Os dois lados do amor
Os dois lados do amor
Por: Illana Mascarenhas
O COMEÇO DE TUDO

Já havia um tempo que as paredes do Hospital Sagrado Coração de Jesus se tornaram a casa de José Augusto Torres. Uma casa, não um lar. Nunca gostou daquele tipo de lugar e, tinha certeza: nunca gostaria! Em seu coração havia sendo constantemente alimentadas inúmeras lamentações sobre o fato de ter que estar ali e não poder ser nada além de um vegetal. O que mais lhe doía, porém era o fato de não poder fazer nada como uma pessoa “normal”, mas pode compreender tudo o que se passava com a mesma perspicácia e sabedoria de quando estava no auge da sua juventude; isso o maltratava de tal maneira que o fazia chorar, ou, pelo menos, sentir que chorava – coisa que nunca se deu ao luxo enquanto esteve na plenitude de sua vida.

José Augusto Torres. Ele tinha um nome forte e reconhecido: bastava que se pronunciasse o sobrenome Torres que qualquer pessoa das bandas do sertão saberia quem era ele e o que aquilo poderia significar. Ele se considerava um homem firme e que impunha respeito, mas sabia – ou tinha se conscientizado disso – que passou toda a vida torturando o coração com sementes de ódio e de desprezo, sentia, agora, que colhia os frutos dessas sementes: o seu maior objeto de ódio era ele mesmo. E esse ódio só crescia. Quando em vida, se odiava por não ter conseguido ter um filho homem, se odiava por ter perdido a esposa, se odiava por ter levado Edgar para o seio de seu lar, se odiava por ter sido fraco e sucumbido à maldita doença que o derrubou inúmeras vezes até que não pudesse mais se levantar, reduzindo a fortaleza de sua imagem àquela sombra na cama, que se resumia a estar deitado e alheio a tudo, enchendo de lamentações e ódios o coração e se alimentando da certeza de que, dificilmente, conseguiria se libertar desses sentimentos.

Torres suspirou – ou fez algum barulho que lembrou um suspiro – e Violeta se inquietou na poltrona. Ela tentava disfarçar – e o fazia bem –, mas ele sabia que ela temia que, qualquer barulho incomum produzido por ele, fosse o princípio do fim. “Coitada… Mal sabe que o fim já começou há tempos.” Ele pensou e se imaginou sorrindo um riso que transmitia todo o poder que o seu sangue trazia, retratando tudo o que um dia fora e que nunca mais voltaria a ser, e sentiu quando Violeta se aquietou na cadeira, mais tranquila por nada de ruim ter acontecido.

Era incrível que, mesmo com os barulhos insuportáveis dos aparelhos, ele tinha a habilidade de ouvir as pálpebras dela se fecharem e seus lábios sussurrarem alguma coisa; era capaz de apostar seu último suspiro para que ela estava orando, era a única coisa que a irmã sabia fazer da vida, e nunca entendeu porque ela nunca havia se trancado em um maldito convento! Seria mais vantajoso, afinal, ela nunca havia casado ou sequer se envolvido com algum homem – pelo menos não que ele soubesse. Se esforçou para tentar olhá-la, mas foi em vão… Ainda assim tinha bem clara a imagem da irmã: uma senhora baixinha, cabelos curtos e cheios de ondas, o rosto redondo com bochechas salientes e os olhos encantadoramente castanhos. Provavelmente, agora ela estivesse mais envelhecida – era o que acontecia às pessoas que acompanhavam o processo de doença de outrem. Em meio à nova imagem da mulher que ele construída em sua mente, ele ouviu quando ela disse:

- Deus é bom, José. As coisas vão dar certo do jeito que tem de ser. Acredite. Eu rezo a cada minuto pela sua alma que se mantém prisioneira nesse corpo.

Torres desejou soltar um longo suspiro e revirar os olhos, desejou também ter pernas e voz firmes para poder contrapor aquilo. Que tipo de deus fazia isso com seus filhos? Nunca entenderia! Na verdade, nunca se prestou a entender a lógica religiosa, era algo para o qual não tinha tempo e, tampouco, vontade. Em vida, a sua esposa tentou influenciá-lo, e, por ela, ele até participou de algumas missas aos domingos, mas era apenas o corpo ali, a sua alma viajava por todos os problemas que haviam sido deixados em casa ou no trabalho. Ouviu Violeta tagarelar mais uma porção de coisas sobre o sentido da doença, sobre dar e receber o perdão, se lamentou por não poder calar a irmã e, por um instante, se permitiu fazer uma oração pedindo que Deus – ou quem quer que fosse! - libertasse a sua alma daquele corpo maldito e inútil e o levasse para um outro plano, mesmo que fosse para o inferno.

Estava no ápice de sua oração quando ouviu a porta ranger e seu coração estremeceu. Sabia quem estava por vir. Segundos depois, o órgão que ainda insistia em mantê-lo vivo se espremeu num sentimento desgovernado de ódio, o aparelho refletiu levemente essa mudança de sentimentos. Os passos leves e elegantes que seguiam na direção de sua cama fizeram com que o seu coração acelerasse e, por um instante, ele pensou que aquele sentimento o sufocaria e o libertaria daquele sofrimento físico, como se a sua prece tivesse sido atendida. Respirou fundo, ou foi a ação que seu corpo interpretou. Não demorou para que a visse, seus lindos olhos escuros o fitaram por cima como se um eclipse tomasse conta do céu, seus cabelos em grandes cachos soltos num tom castanho médio que tinham a beleza escondida por uma tinta que os deixavam mais claros, o tom ruborizado da pele morena, os lábios cheios de carne se movimento até formarem um sorriso cruel.

- Olá, papai. - foi o que eles disseram num movimento quase que irônico. A escuridão dos olhos dela se movimentaram e olharam para onde estava Violeta – Olá, titia. - seu sorriso se alargou e ele viu sinceridade nele

Ele ouviu os passos dela se afastarem, indo encontrar a tia e poderia se sentir mais aliviado se tivesse a certeza de que seus olhos ferozes não voltariam a tentar devorá-lo. Um segundo de silêncio foi seguido pelo barulho de mãos por entre cabelos, um estalo de um beijo e a voz da mulher voltou a ecoar pelo apartamento do hospital

- Tive um tempo livre na empresa e vim te libertar, pelo menos por alguns instantes.

- Joana… - Violeta falou num tom de censura – Não me sinto como uma prisioneira para você vir me libertar!

- Imagino que a senhora não se sinta… - ela falou e continuou num tom mais baixo – A senhora tem um coração muito bom para sentir o peso das coisas.

Elas conversaram por um bom tempo, aumentando aquela dor que tomava conta de Torres. Não suportava ouvir a voz da filha, não podia vê-la naquele momento, mas sempre que imaginava a imagem dela, ela estava rodeada daquele ar prepotente e de um olhar desafiador e cheio de orgulho, e, no fundo, uma certa satisfação por vê-lo naquela condição. Ele tinha consciência que Joana sabia o que ele sentia por ela, e tinha certeza que ela sentia o mesmo por ele, mesmo sem saber o por quê se odiavam desde sempre. Ele não amava Joana como é obrigação de um pai diante de um filho que lhe é dado como bênção, mas sempre havia cumprido com as suas obrigações predestinadas, afinal ela era sangue de seu sangue, carne de sua carne e, mesmo não sendo a sua primeira opção, era a única filha que tinha.

Pôde sentir quando o espírito calmo de Violeta se afastou do apartamento e sentiu a presença de Joana dominar o ambiente e reduzi-lo a menos do que significava naquele momento – a sua menina sempre teve esse talento, de domar as coisas. Perdido nesse sentimento, seus olhos se fecharam e ele quase perdeu o ar, mas se desesperou ao imaginar os lábios de Joana se contorcendo num riso malévolo e a sua voz sussurrando uma falsa compaixão. Abriu os olhos, viu os cachos dela aparecerem sorrateiramente e seu coração foi dominado pela certeza de que sua imaginação nunca havia sido tão semelhante à realidade.

- Então, papai… Como vão as coisas? - ela ergueu as sobrancelhas em meio a um largo sorriso como se esperasse que alguma resposta saísse daquele velho corpo – Os médicos dizem que o senhor é um espírito forte. - ela pausou e seus olhos pareceram ficar tristes – Eu acredito nisso. Na verdade, eu sei disso melhor do que qualquer pessoa. - Torres pôde ver que o olhar da filha se manteve distante – Talvez, só uma pessoa saiba disso tão bem quanto eu… O senhor sabe de quem eu estou falando, não é? - os olhos de Joana se espremeram como se estivesse desconfiada de algo, mas, depois ela piscou o olho direito para Torres e sorriu.

Ele percebeu que ela continuava a falar alguma coisa, mas não conseguia compreender qualquer das coisas que Joana disse e preferiu deixar as daquela maneira. As coisas sempre foram daquele jeito: ele preferia ignorar o que Joana falava – ou estava muito ocupado para conversar com ela ou, simplesmente, assentia positiva ou negativamente, mas nunca se deixava ser domado pelo espírito dominador da filha. Ela tinha muito da mãe e, talvez, fosse por isso que ele, simplesmente, preferia deixá-la em segundo plano; de certa maneira, Torres culpava Joana pela perda de sua esposa – ela partira enquanto dava à luz, deixando como herança aquela pequena criaturinha, e ele não tinha a menor ideia do que fazer com ela.

- Agora o senhor tem que me ouvir, não é? - ela falou como se escutasse os sussurros da mente dele – Não tem como escapar, papai… O senhor não tem o seu trabalho, não tem as suas ocupações… - ela olhou para o pai no fundo dos olhos e forçou uma expressão de tristeza – Infelizmente, o senhor não pode me responder.

Torres poderia jurar que viu os olhos da filha marejados, mas teve certeza que foi tudo uma ilusão quando a viu sorrir e se levantar, afastando seu rosto da área visível.

- Bem, papai… Chega de falar de tristeza! - ele só pôde ouvir a voz dela, mas sabia que não estava distante, afinal, ela sempre queria estar perto o suficiente para acompanhar as reações dele – Já te falei que estou noiva do Théo? Não lembro… Acho que sim, mas imagine só… - ela soltou um riso e estendeu a mão para que o pai pudesse ver o anel trabalhado em ouro branco, com pavés de diamantes ao redor e um belo diamante de 15 pontos com talho princesa bem ao meio da joia - Noiva do Théo Sampaio, filho do seu arqui-inimigo, papai!

Se pudesse, Torres se contorceria ali mesmo! Já sabia que Joana e o filhinho mais jovem de Sampaio estavam se envolvendo, mas pensou que aquele relacionamento bobo e sem sentido não fosse durar muito tempo; a verdade é que aquela situação já havia passado dos limites! Se não fosse apenas um corpo inútil, ele não permitiria que essa situação chegasse a esse ponto! Nem podia se castigar pela sua condição… Tinha feito algo realmente muito ruim em algum momento para ser alvo de todo aquele desgosto. Imagine só: a sua família passaria a ser “Torres Sampaio”, o seu sangue se misturaria com o daquele homem desprezível e arrogante! Um verdadeiro desgosto… A morte era melhor!

- Não fique preocupado nem triste, papai, como sei que o senhor geralmente fica quando se trata de mim. Ele é uma boa pessoa e foi graças a essa união que a nossa linda empresa está tomando outros rumos. - ela sorriu – Estamos expandindo a empresa… A nível internacional – ela abriu a boca para soletrar cada sílaba para que as coisas ficassem bem claras. Torres sentiu quando ela se abaixou e sussurrou – De uma maneira que o senhor nunca conseguiria. - Joana levantou para onde estava - Isso não é espetacular?

O ódio em Torres se expandiu de tal maneira que repercutiu com ainda mais força nos aparelhos. Ela olhou os aparelhos sem demonstrar nenhum tipo de preocupação.

- Bem, papai… - ela suspirou – Parece que o senhor ainda está vivo. Isso que importa, não é mesmo?

Joana estava prestes a se jogar na poltrona antes ocupada por Violeta quando a senhora chegou. Ela agradeceu a Joana por ter acompanhado Torres enquanto ela se alimentava, mas logo percebeu que o barulho dos aparelhos estavam alterados…. Ficou preocupada e pensou em chamar um médico.

- Não se preocupe, titia, estava apenas falando quanto o amo e como deveríamos ter aproveitado mais enquanto isso tudo não havia acontecido. - ela olhou brevemente para o pai e, com um sorriso angelical, disse: - Ele deve ter se emocionado.

Violeta hesitou em falar alguma coisa, provavelmente, por conhecer a relação conturbada entre os dois e saber que, qualquer demonstração de carinho, é algo praticamente impossível. Mas, depois de um tempo, ela disse com a voz ainda carregando um tom de desconfiança:

- Deve mesmo, querida! - ela tocou a mão de Joana – Sempre é bom escutar essas coisas dos nossos entes queridos…

Joana despediu-se da tia e, ao sair, deu um beijo na cabeça do pai, simulando ter compaixão pela situação em que ele estava e disposta a lhe oferecer amor como suporte de cura. Quando ouviu a porta fechar, ele sentiu o ar ficar mais sutil, mas quis explodir de ódio por todo teatrinho que Joana estava fazendo. Estava com ódio, mas, em meio a isso, algo que brilhou em seu íntimo o fez se acalmar e ele quis sorrir: admirou-se pelo cinismo da filha e, pela primeira vez, sentiu-a como filha de fato. Ele viu que Joana havia se tornado uma mulher e que, finalmente, fazia jus ao sobrenome que carregava desde que estava no ventre de sua mãe. A personalidade forte, firme, inabalável e inescrupulosa que adquirira mostrava que ela nascera na família certa, seu único defeito era… Bem…. Ser uma mulher… Mas, isso já não devia importar tanto, afinal ela é quem estava dirigindo a empresa e, pelo que ela vivia falando, ia muito bem nessa função.

O silêncio voltou a imperar no apartamento do hospital e, ouvindo o Pai Nosso sussurrado por Violeta, Torres sentiu, em seu coração, uma pontadinha de orgulho por quem Joana se tornou – alguém parecida com ele. Ele quis sorrir. Um novo sentimento brotou dentro dele, e ele sentiu vontade de gargalhar, mas ele apenas sorriu - chegou a sentir seus lábios se movimentarem. Pena que ninguém pôde ver aquilo, mas, ele tinha sentido e isso já era o suficiente para que ele se sentisse satisfeito. No seu coração, ficou uma lição: parecia que do ódio também era possível construir algum tipo de amor.

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