Capítulo 2

REALIDADE BIDIMENSIONAL

Ela olha para ela em vez de olhar para ti, e por isso não te conhece.

Durante as duas ou três pequenas explosões de paixão que ela se permitiu a teu favor, ela, por um grande esforço de imaginação, viu em ti o herói dos seus sonhos, e não tu mesmo como realmente és. - Stendhal, Le Rouge et le Noir

      ✺ ✺ ✺

Respirando pausadamente com uma mistura de agitação e ansiedade, Maggie atravessou o pátio e se deparou com uma placa que dizia: Quartos SM, siga mais a frente. Além de um pequeno texto explicando que esses quartos abrigavam pacientes com os transtornos mais graves.

SM significava duas palavras que todos os internos de David Williams temiam. Essa era a trégua para que eles pensassem duas vezes antes de fazerem algo contra as regras. SM significava segurança máxima, onde os pacientes não tinham privacidade. Eram tão perigosos que não podiam nem tomar um banho sozinhos pois suas mãos estavam constantemente amarradas. Isso, certamente era contra a lei, porém Maggie ainda não tinha essa noção.

Quanto mais andava, mais escuro e fechado parecia ficar. O ar que ela respirava era úmido, como se pudesse asfixiá-la a qualquer momento. Enquanto andava, com os pensamentos "como alguém pode viver aqui?", ela se deparou com um pequeno facho de luz, dando destaque a "SM-1". Deu uma espiada em um único vidro que tinha para que os pacientes pudessem ver além do pequeno recinto e aparentemente o quarto estava vazio. Ficou por um tempo, parecendo uma curiosa e intrometida até ter a certeza de que não havia ninguém naquele quarto. Pela primeira vez olhou para o lado e viu o outro quarto. "SM-2". Era lá o seu próximo destino. Sem precauções nenhuma andou em direção, seu medo e ansiedade para o primeiro dia de trabalho se dissipou. Era como se ela estivesse acostumada a estar lá, como se realmente fosse o seu trabalho, a sua vida.

Observou pela pequena fresta. Ao início ela achou não haver ninguém, mas limpando o vidro embaçado pôde vê-lo. Suas expectativas falaram alto porém o quarto estava banhado em treva. Seu coração acelerou. Havia uma silhueta sentada na cama com os braços amarrados a uma espécie de corda de aço. Maggie engoliu em seco pegando sua chave e se perguntando se ele ficava assim o dia inteiro. Girou a chave na fechadura e viu que ele a olhou. Ela se viu pensando nele como se fosse um animal e se sentiu mal por isso. Mas não tinha culpa, ele era tratado como tal.

Abriu a porta do quarto com uma calma questionável e se viu dentro daquele pequeno cubículo que denominava quarto. Mesmo estando a poucos metros dele seu rosto estava na escuridão, e não deu para ver nada. Um sentimento de culpa brotou nela como se com alguma razão ela tivesse feito parte quando o amarraram ali como um animal selvagem. Maggie conseguia sentir seus olhos encarando-a, mas não se sentia com medo. A verdade era que sentia pena dele e se odiou por isso.

Dando um passo mais a frente ela finalmente tomou coragem e disse:

- Olá - Em quase um sussurro o saudou com receio de falar demais ou algo que não fosse profissional. - Sou sua nova doutora. - Depois de um breve momento que ele não disse nada, ela continuou: - Quero conversar com você, tem um lugar para que eu possa sentar? - Mexeu um pouco com as pernas e percebeu que estava muito cansada, seus pés doíam intensamente. Soltou um suspiro de frustração, ele ainda não a respondera e o pior era que Maggie ainda não conseguia ver seu rosto, apenas uma parte dos seus lábios.

Apertou os olhos e por um rápido minuto ele parecia estar sorrindo. Não um sorriso de boas vindas, mas um sorriso doentio e maníaco, que declarava a preço justo os profundos abismos do inferno. Springsteen apertou seus olhos novamente e aquele possível sorriso não estava em seu rosto. Ela pediu aos deuses que fosse só a sua mente confusa e cansada que lhe pregara uma peça.

- Maggie Springsteen? - Pela primeira vez ela ouviu sua voz, um tanto rouca e serena. Maggie deu um sorriso e sem se perguntar como ele sabia seu nome, disse em tom amigável:

- Sim, sou eu. Posso sentar ao seu lado? - Ele não fez nem respondeu nada, Springsteen tentou enxergar como um sim. Caminhou até aquela pequena cama e enfim sentou-se. - Obrigada.

Agora que estava a pouca distância, Maggie conseguiu observar claramente seu rosto. Seus cabelos caíam pelos ombros, desgrenhados e sujos, com um par de olhos negros, suplicantes e selvagens. No canto esquerdo dos seus lábios havia uma cicatriz profunda, mas pequena. Seu nariz era fino e delicado, a única marca feminina que havia em seu rosto. Por alguma razão ele se encontrava sem camisa, seu peito e abdômen todo tatuado, com desenhos que no escuro se tornavam rabiscos. Seu pulsos estavam amarrados fortemente a uma corrente de aço proveniente da própria parede. Como se tivesse sido construída para deixar eternamente alguém amarrado a ela. Seus pulsos estavam vermelhos e as juntas dos seus dedos pareciam sangrar. Tão grotesco, que até na escuridão era possível ver as profundas marcas. Ele usava calças brancas como todos eles, porém estava encardida e suja. Maggie olhou horrorizada para ele, que tinha uma expressão que ela não soube identificar.

- Eu... eu tenho que fazer algumas perguntas, pois quero saber mais sobre você. Vou direto ao ponto. - Mexeu em sua bolsa, pegando um bloco de notas. Maggie estava gaguejando e tremendo, sentindo-se escandalizada com a situação que um paciente do David Williams se encontrava. Ninguém havia lhe contado, nem mesmo seu próprio pai. Todos falavam bem do hospital, que todos os pacientes estavam limpos, bem servidos e até felizes. Ela posicionou sua caneta ao bloco de notas. Respirou com calma, não queria fazer perguntas bobas e idiotas. Queria perguntar algo que provavelmente ninguém o perguntara. Tinha de ser sensata. -  Gostaria de saber, o que você sente quando as pessoas lhe demonstram carinho ou até mesmo afeto? - Ela sorriu.

- E o que você sente? - Narcisse perguntou, parecia querer desafiá-la. Sua sobrancelha esquerda estava arqueada em um verdadeiro gesto de superioridade.

- Oh, perdoe-me. Não quis parecer impertinente. Eu apenas tenho que saber para cuidar de você. Não vou perguntar coisas muito idiotas, só gostaria de fazer diferente dessa vez.

- Diferente como?

- Bom, primeiramente não quero que fique amarrado aí. E está congelando, o clima não está um dos melhores, ainda mais aqui dentro e você está sem camisa. Suas roupas estão sujas...

- Nunca trabalhou em um lugar desses. - Céleste afirmou e esboçou um sorriso de sarcasmo, como se sentisse prazer em rir dela. Maggie se sentiu ridícula fazendo essas perguntas. Ele era uma pessoa normal e ela o tratava como um estrangeiro que não falava sua língua. Springsteen estava embaraçada e uma revolta cresceu dentro dela. Ela prometera a si mesma que nunca mais permitiria que alguém a diminuísse. É claro que era nova no trabalho, estava confusa ainda, mas precisava dificultar tanto as coisas?

- Nunca mesmo e acho que já deu para perceber. Não vou deixar ninguém nesse estado, então por favor, preciso que responda perguntas que eu for fazer. Quero apenas ajudá-lo, facilite esse processo.

- Não sente medo?

- Não foi isso que eu perguntei. Eu perguntei: O que você sente quando as pessoas lhe demonstram carinho ou afeto? - Sua respiração não era a mesma e essa frase soou descontroladamente acusatória. Sua raiva já a dominava como toda vez que alguém a humilhava.

- Por que a pergunta?

- Eu perguntei: O QUE VOCÊ SENTE...

- Nada.

- Como assim nada? Aqui consta que um dos seus diagnósticos é afefobia. Você sabe o que é isso? - Ela apontou com raiva para o caderno marrom que ela acabara de abrir em sua ficha. - Os diagnósticos não mentem! Agora responda a pergunta! - Ela gritou, batendo na cama com raiva.

- É tão engraçado uma novata tentando expressar a raiva.

- Responda a pergunta! - Ela gritou mais ainda, sua voz estridente fez um pequeno eco.

- Está brava porque se sente inferior a um doente mental que precisa da sua ajuda? Se sente intimidada, não é?

Ela deu um tapa em seu rosto. Pareceu tão errado que o momento passou-se em câmera lenta. Ela odiava sentir-se inferior, ridicularizada, dominada. A cicatriz profunda em sua perna pareceu queimar e sangrar, como se seu corpo a lembrasse o motivo do trauma da humilhação.

- Pare! - As mãos de Maggie foram ao seus ouvidos, os zumbidos foram ficando mais altos, tudo a sua volta estava girando como uma montanha russa. Sua perna direita estava ardendo, queimando. E percebeu que todos os acontecimentos de um terrível e traumatizante dia estava voltando do fundo da sua mente para atormentá-la. Ela olhou desesperadamente para baixo e viu que estava sem a calça e sem a roupa íntima. De novo não, pensou. Seu machucado estava sangrando muito, sua perna quase toda vermelha, enquanto o ferimento encontrava-se aberto e jorrando mais e mais sangue. - Pare! - Sua voz rouca de tanto berrar estava fraca agora, as cordas vocais provavelmente prejudicadas. Os zumbidos ficaram tão altos que seus gritos e berros desapareceram, até que um clarão envolveu seus olhos desesperados e angustiados. 

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