4 - LAIUS EMBASBACADO

Com o encanto quebrado, prestei atenção no que ela falava e o diálogo que se seguiu, sem contar as dificuldades para compreender um ao outro, foi mais ou menos assim:

— …quando você chegou aqui e qual o seu nome? — perguntou pela terceira vez, que foi quando saí do transe.

— Bem… onde é “aqui”, senhorita? — respondi, tentando fechar o sorriso bobalhão.

— Eu faço as perguntas — retrucou em tom autoritário, mas gentil.

Não tente entender a contradição. “Que gata selvagem!” — pensei extasiado, inclinado a responder tudo o que ela quisesse saber.

— Meu nome é Laius — apresentei-me. — Não sei precisar quando cheguei. Você me acordou de um sono no qual não lembro de ter entrado. Aliás, acho que não me acordou, porque a única lógica aqui é que isso deve ser um sonho — concluí, correndo os olhos pela aldeia.

Súbito, ela deu uma palmada em minha face esquerda. Um tapa de quem quer acordar alguém.

— E agora, ainda parece sonho? Para nós parece pesadelo! — enfatizou séria.

A expressão endurecera e o bom humor de antes sumiu.

— Calma, senhorita! Foi você quem me acordou me lambendo no meio do mato e eu nem sei como fui parar lá. Aliás, não sei nem onde estou, pois estou offline e nem mesmo consigo acessar o MPS para verificar minha localização — explanei naturalmente porque para mim era, mas pela expressão deles ninguém entendeu o que eu disse.

— Para saber onde está? Você quer dizer GPS2? — indagou a beldade.

— MPS: Multiversal Positioning System, mas alguém que fala uma língua antiga como a de vocês não deve conhecer ainda, creio. Não é?

Eram visivelmente seres de tecnologia subdesenvolvida. Imaginei que faziam parte de alguma tribo esquecida que começava a despertar.

— Língua antiga? Você é quem fala estranho — disparou e prosseguiu depois de uma pausa. — Eu não sei de onde você é, mas vejo que não é daqui e imagino que deva ter chegado há pouco. Portanto, eu lhe peço, leve-nos a sério. Já tivemos muitos problemas desde que chegamos a esse mundo estranho e o que menos queremos é perder mais tempo do que já perdemos — discursou convicta.

Fez mais uma pausa, na qual fitou-me de cima a baixo antes de prosseguir.

— Você é o quê? Um viajante do espaço, do futuro, por acaso? — perguntou com sarcasmo ao observar meus trajes.

De onde teriam vindo? Não há registros de seres assim na Terra e mesmo que fossem de lá estariam ainda às margens da tecnologia? Minha cabeça fervilhava com interrogações cada vez mais intrigantes. Decidi não revelar todas as minhas divagações de imediato para não chocá-los e tentei uma abordagem que me fizesse parecer mais amigável. Pelo menos até eu ter certeza do que, de onde eram e onde eu estava.

— Na verdade, sou um explorador. E vocês, são de onde?

Ela pensou um pouco, fitando-me de cima abaixo pensativa e desconfiada. Levantou a sobrancelha esquerda ao ver alguma coisa em meu traje, mas eu não percebi o que foi.

— Olha, não sei de que cinema você saiu, mas se o que estou pensando de você for verdade poderá ajudar — declarou, ignorando minha pergunta, com tom menos agressivo.

— Cinema? Eu? E vocês se transformando como se fossem lobisomens! Só que felinos! Como se chamam? “Tigromens”? — arrisquei uma quase piada, estampando um sorriso raso.

— Licantropos — respondeu séria.

— “Licantropos”? — indaguei espantado.

Já tinha ouvido ou lido a palavra, mas não lembrava onde ou o que significava.

— Sim, nós somos licantropos ou metamorfos como os lobisomens que você citou.

E ela falou com a mesma naturalidade com a qual eu falara do MPS.

— Ah, claro! Fui eu quem saiu do cinema… — rebati debochando e sorrindo.

— Querido — chamou delicada, porém séria.

Aproximou-se e me encarou de perto. Contive-me para não suspirar!

— Nós sempre existimos na Terra desde tempos imemoriais, nos ocultando das pessoas da mesma forma que os lobisomens, e muitas outras criaturas que pelo visto pareceriam cinematográficas para você — completou delicada, quase contando vantagem.

— Você disse Terra? — espantei-me com retardo. — Quer dizer o planeta Terra?

— Sim, o planeta Terra, é lógico — declarou segura.

— Você está falando que vocês todos são da Terra?

— Foi o que eu disse — reafirmou. — Por quê? Qual é a surpresa?

— Não, é… só que eu sempre quis conhecê-la, mas nunca tive oportunidade — disfarcei.

Pelas expressões que se formaram, minha tentativa causou efeito contrário ao de “disfarçar”.

— Você não é de lá? — questionou, arregalando os olhos.

— Bem, tecnicamente sim, porque ela é o berço da civilização humana, entretanto não nasci lá e ainda não tive a oportunidade de visitá-la. Mas se os habitantes atuais forem como vocês, fico mais curioso ainda por conhecer o “Planeta Mãe”.

— Habitantes atuais? Planeta Mãe? De que raios você está falando? — interpelou, mais intrigada do que nunca.

Silêncio outra vez. Dava para ouvir as cigarras ou, seja lá qual for o equivalente deste planeta. Minha cabeça, a mil, tentava decifrar o que se passava.

— Você acabou de me dizer que são da Terra e nós estamos em qualquer lugar, menos na Terra. Aliás, por que vocês vivem em segredo? E como vieram parar aqui? — ignorei as indagações dela, disparando minhas dúvidas.

Senti que não podia revelar muito e queria respostas. Foi quando o outro “tigromem”, que até então só observava, interveio. Era muito alto e musculoso de cabelos também longos, pretos azulados e pele corada de sol. Em total contraste com a aparência, dirigiu-se a mim com gentileza e educação:

— Senhor Laius, meu nome é Cassius, sou o alfa dessa recém-formada tribo de tigres e irmão de Cassiene, a que lhe fala. Espero que perdoe a falta de delicadeza dela.

Falava como um líder e eu o escutei atento. A palavra “irmão” fez eco em meu ouvido, causando-me alívio. “Ele é apenas o irmão!” — pensei aliviado.

— Nossa raça de licantropos — continuou — é formada, como o senhor pode ver, por “seres” que podem assumir a forma de tigre, de homem ou uma forma intermediária a que chamamos “krinus”, ou forma guerreira, que equivale ao lobisomem das lendas que o senhor demonstra conhecer. Nós, assim como o senhor, não sabemos como chegamos aqui, mas sim, viemos da Terra do ano de 2021, há quase seis meses, e sabemos que esse planeta não é a Terra por causa do sol, da lua e da gravidade, que são sensivelmente diferentes. O senhor já demonstrou que também não é daqui, portanto esqueça a conversa confusa que teve até agora com minha irmã e perdoe-me por não interferir antes. Ela é impulsiva às vezes. Fale um pouco de você para que possamos, talvez, ajudarmos uns aos outros a voltar para casa.

Atento a tudo o que dizia, também por receio da figura intimidadora, apesar de todo o carisma, entendi que ele acabara de dar um primeiro passo. Falou um pouco sobre eles esperando que eu falasse um pouco de mim. Pena que na hora não percebi e explodi em sarcasmo:

— Você só pode estar brincando! Terra, 2021? Isso foi há quase dois mil anos! É impossível! — exclamei às gargalhadas.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo