Capítulo V

Era muito agradável o clima em Pequim. O outono havia começado da melhor maneira da qual se poderia imaginar. O sol aparentava estar mais vaidoso, pois seu brilho era refletido nas folhas dos galhos, de modo que era possível enxergar um brilho intenso em cada gota. O vento também fazia seu papel, contribuindo para que a temperatura não estivesse tão quente e o frio não castigasse tanto, como era de costume. E tudo contribuía para a alegria da pequena Annchi Zhang, que parecia orgulhosa de si mesma por estar conseguindo se equilibrar em sua bicicleta após somente dois dias de treinamento. Ela ria sozinha e olhava com alegria para o avô, Lao Zhang, que acenava para ela e gargalhava com muita alegria. Naquele instante, não existia nada para o avô a não ser a felicidade de sua pequena e amada neta.

Um ano atrás, seu filho e sua nora foram brutalmente assassinados em uma missão que visava frustrar um ato terrorista da máfia chinesa. Foi provado dias depois que houve uma traição na Inteligência e a posição dos dois agentes secretos fora entregue sem cerimônias a um dos chefes da máfia. Lao Zhang não teve outra escolha a não ser sepultar dignamente seu filho e sua nora e passar a cuidar de Annchi, que o amava de tal forma que as feridas por causa do luto foram cicatrizando mais rápido do que o avô imaginava. Annchi possuía uma incrível inteligência, assim como seus pais. Ela sabia definir o caráter de alguém somente pela forma de olhar e de maneira muito precoce conseguia detectar maldade em uma pessoa em questão de momentos. Aos oito anos de idade, ela já gostava de ler livros sobre botânica, biologia, zoologia e, quando não estava muito disposta a estudar, lia contos de investigação. Por mais que o avô achasse aquele comportamento curioso, jamais questionou a neta. Sem dúvida, havia um sentido, genético ou não, para o modo de viver de Annchi.

Naquela tarde, ela estava concentrada em sua bicicleta, quase poderia andar sem as mãos no guidão e por alguns segundos, fechou os olhos e sentiu a brisa de outono em seu rosto. Porém, instantes depois, ela repentinamente se desequilibrou e caiu. O avô correu imediatamente ao seu encontro e se agachou, consolando a menina.

— Annchi, você se machucou, querida? O que houve? Você estava indo tão bem...

A menina permanecia de cabeça baixa e tentava suportar a dor. Não parecia chorar, mas o avô sabia que se tratava de uma tentativa da neta de esconder que seu joelho de fato estava doendo. No entanto, após alguns instantes, Annchi ergueu a cabeça e olhou para o avô, com os olhos marejados de lágrimas.

— Avozinho, eu... acabei me desconcentrando. Eu estava tão feliz que finalmente consegui me equilibrar na bicicleta e meu coração acabou desejando que a Mamãe e o Papai estivessem aqui para me ver!

De repente, a realidade pareceu voltar a fazer morada aos pensamentos de Lao Zhang. Ele ficou em silêncio durante alguns instantes e acariciou delicadamente os cabelos de sua neta.

— Querida Annchi... Seus pais podem ter deixado esse mundo onde você e eu vivemos, mas nunca deixarão de habitar em seus pensamentos e em seu coração. Você é a nova casa deles! Se existe algo em que você pode confiar com toda a segurança, é que eles sempre estarão com você em cada passo que você der.

— Você me disse isso, Avozinho... mas que sentido isso faz se eu não posso vê-los e nem tocá-los novamente?

— Sempre podemos sentir as pessoas que amamos de muitas formas, Annchi. Sempre que você fecha os olhos, pode vê-los e sempre que se olha no espelho, pode contemplar a imagem de cada um dos dois, tanto de seu pai quanto de sua mãe. Eles não morreram para sempre. Apenas partiram para o próximo estágio de nossa existência. O seu avô também se mudará para o seu coração um dia, sabia?

— Eu não quero, vovô! Quero que fique aqui comigo para sempre! Assim você poderá me levar para andar de bicicleta muitas e muitas vezes.

Lao Zhang não desejava continuar o assunto com a neta e então a ergueu com cuidado e em seguida, levantou a sua bicicleta.

— Annchi... Andar de bicicleta é como conduzir a nossa vida, sabia? Se nossa mente não estiver em harmonia com o nosso corpo, não conseguiremos nos manter equilibrados. Os dois devem trabalhar juntos e nenhum deles deve abandonar a tarefa. Quando você estiver andando de bicicleta, deve se concentrar no equilíbrio dela, deve se despreocupar de outras coisas, precisa manter os olhos no caminho e sentir a brisa do outono. Da mesma forma deve ser a nossa vida. Corpo e mente precisam trabalhar juntos, em perfeita harmonia. Se você conseguir unir sua mente e seu corpo, querida, nada em sua vida será difícil para você!

— Parece fácil ouvindo você falar, avozinho... Mas nem sempre eu consigo e quando falho, acabo caindo.

— Você irá cair muitas vezes, minha querida... Mas a oportunidade de se levantar sempre virá em seguida. Não se esqueça... A vida sempre irá te derrubar, mas somente você pode decidir se irá se levantar ou ficar no chão. A isso é o que chamamos de equilíbrio.

— Isso é... Equilíbrio?

Equilíbrio...

Equilíbrio...

De repente, as boas lembranças do avô e da infância em Pequim vão dando lugar à sensação de extremo calor e uma dor insuportável. E foi justamente por causa dessa dor que a doutora Annchi Zhang despertou de sua inconsciencia. Sua perna esquerda estava presa a uma coluna que desabou devido à colisão do helicóptero. Aos poucos, sua visão conseguia identificar o cenário que se seguia. Ela não estava mais no jardim do seu avô, mas estava caída em meio aos escombros da sala 407. O helicóptero estava completamente destruído e o piloto aparentemente não resistiu à queda. A aeronave estava em chamas, assim como todo o ambiente ao seu redor. Annchi não saberia dizer como sobreviveu àquele desastre. Ela olhava ao redor e também não encontrou nenhum rastro do Dr. Brandon Davis.

Como se toda a situação na qual se encontrava não fosse absurda o suficiente, a virologista constatou que as coisas poderiam piorar a cada minuto. O piloto do helicóptero, que estava caído embaixo da fuselagem, conseguiu se arrastar e se levantar cambaleante. Assim como as primeiras vítimas do vírus Orpheu, ele também já não tinha sinais de vida, embora estivesse em pé. Seu corpo e cabeça estavam carbonizados, mas ele caminhava como se seu corpo não sentisse dor alguma. Sua boca abria e fechava freneticamente e parecia que a única sensação que ele possuía era de... fome.

Annchi não viu que do lado oposto ao da cabine, o co-piloto também ressuscitara e caminhava vacilante em meio às chamas da aeronave. Ela tentava puxar sua perna, mas não conseguia sequer mover a coluna de concreto. Com a perna direita, ela tentava impulsionar a enorme estrutura, mas não obteve sucesso. Os mortos-vivos se aproximavam e junto com o cheiro de fumaça e combustível, um desagradável odor de enxofre exalava no ar. Annchi estava cercada. Os mortos pareciam conseguir farejar o medo e o desespero da virologista. Annchi não conseguia encontrar nenhuma ferramenta que pudesse destruir ou ao menos movimentar a coluna de concreto. Sua perna doía tanto que estava quase adormecendo. As criaturas estavam agora há pouco menos de dez metros dela. Seus rostos eram tão tenebrosos que ela não conseguia sequer olhar para eles. À medida que sentiam que seu alvo estava próximo, eles salivavam e pareciam apertar o passo.

A coluna de concreto parecia mais pesada a cada minuto. A perna de Annchi doía tanto que ela parecia a ponto de desmaiar. Porém, em determinado momento, ela fechou os olhos e novamente sua mente foi transportada para Pequim, no jardim do seu avô. Ela parecia sentir claramente sua mão acariciando o seu rosto. Não se esqueça nunca de juntar o seu corpo com a sua mente, querida! Se mantiver esse equilíbrio, nenhuma dificuldade poderá impedir você de alcançar os seus objetivos!

A virologista Annchi Zhang recobrou por completo sua consciência como por um milagre. Seu avô era a única pessoa que lhe inspirava, talvez a única pessoa que ela amou verdadeiramente e, se ela havia conseguido alguma grande conquista, sentia que devia tudo a ele. Sua perna direita pareceu ter recuperado as forças e a cientista agora respirava devagar e com calma.

— Corpo e mente... devem estar em harmonia. Não é isso, avozinho?

As criaturas estavam cada vez mais perto. Já se encontravam bloqueadas somente pela coluna de concreto e suas mãos agarravam o ar de maneira desesperada. Annchi manteve a calma e fechou os olhos, concentrando toda a sua força na perna direita.

— Não posso morrer aqui! Não nesse lugar...

Annchi respirou fundo e soltou um grito estridente, colocando para fora toda a sua força e vontade de viver para fora, conseguindo enfim movimentar a coluna de concreto, fazendo com que ela rolasse para cima dos mortos-vivos, o que fez com que eles caíssem para trás. Sua perna esquerda estava livre, mas ferida. Annchi levantou-se com muita dificuldade e tentou correr rumo à saída da sala 407. Entretanto, as duas criaturas conseguiram de desvencilhar da estrutura de concreto e novamente avançaram na direção da virologista. Eles pareciam sentir o cheiro de carne viva e do pavor da mulher, o que fez com que eles avançassem furiosamente com os braços estendidos. Annchi olhou novamente ao redor da sala destruída e encontrou a Ruger caída próximo ao helicóptero. Ela mancava muito, mas os zumbis eram extremamente lentos e ela conseguiu evitar um ataque direto da dupla, passando por eles a uma distância segura e chegando até a aeronave em chamas. Ela sabia que tinha pouco tempo, pois o combustível estava vazando. Annchi pegou a Ruger e orou para que ainda houvesse munição. As criaturas estavam novamente em seu encalço e ela mirou na cabeça de cada um dos mortos-vivos e atirou, neutralizando-os imediatamente.

— Tiros na cabeça - refletiu ela - É a única forma de eliminá-los.

Mesmo com toda a agitação dos últimos minutos, ela ainda não havia encontrado o Dr. Delta. Sabia que não poderia perder mais tempo. Ela saiu da sala 407 e seguiu pelo corredor do oitavo andar. O helicóptero iria explodir a qualquer momento e todo o prédio iria pelos ares. O Dr. Davis deve ter sido esmagado pelo helicóptero, não havia como saber. E pensar no assunto naquele momento se tornou totalmente irrelevante, pois quando Annchi se aproximou do acesso às escadas, a realidade pareceu dar um golpe em seu estômago. Cerca de sete criaturas, todas de jaleco branco, subiam as escadas de maneira totalmente desengonçada e também possuíam rostos sem vida. Seus olhos eram apenas esferas sem brilho algum e suas bocas abriam e fechavam, como se mordessem um petisco imaginário.

— Isso não pode ser verdade... só pode ser um pesadelo!

As criaturas subiam e emitiam um som perturbador. Era como se estivessem lamentando pelo modo como morreram e sofressem com uma condenação mórbida de vagar eternamente buscando carne humana para satisfazer uma fome que nunca terá fim. E isso foi considerado rapidamente pela mente de Annchi, o que a encorajou ainda mais a atirar na cabeça daqueles que eram seus companheiros na Organização Ômega. Após tirar as criaturas de combate, ela desce as escadas em uma corrida desesperada contra o tempo. A colisão do helicóptero fez com que o sistema de travamento das portas fosse danificado. Logo, todas as saídas estavam desbloqueadas. Porém, isso também significava que se houvesse uma porta escancarada no laboratório, as criaturas já poderiam estar do lado de fora, espalhando o vírus para toda a cidade.

Annchi desceu até o terceiro andar,onde estava localizada a reserva de armamentos. Rapidamente, ela pegou uma pistola nove milímetros e munição extra. Ela conseguiu oito pentes de balas, o que provavelmente iria garantir a sua sobrevivência até o lado de fora do laboratório. Três outras criaturas bloquearam o seu caminho, entrando pela porta da sala de armamentos. Annchi recarregou a Ruger com admirável velocidade e deu um tiro na cabeça de cada zumbi, abrindo caminho pelo corredor do terceiro andar. Quando enfim chegou ao acesso às escadas para o segundo andar, Annchi ficou paralisada, como se levasse um novo choque. Subindo pelas escadas, com seu jaleco branco repleto de sangue e uma expressão cadavérica e assustadora vinha a doutora Stephanie Carol, a cientista que Annchi abordou para pedir o auxílio do helicóptero. Ela se segurava no corrimão e quase se arrastava, parecendo obcecada por alimento. Annchi entristeceu de imediato ao ver o estado deplorável da amiga.

— Stephanie...

Foi a primeira vez que Annchi hesitou em apontar a arma para uma das criaturas. Inconscientemente, ele recuou três passos e só então mirou a Ruger para a criatura e esperou, como se houvesse alguma chance dela parar e recobrar a consciência. Mas era impossível. A criatura que antes era Stephanie não recuou perante à ameaça da Ruger e continuava avançando com dedos em garra e dentes ameaçadores, mordendo o nada. Uma lágrima escorreu dos olhos de Annchi. Não havia mais esperança. O vírus Orpheu dominou totalmente o laboratório em poucos minutos. E o Dr. Brandon Davis estava desaparecido. Não havia mais o que fazer a não ser acabar com o lamento e o com o sofrimento de Stephanie.

— Me perdoe, minha amiga!

O tiro da Ruger atingiu em cheio o crânio de criatura, fazendo voar massa encefálica pelo ar. Sem esperar o zumbi cair, Annchi correu escadas abaixo até enfim alcançar o pátio térreo, onde havia incontáveis criaturas vagando de um lado a outro. Todas estavam com os jalecos salpicados de sangue. A explicação era extremamente lógica. O víris foi espalhado tanto pelos dutos de ar quanto pelas mordidas dos mortos-vivos. O saguão estava infestado de zumbis e a porta principal se encontrava bloqueada.

— Mas que... merda! Como vou sair daqui?

De repente, a Dra. Zhang se lembrou de que havia um dispositivo de alarme que servia para treinamento de incêndio próximo ao pátio principal. Ela pensou que, se o alarme ainda estivesse funcionando, atrairia as criaturas para o local, que ficava no fundo do saguão, onde se tinha o acesso ao refeitório e então correria para a saída. Não havia tempo para pensar se o alarme ainda funcionaria devido ao desastre com o helicóptero. Ela tinha que tentar. Com a Ruger carregada, afastou-se silenciosamente da porta de acesso às escadas e seguiu pelo canto do pátio, longe do campo de visão das criaturas. Chegou ao painel de controle do sistema de alarme e verificou que aparentemente não havia nenhuma avaria. O dispositivo estava intacto.

Rapidamente, Annchi acionou o dispositivo e para seu alívio, o alarme de incêndio foi acionado. O barulho ensurdecedor atraiu as criaturas até a direção do painel e Annchi precisou a abater somente quatro criaturas para abrir caminho até a saída. E não poderia ser em uma hora melhor. Assim que começou a atravessar o pátio, um barulho de explosão vindo dos andares de cima pôde ser ouvido claramente e um grande tremor foi sentido. O helicóptero explodiu e o prédio estava desabando. Annchi correu freneticamente e jogou seu corpo contra a porta de saída. Ela acelerou pelo jardim do laboratório e se manteve o mais distante possível do prédio da Ômega. Segundos depois, o inevitável aconteceu. Uma grande bola de fogo surgiu e o prédio inteiro veio abaixo. Annchi contemplou com grande espanto a destruição do complexo e foi tomada por um misto de sentimentos distintos. Medo, ódio, tristeza e acima de tudo... saudade.

Entretanto, ao se voltar para o outro lado do jardim, em direção aos portões principais, ela viu que mesmo com todo o seu empenho e rapidez, ainda assim não fora suficiente. A cerca de duzentos metros, na direção da área comercial de Westfield, Annchi viu que, assim como o laboratório da Organização Ômega, a cidade inteira estava em chamas e tomada de criaturas infectadas pelo vírus Orpheu.

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