2 - MESTRE

Alcei voo e parti ao encontro do meu grande amigo e venerável Mestre, o ancião Wyrmygn. Com duas horas de voo alto e tranquilo cheguei ao Velho Vale. Do alto tive a nítida impressão que várias coisas mudaram lá em baixo em relação à última vez que eu fizera aquele percurso. Não dei muita atenção a essa impressão, pois o prazer de retornar àquele lugar mágico, em cada uma das incontáveis vezes em que lá estive, era indescritível.

Ah! O velho e grandioso vale! Nosso eterno santuário. Mesmo à noite conseguia vislumbrá-lo belo como sempre, com grandes despenhadeiros de rochas avermelhadas e violentos rios espumantes correndo em profundas fissuras esculpidas ao longo dos séculos por turbulentas águas, procurando incansáveis o caminho para o mar.

Como eu já esperava, minha chegada não foi despercebida. Rywrd, o Incansável, sempre atento, viu-me chegar e observou enquanto eu voava. Fiz então a manobra aérea que lhe comunicaria uma visita de paz e amizade. Depois a manobra que me identificava. Protocolo apenas. É obvio que apesar da grande distância e da noite Rywrd, favorecido por uma visão irretocável, me reconhecera. Aproximei-me e posicionei-me para o pouso na grande plataforma de pedra que se projetava para fora no descomunal paredão rochoso. Rywrd lá estava, como sempre, guardando o portal de entrada da grande fortaleza de pedra escavada na montanha. Aterrissei, flutuando suavemente a frente dele e cumprimentei-o.

— Como vai Rywrd, o Incansável? Bem, espero eu!

Ele abriu as asas em uma incomum expressão mista de alegria e surpresa. Parecia não me ver há séculos. Então disse:

— Bem estou, é claro, Dryfr, o Grande Guerreiro! E ao que parece estás muito bem também, mesmo depois de tantas décadas sem nos visitar.

Reagi com uma ruidosa, grave e breve gargalhada.

— De bom humor como sempre, Rywrd. Eu não esperava menos — correspondi. — Porém assuntos importantes me trazem aqui hoje e tenho pressa. Preciso ter com o Mestre. Ele me aguarda, não?

— Sim, é claro. Sabes o caminho, bem como sabes que para ti esta casa está sempre aberta e sem restrições.

— Sei, sim, e sinto-me honrado como tu também deves saber. No entanto, paremos com tanta formalidade Rywrd, pois tenho pressa. Prometo voltar outro dia com mais tempo para conversarmos.

Rywrd observou-me com surpresa. Parecia não entender algumas de minhas palavras, e eu, menos ainda sua expressão. Preferi não dar atenção àquele estranho diálogo concentrando-me no assunto que me levara lá, sem desconfiar que estava prestes a entender todas as observações estranhas que fizera até o momento. Adentrei à fortaleza esculpida nas entranhas rochosas do grande vale e direcionei-me ao salão do Mestre. Na entrada do salão, sempre muito bem organizado e protegido, os dois discípulos que guardavam a entrada e que surpreendentemente eu não conhecia, barraram-me.

— Identifique-se, senhor — disse um deles.

Quase ao mesmo tempo, a voz do Mestre soou grave:

— Deixem-no entrar, Mwlgr e Mwrgr.

Não pude deixar de notar, além da cor igualmente amarelada, os nomes que evidenciavam serem gêmeos. Fenômeno raro entre nós.

— Gêmeos? — indaguei. — Meus cumprimentos, jovens discípulos.

— Deveis reverenciar esse a vossa frente, gêmeos — disse o Mestre aos jovens — pois é Dryfr, o Grande Guerreiro.

Os dois, maravilhados com os olhos brilhando, abriram as asas e curvaram-se uma reverência que evidenciava minha notoriedade entre eles.

— Agradeço pela justa reverência, jovens, mas tenho pressa no momento. Com licença.

Passei entre os dois e pelo perfeito arco entalhado com riqueza de detalhes nas rochas avermelhadas do vale, adentrando ao salão finamente trabalhado internamente, cinzelado como se fosse uma escultura em profundidade. Um orbe de luz flutuava no centro acima de nossas cabeças proporcionando pálida iluminação ao ambiente. Após minha entrada, o Mestre com um gesto acendeu mais quatro orbes flutuantes e mais brilhantes que o anterior, iluminando por completo o amplo salão de audiências. Além de todos os entalhes nas paredes de pedra, o que tornava o salão sua própria e belíssima decoração, o recinto era adornado com relíquias e estátuas antigas herdadas de tempos imemoriais. As paredes tinham formatos irregulares e ângulos diversos. Uma das estátuas, em específico era a imponente imagem de um dragão, em tamanho natural, esculpida em Ônix: de asas abertas e de pé sobre as duas patas traseiras, segurava um ovo como se o oferecesse a quem o observa de frente. A escultura era um mistério até mesmo para o Mestre. Ela foi encontrada em uma grande caverna que servira de residência a um ancião contemporâneo do Mestre, já falecido em uma batalha ancestral.

A única parede de ângulo reto do salão expunha uma enorme peça em couro pendurada, constituída de várias peles depiladas de búfalos selvagens costuradas umas as outras, na qual fora desenhado a fogo um mapa de todos os nossos domínios, ou seja, o mapa do planeta inteiro. O mapa era, na verdade, mais uma relíquia do que uma utilidade, feito pelo próprio Mestre Wyrmygn em um tempo em que os orbes de luz ainda não eram difundidos. Ele também criou os orbes de luz que utilizamos há milênios para projetar o mapa do planeta e conjecturar acerca dele. Aliás, não só para isso. Os orbes de luz são magias dinâmicas utilizadas com inúmeras finalidades, dentre elas, iluminação, projeção de imagens e, sobretudo, comunicação, o que dispensa a necessidade de língua escrita, como fazem todos os seres pouco evoluídos, tais como elfos, anões e outros.

Existiam no salão outras obras de arte, tesouros de nossa cultura, além de várias peças em ouro e prata e pedras coloridas, preciosas e perfeitas. Exatamente como deve ser a morada do mais poderoso ser de todo o multiverso.

O Mestre me recebeu caloroso. Até mais do que o normal. Abraçou-me, inclusive com as asas transparentes, em seguida fitou-me por algum tempo extasiado.

— Meu discípulo! A que devo tão honrosa visita? — fez uma pequena pausa e antes que eu pudesse responder, interrompeu a si mesmo substituindo aquela feliz expressão pela comum seriedade.

— Bem, não precisas responder, — continuou — pois já conheço a resposta. Portanto responda-me o que não sei: por que demoraste tanto a vir? — a voz era um misto de saudade e apreensão como eu jamais ouvira.

— Desculpe-me, Mestre, mas uma estação é tempo demais para os mortais... — abruptamente ele me interrompeu.

— Uma estação? Dryfr, faz mais de vinte e nove décadas que não apareces aqui. O que aconteceu contigo?

— Mestre! Por que me falas em décadas quando estive aqui no último outono antes de me recolher para descansar?

A primeira reação foi de surpresa, mas passou a uma expressão pensativa. Desviou os olhos e se demorou com o olhar distante diante de minha última pergunta. Em seguida, como se tivera uma visão, disse:

— Esqueça. Já conheço as respostas. Vou falar de novo: faz vinte e nove décadas que não apareces aqui. Entendeste? — explicou calmo deixando claro que a informação era correta.

— Sim, Mestre.

— Hibernaste por vinte e nove décadas. Um descanso longo. Nunca soube de alguém que tenha hibernado por tanto tempo — declarou pensativo, mas não surpreso.

Nada poderia surpreendê-lo. Não por muito tempo.

— De qualquer forma estás bem descansado e com os acontecimentos recentes, tua força é necessária — completou.

— Acontecimentos recentes? — questionei confuso — Para mim, fiquei fora durante uma estação apenas. Não contesto tuas palavras, mas, nesse caso, logicamente aconteceu algo que fugiu a minha percepção. O que foi?

Mais uma vez aquele breve olhar distante. O Mestre tinha uma inteligência à frente de qualquer outro ser encarnado no multiverso. Por isso, até para mim, era difícil acompanhar seu raciocínio. Depois de poucos instantes ele respondeu:

— Agora me surpreendo por não ter previsto isso. Vou te contar um resumo e em outra ocasião cuidaremos de mais detalhes. No inverno seguinte ao teu sumiço, foi desencadeado pelos elfos, um evento de dimensões consideráveis até para nós. Tentaram conjurar um grande ritual mágico para fins que não merecem ser citados. Fins fúteis objetivados por seres fúteis. O que importa é que o trabalho deles fracassou e gerou consequências desastrosas. É claro. O que se poderia esperar? Tentaram invocar um ritual mágico que consumiu muito tempo e enorme quantidade de mana. Na verdade todo o mana da região em um raio de centenas de quilômetros...

Mana é como chamamos a energia fundamental vital, natural, invisível, inodora, pura, produzida pela natureza e presente em todo multiverso em menor ou maior quantidade. Alguns conseguem controlar tal energia por meio da força de vontade, produzindo os mais diversos efeitos desejados. O resultado dessa manipulação é conhecido como magia ou mágica. Seres razoavelmente inteligentes, conseguem manipular o mana apenas através de fórmulas prontas, como receitas, produzindo efeitos estáticos com parâmetros fixos. À magia resultante dessas fórmulas prontas, chamamos magia estática. Já os seres superdotados de inteligência, mais evoluídos como nós, conseguem manipular o mana a seu bel-prazer produzindo efeitos tão variados quanto queiram. A esses efeitos chamamos magia dinâmica.

— Dryfr, — continuou o Mestre — sei que nossas residências são mantidas em sigilo até mesmo entre nós e é incomum um de nós ter interesse na residência do outro por motivos que já conheces, mas me diga: tua casa fica na região das Montanhas Chatas, certo?

— Correto, Mestre, mas o que tem isso?

— Então minhas suspeitas se confirmam. Como eu já disse, o ritual consumiu todo o mana da região onde foi realizado, e a região em questão é a grande floresta próxima a tua casa. Todos os seres mágicos sofreram com a drenagem da energia. A maioria morreu. Como consequência, ficaste adormecido muito mais tempo do que o normal. Aliás, o fato de ainda viveres é surpreendente.

— Isso significa que quando começaram os trabalhos ritualísticos eu já hibernava. Uma novidade até mesmo para ti. Continue, por favor.

— Exato! Mas é apenas começo. As consequências dessa irresponsabilidade são complexas e catastróficas, e ao conjunto de efeitos colaterais gerados nós demos o nome de Caos. Dentre os vários efeitos, um deles se destaca: espécies de outros mundos começaram a ser teletransportadas de muitas partes do multiverso para Nosso Planeta. Em alguns casos, vilas inteiras apareceram repentinamente; em outros seres isolados vieram. Os casos são tão variados quanto são numerosos.

Fitou-me por um instante e prosseguiu.

— Dentre todas, uma espécie em especial é o foco de nossas preocupações. Parecidos com os elfos em estatura, porém mais corpulentos, quase tanto quanto os anões, mas não tão atarracados. Eles não tinham nada de especial que merecesse destaque em princípio, mas tornaram-se nossa principal preocupação por mais incrível que pareça. Esses seres são verdadeiras pragas! Têm prazer em destruir e conquistar. Eles se autodenominam “humanos” ou “homens”.

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