejam todos a vida do sex digitī brasileiro! O pobre diabo nasceu deformado! Só porque toca bem ele quer ter sucesso também! Nada mau até agora, em? Dizem por aí que por causa dele pode ter morrido alguém! Vingativo o nosso herói, não? Não... tampouco é melhor do que eu; do que você; do que ninguém! Como ele chegou aqui? Enquanto o coro come, dança e canta junto, e se alegra, estará viva ou morta, a mulher do idiota, do cornudo atirador? Com ela quem se importa? Quem se importou com sua dor? Agora vai e celebra enquanto pode, a vida do sex digitī brasileiro enganador.”

“Oh Corifeu, a vida humana é uma comédia de erros; então deixa de lado teus Zéfiros-impropérios!” disse Tália. “Desde quando Jacinto inventou os ciúmes? Antes, não teria sido ele mesmo sua vítima? Você já fez sua comicidade sem graça, agora acabou o seu showzinho. E pode parar de dar spoiler, seu chato! Você é muito didático! Vá dar um tempo bem longe daqui; vá ventar mais lá para o oeste e deixe-nos em paz!”

 Tália termina de responder bem alto ao Corifeu, se apoiando em seus ombros com as mãos lhe indicando a direção oposta do bar, com a língua de fora para ele em desafio – como uma criança sapeca – seguido de um chute seu, bem maroto, bem dado, bem na polpa da sua velha bunda murcha, num movimento bem circense e inesperado.

 Quando acabou a música, só dava pra escutar lá de dentro, onde tocávamos, o coral espontaneamente em uníssono pedindo mais:

“Mais um! Mais um! Mais um!”

 Sempre grave, com sua voz sempre blasée enquanto não estivesse cantando divinamente, Melpômone tratou de atender logo ao público:

“Mas será a saideira... não insistam mais. Depois dessa, adeus.”

 Euterpe tomou o microfone da outra e apresentou cada um de nós nos instrumentos enquanto a gente fazia na nossa vez, cada qual os seus breves solos, só de graça, durante essa introdução, apenas para o pessoal nos aplaudir, e depois gritou sempre passando sua empolgação para a multidão:

My Sunday Feeling!!!” E passou o microfone de volta para a irmã com outro grito:

“E NO VOCAL; Melpômone!!!”

 Assim nos esbaldamos de tocar, e depois de terminada a canção as pessoas continuavam pedindo bis. A multidão parecia mais alucinada ainda. Foi então que Terpsícore piscou pra mim e disse, “pegue sua garota e saia daqui enquanto eu distraio o coro!” Ela aumentou o volume do amplificador, e começou a tocar um indefectível Voodoo Child com todas as distorções acrobáticas que têm direito para o completo êxtase da população ao redor que só fazia crescer.

 Enquanto, ainda sorridente de surpresa, e muito, muito feliz, eletrizado, ainda sem acreditar naquilo tudo que aconteceu, peguei pelo braço da Nix, que só tinha olhos para mim, e puxei-a para longe dali.

“Jacinto, para onde você está me levando?”

“Para onde você quiser, minha preta. Para onde você quer ir?”

“Eu moro perto daqui, em Santa Teresa. Vamos?”

 Da Lapa era perto mesmo, pegamos um taxi e o motorista subiu o morro rapidinho, mesmo com o povo na rua, bebendo e conversando, mesmo com as ruas estreitas, mesmo com várias motos, ônibus, e até bonde; ou o motorista era o Ayrton Senna, ou eu não senti mesmo o tempo passar no infinito beijo de Nix. Era como se a própria noite me abraçasse.

 Subimos ao seu apartamento pelas escadas, nos beijando e tropeçando nos astros distraídos. Parecia que nós faríamos amor ali fora mesmo, sem esperar.

 Nix parou um pouco para pegar as chaves no bolso e abrir a porta de casa. Continuamos no amasso até o sofá da sala, até que ela me afastou um pouco com os braços e disse, “calma. Deixa respirar um pouquinho.”

 Confesso que por essa não esperava. Mas estava tão gostoso estar ali junto dela que até parar e esperar um pouquinho, e respirar sorrindo olhando para ela entregue para mim, suspirando por mim, também era uma coisa tão gostosa quanto tudo mais que a gente pudesse fazer. Eu me sentia bem com ela. E estava claro que ela confiava em mim para estarmos ali. Ela se sentia tão bem comigo como eu com ela. A gente estava muito a fim um do outro. Após respirar bem fundo, num momento de entrega total, ela disse que tinha que me contar uma coisa.

“Gatinho, você fuma?” Disse-lhe que sim; só de vez em quando. Ela puxou um cigarrinho artesanal, apertado em palha de milho, bem aromático, muito bom, e continuou a falar enquanto a gente relaxava um pouco mais... “eu não me entrego assim para ninguém no primeiro encontro. Nunca. Na verdade, se você quiser continuar ficando comigo, você precisa saber; um belo dia, uma mulher, uma louca, que teve um caso com meu pai no trabalho; bem, quando ele terminou com ela; bem, ela procurou saber onde morava a nossa família e tentou jogar ácido na minha mãe; meu pai segurou a louca, mas isso não impediu completamente dela jogar o ácido; o ácido não pegou na minha mãe, o ácido caiu todo em mim, que era muito pequena usando só uma fraldinha nos braços da minha mãe. Meu corpo é todo queimado de ácido e cheio de cicatrizes de enxertos. Até hoje as vezes sinto minha pele repuxando, e algumas vezes antes do tempo mudar eu sei que vai chover porque sinto umas dores tão terríveis que nessas vezes, de vez em quando, acabo lembrando de várias coisas que passei, dos tratamentos e das recuperações, que eu até perco o controle. Eu perco o controle. Desculpe. Mas eu tinha que te contar. Se você quiser ir embora, agora mesmo, sem olhar pra trás, eu não vou te julgar, muito menos condenar.”

 Eu senti a dor dela em mim. As lágrimas começaram a brotar incontinentes dos meus olhos. Nós dois precisávamos de um abraço. Nós nos abraçamos e continuamos a nos beijar chorando juntos. E durante aquele beijo nós nos contamos todos os nossos “ais”, e nos consolamos, e nos tornamos muito mais que amigos, erámos cumplices, e de novo, mais uma vez, como no taxi antes disso, perdemos novamente a noção do tempo juntos, deitados, ainda vestidos, abraçados, aconchegados no sofá dela como se fosse um jardim, porém como se estivéssemos nus um pro outro como se fosse o paraíso, conversando sem palavras, por horas e horas, e horas a fio, olhos nos olhos apenas, somente duas almas sedentas. E eu recebi o carinho mais sentido que alguém já recebeu na vida.

 Até já piscávamos juntos quando notei que o ambiente ao nosso redor pareceu diferente do que era. Olhei por cima de Nix um instante e pensei haver claramente uma musa que ainda não tinha visto, toda de branco, velada, meditando diante de mim, com um de seus dedos na frente da sua boca, me olhando fixamente por um segundo, atrás do seu véu translúcido, até repentinamente fechar seus olhos serenos para aprofundar ainda mais seu pensamento.

“Seu nome é Polímnia. O meu nome é Urânia. E quem vem lá?” Eu então estava de pé, já não estava mais em apartamento algum. Mas alguém vinha caminhando até nós através de uma névoa branca. O vulto respondeu:

“Sou eu, a Nix, ora essa. Por que está tudo em preto e branco de repente?”

 Urânia mostra com uma de suas mãos uma esfera cintilante para nós, seu vestido, de cinza, fica azul, como se fosse uma janela de infinito abobadado, parte do próprio abismo sobre nossas cabeças que todos os dias chamamos céu:

“Porque estamos no mundo do sonho profundo.” Disse Urânia.

 Polímnia, retirando seu dedo da frente de seus lábios, levanta seu véu e nos diz:

“Psiquê é sombra? É alma. É o lugar em que todo o conhecimento é armazenado. Vocês viajaram em presença um do outro. Serão purificados. Logo após, escolherão um novo rumo a seguir. Os deuses não são responsáveis pelas escolhas humanas. Vocês mesmos são responsáveis por suas próprias trajetórias. Os deuses nunca são a origem dos males. São as pessoas que ultrapassam os limites do equilíbrio de seu próprio destino. Psiquê, é aquilo que anima a transformação contínua e cíclica do conhecimento. És imortal. Divina.”

 Polímnia multiplica em várias a sua voz durante seu cântico celestial, a uma só vez, ao mesmo tempo, modulando a primeira voz e a segunda voz acompanhando a si mesma sem esforço algum, entoando um hino tão singelo e altivo que fazia as estrelas brilharem cada vez mais forte no céu, até quase ofuscar a vista.

“Afrodite, muitos cantaram como Uranos, deus do Céu, vinha deitar-se com a noite divina, repleto de amor, sobre a Terra. Da branca espuma do mar brotou uma moça e toda terra floresceu a seus pés. Ladeavam-na os gênios do desejo amoroso, até à assembleia dos deuses. Dá-nos sua cota de doce prazer, abraço e carícias. Na sua cabeça, coroa de ouro, nas suas orelhas brincos preciosos; lhe enfeitam o colo e no peito áureos colares, à morada dos deuses leva-os todos eles, ao vê-la, a arderem de amor. Que esplendida e divina arte! A beleza emerge do imenso elemento e o torna espelho de seu celestial sorriso. Sua majestade preenche toda a natureza. Seu advento arrefece as ondas e as faz fulgir como joias. Divino encanto da feliz travessia é o encanto da natureza florescente na calmaria que faz com que os navios cheguem em boa hora aos seus portos; Eúploia, Akraía, Nauarkhís.

 Todas as eras cantam com entusiasmo as grandes dádivas de Afrodite. Sua grande beleza e encanto sedutor. Não virginal, muito menos decoroso como núpcias; maternidade, mas plena pura beleza em que a feminilidade abunda e graça, envolvida pelo brilho húmido do prazer, moça eternamente, livre e feliz, do jeito que veio ao mundo brotada das brumas do mar imenso e profundo. Dourada, e amiga dos sorrisos, do doce sorriso, sorriam todas as estelas celestes também para o nosso hino. Teu peito que esplende qual prata. As amáveis Cárites, benfazejos espíritos do crescimento, são suas companheiras e servidoras. Dançam juntas, banham-na, ungem-na e tecem-lhe vestes. A graça e sedução são os dons com que brindas a primeira mulher. Venha a nós teu mundo Afrodite, onde a essência do poder divino não emana do desejante, e sim do amado. Afrodite não é a amante, é a beleza que graça risonha, fascinante. Onde o que brota primeiro não é impulso possuidor, mas encantamento pela irresistível união. Desvela-nos o mistério da completude e unidade do mundo em a atração que não atua como demoníaco poder de um ser insensível agarrando a presa por esporte. O atraente quer entregar-se, o amável inclina-se para quem sensibiliza a lânguida franqueza, aquilo que torna tudo ainda mais irresistível.”

 Polímnia continuava cantando antigos hinos angelicais ondulantes, num diz-que-diz-que macio de ondas e brisas, do tipo que se espalham pelo ar, lambendo suavemente as areias finas de uma enseada em paz, com o som vindo de toda parte.

Celestial e sorridente Afrodite, adorada em muitos hinos,

Nascida do mar, Deusa sagrada e geradora, você se deleita com os festivais noturnos,

E com os casais juntos durante a noite; Oh Deusa mãe do desejo.

Tudo vem de você; você uniu o mundo e você controla todas as dimensões.

Você deu à luz a tudo: tudo o que é celeste, tudo o que vem da terra fértil,

E tudo o que está nas profundezas do mar; Oh venerável acompanhante de Dionísio.

Você se delicia nos festivais, Oh mãe dos Erotes,

Oh vontade da qual a alegria está na cama do amor, doadora secreta da graça,

Visível e invisível, lindamente trançada filha de um pai nobre.

Acompanhante nupcial dos Deuses, loba portadora do cetro,

Amada-amante, doadora do nascimento e da vida,

Com seus amuletos apaixonantes você une os mortais

E todas as raças de animais em uma paixão descontrolada.

Venha; Oh Deusa nascida em Chipre quer esteja no Olimpo; Oh Rainha,

Triunfando com a beleza de seu rosto, ou quer esteja vagando pela Síria, terra do olíbano,

Ou ainda, quer esteja passeando com sua carruagem dourada pelas planícies,

Você que reina sobre o fértil leito do rio do Egito.

Venha, quer esteja passeando na sua carruagem puxada por cisnes sobre as ondas do mar,

Se divertindo com as criaturas das profundezas enquanto elas dançam em círculos,

Ou quer esteja se deliciando na companhia das ninfas de rosto negro sobre a terra,

Com pés velozes que brincam sobre as praias arenosas.

Venha, Senhorita, mesmo que esteja na Chipre que lhe acolhe,

Onde belas donzelas e ninfas castas cantam sobre você durante o ano inteiro,

Oh abençoada, e sobre o puro e imortal Adônis.

Venha; Oh linda e atraente Deusa.

Eu a invoco com palavras sagradas e alma devota.”

 Com os cânticos de Polímnia ao fundo, e ocupando todos os espaços, Urânia nos apontou uma constelação nos céus, e disse para nós a seguirmos até Erato.

“Vejam. É o signo de nosso amado Croto, ele ajudava nossa babá conosco quando éramos mais jovens enquanto crescíamos, ele era um grande caçador; vejam como mostra todas suas habilidades em um único corpo singular; ele gostava tanto de cavalgar, que nas estrelas tornou-se um centauro, com arco e flecha nas mãos, e lindas asas de anjos, pois ele amava tanto o céu. Nada inspira mais do que os céus. Reparem diante dos seus pés como estão arrumadas as estrelas em um círculo, como uma grinalda. Sigam sua flecha. E encontrarão os frutos e flores da grinalda. Erato vai lhes inspirar.”

 Conforme Nix e eu fomos nos afastando de Urânia seguindo o caminho das estrelas, ao olhar para trás, já não se via da musa nada mais que seus diademas brilhando sobre sua cabeça, agora já não como joias, mas elas próprias como outra constelação estelar.

 Nix e eu estávamos de mãos dadas. Não víamos o chão sob nossos pés. Após andarmos um pouco, um perfume tomou conta do espaço.

“Jacinto, você sente esse perfume? Que delícia...”

“Eu já senti esse perfume antes. É mirra. É um incenso de verdade, não essas coisas baratas que a gente compra em bancas de jornal. Isso é feito da madeira de murta. Que delícia...”

“Gatinho, olhe o chão. Estamos pisando em ramos de flores brancas e rosadas. Está tudo cheio de bagas lilases. Parece que estamos andando sobre uma grinalda gigante, como a dos céus. Que lindo! Nós devemos estar chegando.”

“Que casal lindo vocês são. Eu sou Erato. Aproxime-se de mim, Nix. Você precisa chupar isso.” Erato deu-lhe uma folha da murta que enfeitava sua própria cabeça para chupar. E com a outra mão trazia um buquê ou um ramo de murtas floridas, trançadas juntas com folhas de palmeiras, e os deu para mim.

 Em seguida, Erato nos brindou com uma bebida parecida com licor.

“Bebam, amados. Isto é mirto dos deuses. Bebam enquanto eu os preparo apropriadamente para o devir. Depois os deixarei prontos e a sós. Aí então poderão finalmente escolher um novo rumo a seguir. Bebam à vontade.”

 Bebíamos, Nix e eu nos entreolhando embevecidos um pelo outro enquanto Erato me despia gentilmente por completo, ungindo todo o meu corpo com um suave óleo essencial, e após terminar comigo, repetia o mesmo processo com a Nix, revelando as profundas cicatrizes de queimadura química por todo o seu corpo lindo e nu, lavando-a e a limpando com óleo, apagando todo o seu estigma, deixando somente na sua pele lisa remida o brilho lustroso de uma rara turmalina negra polida.

 Nix, embriagada de amor, entre sorrisos e suspiros após se examinar todinha, refeita, sem cicatriz alguma, envolveu seus braços no meu pescoço se inclinando gostosamente sobre mim, arfando levemente ofegante tão perto da minha boca que eu era capaz de respirar o frescor do seu hálito.

 Era como se houvéssemos só nós dois no mundo quando ela me disse:

“Se isso é mesmo um sonho, esse é o melhor sonho que eu já tive na minha vida todinha e não quero acordar desse sonho nunca mais.”

 Nos beijamos como se não houvesse amanhã, e sem mais nem menos, se estávamos de pé, já estávamos no chão. Estávamos cercados de flores durante a suave penetração, e me vinham à cabeça Don’t Explain, cantada por Billie Holiday, e poemas de Drummond:

A castidade com que abria as coxas

 e reluzia a sua flora brava

 Na mansuetude das ovelhas mochas,

 e tão estreita, como se alargava.

  

   Ah, coito, coito, morte de tão vida,

 sepultura na grama, sem dizeres

 Em minha ardente substância esvaída,

 eu não era ninguém e era mil seres

 em mim ressuscitados

 Era Adão,

 primeiro gesto nu ante a primeira

 negritude de corpo feminino

 Roupa e tempo jaziam pelo chão

 E nem restava mais o mundo,

 à beira dessa moita orvalhada,

 nem destino.

 Pensei ter recitado poesias e solfejos enquanto nós nos amamos no chão duro. Chão de guirlanda. O chão que foi cama para o nosso amor urgente, amor que não espera para ir para a cama. Amor em sonho. Amor no céu.

 Nenhum de nós estava procurando um relacionamento sério, mas de alguma forma nossos olhares se encontraram através de um salão cheio de pessoas que só queriam se divertir no sobradinho, e simplesmente a centelha da atração se acendeu. Nós conversamos, rimos. Agora uma noite pode se tornar uma semana, depois um mês, um ano ou mais. Quem sabe? O amor pode ser assustador, geralmente é mesmo, segundo dizem. Pode ser tão assustador quanto a própria morte. Mas esconde uma verdade sob suas ondas de desejo e de entusiasmo. Esse fogo do amor é o desejo de querer e preservar o objeto desejado? Será que é disso que as musas falam? Mas essa Nix não merece ser controlada por mim, nem por ninguém. Ela só merece ser agradada. Existe amor sem ciúmes? Existe mesmo um sentimento que enquanto vivo, esteja sempre à beira da derrota? Não há alternativa senão tentar... paciência, a incerteza faz parte da vida. Que espécie de compromisso estabelecemos na união dos nossos órgãos nesta noite, neste sonho delirante? Em todo caso, abri uma porta para esse destino, talvez à mais sublime das condições humanas, na qual o medo e a alegria se fundem em uma liga indissolúvel e se tornam inseparáveis. Agora me abri a esse destino. Agora dei liberdade ao meu ser com aquela liberdade incorporada no Outro, na minha companheira no amor. Qual a diferença que fará daqui pra frente, entre viver, sonhar que estou vivendo, e dar explicações sobre a vida?

“Em que você está pensando, gatinho? Estou com medo de acordar e estar feia de novo.”

“Você é maravilhosa. Sempre foi. Eu só estava divagando sobre umas coisas que um cara chamado Bauman disse sobre o que estou sentindo agora, por exemplo. Mas não quero te amolar com isso por enquanto. Eu estou pensando mesmo, é que dessa vez sou eu que preciso te contar uma coisa sobre mim, e pode ser você que não queira mais saber de mim, nem me ver, nem pintado de ouro. Nunca mais: a pouco tempo eu tive um caso, e o marido dela voltou cedo atirando de revólver. Então eu pulei pela janela largando tudo meu por lá. A verdade é que eu não faço ideia do que aconteceu depois. Só sei que dormi muito, e acordei todo machucado como se tivesse sido atropelado por uma locomotiva. A minha cabeça ainda dói um pouco. Já ela, ela pode até estar morta, ou aleijada. Não sei. Não sei nem como cheguei em casa. Eu tenho medo de saber que algo de ruim e irreversível possa ter acontecido com ela por minha culpa. Não sei como lidar com isso ainda. Por isso, pelo que você me contou dos seus pais, e tudo o que aconteceu contigo, dessa vez, eu que te digo; eu vou te entender se você quiser ir embora pra longe de mim e não olhar mais para trás.”

“Sinto muito por tudo isso. Mas pensando bem, se o marido dela tivesse matado ela, você certamente já saberia da tragédia. A não ser...”

“A não ser o quê?”

“A não ser que você nem tenha voltado para casa.”

“Como assim? O que você está dizendo? Se eu não voltei para casa, como nós ficamos?”

“Eu não sei, Jacinto. Morto você não está. Porque eu sei que eu não estou morta. Nós estamos sonhando juntos um com o outro. Isso está claro. Mas e se você tiver inconsciente após ter batido com a cabeça deitado em algum lugar sonhando comigo? Eu não sei. Mas se existe algum propósito nisso tudo, eu acho que nós ainda vamos descobrir quando acordarmos desse lindo sonho. Eu acredito que nós não nos encontramos por acaso. E mesmo que eu acorde, e que você não esteja ao meu lado, pode ter certeza, que vou procurar por você, e eu prometo que vou te encontrar.”

 Nem ao menos tive tempo de absorver completamente as palavras mais lindas e mais sinceras que já ouvi alguém usar comigo, e logo uma voz desconhecida, mas estranhamente familiar, vinda de toda direção ecoou alto se dirigindo a nós dois ao som de uma forte trombeta proclamadora.

 “Tudo pronto. Vocês escolheram seus novos rumos a seguir!”

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