POV: Elara
O silêncio era esmagador.
A escuridão da cela que me envolvia só não era pior do que o cheiro de umidade e ferrugem que impregnava o ar. Minha pele estava coberta de poeira e suor, e meus pulsos latejavam com os hematomas causados pelas correntes que me prendiam.
Mas nada doía mais do que a traição.
Cedric.
Eu o amava. Eu sempre o amei. Desde crianças, quando corríamos pelos campos, quando ele prometia que me protegeria para sempre. Quando ele dizia que eu era a única pessoa no mundo que ele queria ao seu lado…
Meu corpo estava exausto, mas minha mente não me deixava descansar. Porque assim que meus olhos se fechavam, o pesadelo começava.
O fogo.
Os rugidos dos dragões.
A sombra colossal pairando sobre mim.
E a marca em minha testa, queimando como se fosse parte das chamas.
. . .
Acordei com um solavanco quando um jato de água gelada foi atirado contra meu rosto.
Ofegante, tremendo, tentei abrir os olhos e enxergar através da névoa de confusão e frio.
— Está na hora de acordar, minha rainha.
Meu coração se apertou.
Cedric.
Mas não o Cedric que eu conhecia, ou ao menos, achei que conhecia.
Ele estava parado diante de mim, usando suas vestes reais, impecável e intocável, como se eu não fosse nada além de um inseto sob seus pés. Seus olhos azuis, aqueles que um dia brilharam de amor por mim, agora estavam frios, vazios.
— Cedric… — Minha voz saiu rouca, quebrada, e não pude evitar ter um acesso de tosse.
Ele inclinou a cabeça levemente, como se estivesse analisando uma peça defeituosa.
— Vossa Majestade agora é apenas uma traidora.
As palavras cortaram mais do que qualquer lâmina poderia.
Balancei a cabeça, sentindo o desespero me sufocar.
— Por quê? — Minha voz tremia. — Por quê, Cedric? Como pôde fazer isso comigo? Nós nos amamos… Você me prometeu…
Ele soltou um riso seco, descrente.
— Amor? Você ainda acredita nisso?
Dei um passo vacilante à frente, puxando as correntes que me prendiam.
— Sim! — Minha voz falhou e tossi novamente. — Cedric, eu te amo! Eu sempre te amei! Tudo o que sempre quis foi estar ao seu lado!
Algo brilhou em seus olhos por um breve instante. Algo que se parecia com hesitação. Mas então, tão rápido quanto veio, desapareceu.
Ele cruzou os braços.
— O amor não governa reinos, Elara. Poder governa.
Meu peito se apertou.
— Isso não é você. Isso… Isso não é o Cedric que eu conheço.
Ele riu de novo, mas dessa vez foi um som amargo.
— O Cedric que você conhecia foi uma ilusão, criada para que você se apaixonasse por mim sem hesitação.
As palavras me atingiram como um soco no estômago.
— Você… você está mentindo.
Ele me olhou de cima, impassível.
— Foi meu pai quem me instruiu. Desde o momento em que soube que me casaria com você, ele me ensinou que eu deveria ganhar sua confiança, seu amor. E então, quando o momento certo chegasse, tomaria o que era meu por direito.
Minha respiração ficou entrecortada.
— O quê…?
Cedric inclinou a cabeça.
— Você nunca percebeu? Meu pai sempre quis este reino. Ele sabia que não poderia conquistá-lo pela força, então fez isso da forma mais sutil possível: através do casamento. Claro que depois de sua infeliz partida, precisei honrar a morte do velho. Acho que fiz um bom trabalho, não?
O chão pareceu desaparecer sob mim.
— Você… Você nunca me amou?
O silêncio que se seguiu foi pior do que qualquer resposta.
Minha visão ficou embaçada pelas lágrimas. Eu balancei a cabeça, recusando-me a acreditar.
— Mentira — sussurrei. — Isso é mentira. Você segurou minha mão quando eu perdi meu pai. Você me abraçou quando minha mãe se foi. Você… Você me olhava como se eu fosse o mundo para você.
Por um momento, apenas um momento, vi algo em seu olhar. Algo que parecia… dor.
Mas então, ele desviou o olhar e deu um passo para trás.
— Você é engraçada. Ontem me acusou de ter matado seu pai, e agora apela para as minhas demonstrações de sentimentalismo. Ora, querida, você precisa decidir. Eu sou seu heroi? Ou seu vilão?
A porta se abriu atrás dele, e dois guardas entraram.
— Majestade, está na hora.
Minha garganta fechou.
— O quê?
Cedric suspirou, como se estivesse entediado.
— Sua execução.
A palavra pareceu fazer meu coração parar.
Eu sabia que isso poderia acontecer. Eu sabia que ele queria me tirar do caminho.
Mas parte de mim, a parte estúpida e ingênua, acreditava que ele não seria capaz de me matar.
Mas eu estava errada.
— Adeus, Elara.
E então, ele se virou e saiu.
Os guardas me puxaram, e eu não tive forças para resistir.
. . .
A praça central estava lotada.
O povo estava dividido. Alguns gritavam para que eu fosse queimada. Outros choravam, pedindo piedade.
Mas ninguém fez nada.
Ninguém me salvou.
Meus pés estavam amarrados ao poste no centro da pilha de palha. As correntes nos meus pulsos haviam sido removidas, mas a liberdade não significava nada quando o fogo estava prestes a consumir tudo.
Cedric estava lá.
Sentado no trono que deveria ser meu.
Assistindo. Impassível.
E quando o executor acendeu a tocha e a ergueu em minha direção, eu fechei os olhos.
E então…
Um rugido ensurdecedor cortou o céu. O chão tremeu. As chamas da tocha foram apagadas por um vento violento.
E quando abri os olhos, vi a sombra colossal que cobria a praça inteira.
Um dragão.
As pessoas gritaram, ensandecida, e começaram a correr por suas vidas. O fogo começou a consumir não a mim, mas os edifícios ao redor. As chamas se espalharam, e os guardas correram para se proteger.
E então, a voz ecoou em minha mente.
“Você… Eu te encontrei.
Meus olhos se arregalaram. Eu o conhecia. De alguma forma, eu o conhecia.
Aquele era o dragão dos meus pesadelos… e ali, brilhando em sua colossal testa, a mesma marca que atambém surgia em meus sonhos…a
Vi quando Cedric, pálido e enfurecido, encarou a enorme carcaça dracônica como se contemplasse o próprio fim do mundo. Então ele se levantou e sacou a espada, pronto para lutar, ou pelo menos
chamar os guardas de volta.
O dragão mergulhou, agarrou-me em suas garras e me levou para o céu.
Eu estava livre de meu algoz… e literalmente nas garras de outro.
POV: Elara Acordei assustada, com a pele fria e embebida em suor. Olhei para os lados e vi que não estava numa cela escura e fétida, e não havia cordas ou grilhões me atando às paredes. Na verdade, eu estava num belo quarto. O lugar era quase tão lindo como meu antigo quarto no palácio. Eu estava deitada numa cama enorme, onde cinco pessoas poderiam dormir tranquilamente, com roupa de cama vermelha e fios de ouro nos travesseiros. Como se houvesse escutado meu arquejo assustado ao despertar, a porta se abriu e um homem surgiu. Não. Ele definitivamente não era um homem. Era muito alto, tinha pouco mais de dois metros facilmente. Sua pele era bem escura, como um céu noturno sem estrelas, e os olhos cor de laranja brilhavam como a mais quente das chamas. Ele era muito forte e musculoso, e as orelhas pontudas, parcialmente escondidas pelos cabelos trançados para trás, lembravam muito as de um elfo. “Princesa.” A sua voz era profunda e grave. Poderia facilmente se tornar intimidadora,
POV: ElaraO silêncio que se seguiu foi tão intenso que pude ouvir minha própria respiração acelerada. O salão parecia ter congelado no tempo, mas logo o som de passos ecoou pelas paredes de pedra. Os séquitos de Lysara, impassíveis, começaram a vir na minha direção.Minha pele arrepiou. Eu estava desarmada, em território inimigo, e algo me dizia que minha morte não seria nada rápida…Mas antes que qualquer um deles pudesse me tocar, a voz fria do Rei Dragão ressoou no ambiente: — Parem.Foi apenas uma palavra, mas carregada de um poder tão inegável que os guerreiros hesitaram no mesmo instante. Draven ainda não havia se movido de seu lugar, e nem precisava. Sua autoridade era total. Seus olhos âmbar estavam fixos em Lysara, estreitados em um olhar gélido. — Vossa Majestade não deve ser tocada. Houve um murmúrio de choque. Até mesmo Lysara piscou, atordoada, antes de soltar uma risada baixa e descrente. — Você só pode estar brincando. — Não brinco com coisas sérias. — O r
POV: Elara Já era chegada a hora. A hora da minha punição, fosse o que fosse.Eu estava andando de um lado para o outro, absorta nos meus pensamentos, quando um som na porta me fez congelar. Endireitei a postura, preparando-me para mais um embate com o rei dragão, mas, para minha surpresa, não era ele. Um homem alto e de ombros largos entrou no quarto, a expressão curiosa estampada no rosto. Ele possuía cabelos dourados e ligeiramente desgrenhados, contrastando com os olhos dourados que brilhavam com uma intensidade travessa. Sua presença não era opressora como a de Draven, mas havia algo nele… um ar de perigo velado sob a aparência descontraída. — Você é a humana. — Ele encostou-se à porta, cruzando os braços e me observando com interesse. — Imaginei quando finalmente nos conheceríamos.Eu franzi o cenho, irritada com a forma casual como ele se referiu a mim. — E você é? — Kael. — Ele inclinou a cabeça, avaliando-me como se eu fosse algum tipo de criatura exótica. — Guerrei
POV: Elara Eu já estava farta de tudo aquilo. Enfurecida, saí do quarto e fui correndo para Draven, que caminhava tranquilamente apesar de nossa discussão tensa segundos atrás: — O que são essas marcas? — perguntei, segurando meu próprio pulso com força. Draven ficou em silêncio por um longo momento. — Responda! Estou aqui como sua refém, apesar de você insistir que não é o caso, mas eu quase morri há pouco tempo atrás e agora ISSO apareceu! Como se algum feitiço houvesse sido recitado, as marcas começaram a desbotar e desvanecer. Minha pele agora estava lisa novamente. Arfei e encarei minhas duas mãos, apenas para confirmar que realmente tinham desaparecido. — Você não deveria tê-las ainda. Minhas sobrancelhas se uniram em uma expressão de pura frustração. — Isso não responde minha pergunta! — Dei um passo à frente. — Você disse aos outros dragões que eu fazia parte de uma profecia. E até agora não me explicou nada sobre isso. Exijo que me responda! Não havia diversão em
POV: ElaraEu podia sentir a tensão crescendo entre todos nós, como um incêndio prestes a consumir tudo. Lysara ofegava, os punhos cerrados ao lado do corpo. Seus olhos refletiam a chama que ardia dentro dela.— E o que te faz ter tanta certeza? — Minha voz soou mais fria do que eu pretendia. Lysara ergueu o queixo, a postura erguida como a de uma rainha. — Porque eu fui criada para isso. Desde criança, me ensinaram que meu destino era estar ao lado do Rei Dragão. Que a profecia falava de mim, da minha conexão com ele! — Seus olhos dispararam para Draven, que permaneceu em um silêncio impenetrável. — Você sabe disso, Draven! Você sempre soube! Ele não respondeu de imediato. Seus olhos âmbar estavam fixos nela, mas havia algo mais ali… um cansaço oculto, um peso nos ombros. Então a dragonesa que me queria morta também era uma… candidata a ser parte da profecia? Aquilo era demais pra minha cabeça…E obviamente, Draven havia deixado aquele “pequeno” detalhe de fora. Que surpres
POV: DravenO vento gélido cortava o céu escuro enquanto eu, na forma dracônica, e Kael, montado em minhas costas, avançávamos em direção à fronteira. Não trocamos palavras; o silêncio entre nós era carregado de tensão. Havia um peso em meu peito que eu tentava ignorar — uma combinação de raiva reprimida, um pressentimento desagradável e… algo mais. Algo que tinha olhos tão intensos quanto o fogo e que agora estava trancada em meu castelo.Quando nos aproximamos das torres de vigia da fronteira, avistamos o caos que se desenrolava ali. Soldados de Solaris estavam encurralados, cercados por meus guerreiros dracônicos. O cheiro de sangue humano pairava no ar, misturado ao fedor do medo.— Malditos invasores… — murmurei, cerrando os dentes.Kael manteve o silêncio. Ele sabia o que aquela visão me fazia lembrar: o cerco, a traição, o massacre que destruiu tudo o que eu amava.Assim que pousamos, nossos homens fizeram uma reverência rápida, mas eu não estava interessado em formalidades. M
POV: ElaraO coração batia com força enquanto eu caminhava apressada pelos corredores do castelo. Cada passo ecoava como trovões em meus ouvidos, impulsionado pelo pânico que crescia em meu peito. As palavras de Kael, o olhar sombrio de Draven antes de partir para a fronteira… algo estava errado. Muito errado. Cedric. Ele tinha invadido o território dos dragões. Eu nunca soube de qualquer inimizade que o rei usurpador nutrisse pelos dragões, mas era senso comum que éramos inimigos e não deveríamos confraternizar. O que será que ele queria? Será que sabia que eu estava aqui?Afinal de contas, eu fui vista sendo salva, pelo reino todo, por um dragão.Apressando o passo, ignorei os olhares curiosos dos guardas e servos. Eu precisava de respostas. Precisava de Draven. Ao virar o último corredor, ouvi vozes exaltadas vindas de uma enorme porta dupla à minha frente. O brasão dracônico estava esculpido na madeira maciça — a sala do conselho. Sem pensar, empurrei a porta e entrei.
POV: DravenA escuridão me envolvia como um manto sufocante. Eu não via nada, mas sentia.O cheiro de fumaça, de carne queimada, de sangue…Gritos ecoavam ao meu redor, misturando-se ao rugido furioso das chamas. O calor era insuportável, consumindo tudo. Eu tentava me mover, mas meu corpo estava preso, como se correntes invisíveis me segurassem.Então eu a vi.Elara, ajoelhada no meio do fogo, as vestes escuras chamuscadas, os olhos arregalados em terror. Ela tentava se levantar, mas algo a impedia.Um vulto surgiu das sombras. Cedric.Ele sorriu para mim antes de enfiar a lâmina através do peito dela.Eu gritei.Acordei ofegante, o coração martelando contra as costelas. Um suor frio escorria pela minha pele. Passei as mãos pelo rosto, tentando afastar a imagem da minha mente.Mas que merda.Levantei-me, sentindo um peso insuportável no peito. Eu precisava sair dali, respirar, afastar aquele maldito pesadelo.Saí do quarto, percorrendo os corredores em silêncio. O castelo estava merg