Lembranças e cicatrizes.

A N G E L I Q U E

Entre soluços, tento convencê-lo de não cometer tal atrocidade. Porém nada é capaz de mudar sua decisão, até porque ele sabe, é minha vida ou a sua. E ele parece ter tomado sua decisão.

— Eu não vou, não vou! — exclamo. — Você não pode fazer isso!

— Posso sim, meu bem. Eu posso tudo, pequeno anjo. — sorri.

— Eu não vou!

As lágrimas deixam minha visão turva, porém posso ver o momento em que se afasta da porta, caminha até mim e com ódio, aperta meus braços. Sei que ficarão marcados, como sempre. O aperto se intensifica, seu rosto fica próximo ao meu, posso sentir seu hálito de bebida e sua respiração acelerada.

— Você não tem escolha, Angelique. — resmunga. — Pode chorar, pedir socorro, tentar fugir. Nada mudará seu destino.

— Eu odeio você! Espero que morra! — esbravejo, com ódio.

Minha fala parece despertar a fúria dentro de si. Suas mãos abandonam meus braços, mas antes que eu possa fugir, me arrastar para longe dali, ele me segura pelos cabelos, impedindo minha fuga. Meu corpo é arremessado contra a parede mais próxima, ele se aproxima e logo, um soco atinge minha face, molhada pelas lágrimas.

— Angel, você não irá se livrar de mim tão cedo...

[...]

Em um rompante, me ergo da cama. Assustada, grito, acreditando mais uma vez que aqueles pesadelos — ou melhor, recordações — são reais, que estou vivenciando tudo aquilo outra vez. Alguns segundos são necessários para meu coração voltar a bater em seu ritmo normal, minha respiração acalmar e minha mente compreender que tudo isso acabou, que foi mais um sonho ruim.

Sento-me na cama e envolvo meu corpo no edredom macio, deixado por Marilyn ali para mim. Está frio, e da janela do meu quarto, posso ver o temporal cair lá fora. Quando finalmente estou mais calma, pego minha toalha, roupas e produtos de higiene pessoal, vou para o banheiro em frente ao meu quarto — que por sorte, está livre —, e tomo um banho rápido.

Ao sair da banheira, passo o olhar pelo meu corpo, refletido no espelho enorme. Algumas marcas somem, outras ainda estão avermelhadas. Alguns cortes estão, aos poucos, sarando. Mas o pior deles é a pequena cicatriz em minha barriga, bastante avermelhada e dolorida, com alguns pontos. A pequena incisão de onde foi retirado o projétil da bala que me atingiu, naquela maldita noite. A cicatriz que para sempre será uma lembrança do meu doloroso passado.

Visto roupas quentes, o frio parece mais intenso a cada instante. Deixo minhas coisas em meu quarto e desço ao andar inferior, ignorando a dor pouco forte em meu abdômen. Ali estão maioria dos hóspedes, todos em volta da lareira. Há um casal asiático, conversando baixo. Ao seu lado, duas mulheres já idosas bordam algo enquanto conversam. Perto delas, lendo, está um homem ruivo, jovem, com cabelos grandes.

Marilyn ocupa seu posto no balcão. Está distraída, lixando as unhas das mãos. Me aproximo em silêncio. Dou um sorriso simpático aos hóspedes, que me cumprimentam com um aceno e um sorriso. Vou até Marilyn, que ao me ver, sorri.

— Olá, querida. Gostou do quarto? Descansou? Está com fome? — dispara.

— Oi. — rio. — Estava tudo ótimo, dormi muito bem. E não estou com fome.

— Tem certeza, meu bem? Fiz biscoitos, chá e café. — nego. — Também fiz bolo, de cenoura. E de chocolate.

— Obrigada, mas estou um pouco enjoada. Depois irei comer algo.

— Enjoada? — assinto.

Em questão de segundos, uma forte ânsia me atinge. Meu abdômen dói, mais especificamente o local do tiro. Minha visão fica embaçada e o frio aumenta. Respirar é difícil. Sento-me em uma das poltronas claras, ali próximo ao balcão. Respiro fundo. Marilyn, preocupada, se aproxima. Na sala, os hóspedes olham para nós, curiosos, preocupados.

— O que sente, querida? — questiona.

— Frio, fadiga. — leva sua mão direita até minha testa. — Dói muito.

— Você está ardendo! — exclama. — Alguém ligue para o Doutor Hunter!

Os hóspedes começam a murmurar entre si, e se levantam. Um deles corre, o outro liga para alguém. A cada segundo, permanecer acordada é mais difícil. Escuto vozes ao meu redor, mas não consigo distinguir de quem são. Minha visão turva, aos poucos, escurece. E em questão de segundos, apago.

Certo, Jessie. Amanhã ela irá, sem falta. — diz uma voz feminina no outro lado da porta do meu quarto, e identifico ser Marilyn. — Sim. Isso. Até logo, querida.

Tento me levantar, mas a dor em meu abdômen impede. Está mais fraca, mas ainda dói. Em minha testa, há uma toalha úmida e ao lado da cama, uma bacia com água. Coloco a toalha ali, sento-me na cama, mesmo com as dores e percebo que a sensação de fadiga já passou, assim como a tontura. Olho no pequeno relógio em cima da mesa de cabeceira, são nove e quinze, já anoiteceu. Lá fora, a tempestade ainda cai.

A porta é aberta, porém não é Marilyn que entra ali, mas sim uma das senhoras que vi mais cedo. Ela é ruiva, com cabelos pouco acima dos ombros, não aparenta ter mais que sessenta anos, tem belos olhos verdes e um sorriso simpático. Senta-se na ponta da cama, e leva sua mão até minha testa, para verificar minha temperatura.

— Já acordou, querida? — diz, com uma voz doce. — Como se sente?

— Cansada, porém melhor.

— À propósito, sou Camila. — sorri. — E todos sabemos que você é Angel, nova moradora.

— Sim, sou eu mesma. — sorrio.

— Fico feliz que está melhor, você nos deu um susto dos grandes! Fiquei tão assustada que errei o bordado que estava fazendo. — suspira.

— Desculpa. — peço, envergonhada.

— Não é sua culpa, filha. — ri. — Aquele bordado já estava bem mal feito, digamos que Diana não é muito boa com o ponto cruz. — confessa baixo.

— O que anda falando de mim, Camila? — resmunga outra senhora, na porta do meu quarto.

Essa tem os cabelos brancos, longos, presos em um rabo de cavalo. Usa óculos, e em suas mãos, traz um kit de costura. Encara Camila, furiosa, esperando por uma resposta. A senhora ao meu lado apenas ri.

— Estou sendo sincera, Diana. — diz. — Seu bordado não ficou muito bom.

— Assim como esse seu cabelo, todo mal pintado. — diz Diana, deixando Camila irritada.

— Melhor do que esse seu, mal cuidado e ressecado!

— A sua pele também está assim, e não digo nada! — devolve.

Tento segurar o riso, mas é difícil. As senhoras seguem em seu debate, trocando ofensas. Sobre seus dotes culinários, beleza, talento para costura. Em instantes, Marilyn aparece, rindo.

— Sem brigas aqui, Angel precisa descansar. — pede.

As senhoras se vão, resmungando baixo, trocando insultos entre si. Marilyn maneia a cabeça, rindo, e senta ao meu lado.

— Acredite se quiser, elas são melhores amigas. — dá de ombros. — Está melhor?

— Sim, desculpa pelo transtorno. — peço.

— Não precisa se desculpar, meu bem. — sorri. — Nós iríamos chamar o médico para te examinar, mas a tempestade dificultou. — suspira e olha para a janela, de onde temos uma visão do temporal.

— Está tudo bem, já me sinto melhor. Não era necessário.

— É claro que é, Angel. Você até desmaiou, isso não é normal. — repreende. — E é por isso que você irá amanhã no médico.

— Mas... — me corta.

— Sem mas, Angelique. Você vai para consulta, quero ter certeza que você está bem. — suspiro, derrotada. Marilyn não irá desistir.

— Tudo bem, eu irei. — ela sorri.

— Ótimo, querida. — se levanta. — Vou buscar algo para você comer. Volto logo.

Quando ela sai, deito na cama outra vez. Sinto a dor em meu abdômen, e então me recordo do tiro. Com cuidado, ergo minha blusa e encontro aquela área completamente vermelha, mais do que o normal. É, agora devo me concentrar em arrumar uma desculpa para isso.

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