CAPÍTULO UM

O INÍCIO - 1693

"Durante séculos, sua imortalidade transformou você no maior soldado do machado e da cruz."

(Frases do Filme - O Último Caçador de Bruxas)

O sepulcro. O padre. O caixão descendo sobre um buraco estranho, vazio e frio. 

Aquilo jamais representaria tudo que o pai de Artemísia Braham havia sido para ela. Ele fora jovem para sua idade, sorridente, charmoso, brincalhão e mostrara todo o mundo de histórias que ela amava. Desde as múmias mais surpreendentes aos insetos, que eles dissecavam no quintal dos fundos da propriedade deles, em um dos bairros nobres de Londres. 

Agora ele não passava de um corpo pesado, inchado e cheio de tábuas ao seu redor. 

Artemísia passou o lenço de pano rendado mais uma vez pelo nariz arrebitado e vermelho. Sua mãe, que estava de braços dados com ela, não derramara uma lágrima. Ela era dura, firme e Artemísia sempre desconfiou de que não amasse o pai da mesma forma que ele a amava. O dinheiro dele proporcionava uma vida estável e cheia de benefícios demais para que a mãe reclamasse, mas não quer dizer que ela retribuía com afetos ou gentilezas. De Georgina Braham, a única coisa que se poderia esperar eram olhares firmes e julgadores, assim como as poucas vezes em que demonstrava suas opiniões, não vinham de uma maneira sutil. Muitas delas eram grosseiras e estúpidas. Mas, sua filha já estava acostumada. Não que realmente gostasse do jeito da mãe. 

Artemísia fungou uma última vez e todos já haviam ido embora. Os poucos amigos de seu pai, mal falaram com ela e não havia mais ninguém além das duas. A maior parte da vida de Henry, ele passou viajando e fazendo descobertas incríveis pelo mundo. Ela havia ido em muitas e ansiava caminhar os mesmos passos que ele, mas a mãe que sempre a segurava, não lhe dava suportes para sequer pensar em fazer algo mais do que bordados e chás da tarde. E Artemísia estava longe de ficar contente com isso. 

As duas, uma sendo apoiada pela outra, entraram na carruagem negra, sendo guiada por um dos capatazes de sua propriedade. 

A viagem seguiu silenciosa pelos cascalhos do cemitério principal. Dentro da carruagem, Artemísia se afastou da mãe e engoliu o nó de sua garganta, que ameaçava despencar a qualquer minuto. Ela sentia o olhar de Georgina sobre seu rosto, mas não desviou os olhos tristes da janela, da paisagem austera e selvagem até que chegasse em sua casa. Queria descansar, colocar-se em sua cama e nunca mais levantar. Mas, sabia que estava longe de fazer isso, o inventário seria logo ao entardecer, com uma pequena recepção por alguns amigos e parentes da família de sua mãe que odiava. 

Com trinta e cinco anos, o que todos faziam nesses tipos de festas, eram perguntar quando se casaria. Se havia algum pretendente e quais tipos de arranjos que a mãe dela ajudaria a fazer no dia. E Artemísia detestava a cada segundo. Mas, como mulher esperavam que por mais tardar que fosse, o noivado com algum pretendente, em algum momento se daria. De um jeito ou de outro. O pai conseguiu com que fosse adiado por sua adolescência, início da fase adulta e agora que ela já estava formada, independente de sua idade, algum pretendente apareceria. No entanto, não se casaria com ninguém. Nem que para isso ela precisasse fugir. 

                                                    ***

Às seis, as carruagens começaram a chegar. 

Artemísia levantou os olhos, mas não quis enxergar através das persianas dos janelões de seu quarto. Estava com um livro no colo e um vento balançava o decote de seu vestido claro. Detestava vestidos, quando viajava com o pai trajava apenas calças e camisas, por causa dos bichos que poderiam entrar por suas vestes nas expedições. Mas, ali com a mãe precisava manter sua pose de boa filha. 

Um toque baixo soou na porta, que foi aberta suavemente e um rosto surgiu entre o batente. 

- Posso entrar, madame? - sua acompanhante indagou. 

Artemísia assentiu e deu uma boa olhada nela. 

Clarice era pequena, um corpo generoso acentuado com curvas cheias e uma bela boca rosada. A pele de oliva e longos cabelos cacheados, algumas mechas caíam em sua face. Artemísia tinha uma forte atração por aquela mulher, mas nunca havia tido coragem de dizer nada além das coisas principais. Sempre fora fechada. E o que sua acompanhante acharia se dissesse que estava atraída por ela? Isso era inconcebível. 

Até mesmo para si própria havia passado anos no início de sua adolescência se perguntando, assim que ela foi apresentada à sociedade o porque nunca olhava para os meninos que a tiravam para dançar e a amiga arqueóloga de seu pai, fazia escorrer saliva de seus lábios e de outras partes também… Ao entender mais tarde, ao ler livros proibidos por sua igreja e ver desenhos delicados, retratados em pequenos trechos, para demonstrar a vida na antiga Grécia, onde relações entre o mesmo sexo, eram completamente comuns. E aceitáveis. E ela entendeu o que era. E de algum jeito desconfiava que o pai também sabia sobre o que despertava a atenção de sua filha. 

Os olhos de Artemísia se encheram de lágrimas ao lembrar do pai, no pico de uma montanha, segurar seu rosto e sorrir para sua filha. 

- Você me promete que vai manter esse sorriso enorme? Fico sempre tão feliz ao trazê-la nas viagens. Parece que a todo momento está escondida em casa, quando fica com sua mãe. E aqui, olha só para você, meu amor. - ele abriu ainda mais o sorriso charmoso. - Independente do que ela pensa, querida. Siga seu coração. E automaticamente vou sentir aqui também, viu? - ele apontou para o peito. 

Ela só havia balançado a cabeça, claramente concordando. 

Mas, ali agora isso não parecia muito possível. 

Artemísia enxugou as lágrimas que haviam caído e se levantou, sabendo porque Clarice estava entrando em seu quarto. A acompanhante, desde sua infância, caminhou para seu closet e voltou trazendo um vestido pesado e gigante. Era uma coisa monstruosa cheia de camadas e renda na cor azul anil. Nada apropriado para uma recepção depois de acabar de perder seu pai. 

- A Senhora pediu que usasse esse. - ela estendeu na cama arrumada. 

Artemísia parou e encarou o vestido. O rosto se transformando em pedra. Os olhos azuis endurecendo. 

- Não. - ela se recusou a usar aquela coisa. 

Clarice suspirou, tendo ideia de que brigar com Georgina era ruim, mas com Artemísia seria ainda pior. 

- A Senhorita prefere escolher? - tentou conciliar. - Tem aquele preto que seu pai trouxe da Índia. Ele não é tão armado e tem aquele brilho tão lindo nas mangas. 

Artemísia assentiu. 

- Obrigada. - ela quase não conseguiu sorrir. 

Clarice trocou os vestidos, arrumou algumas joias que combinasse e separou um sapato baixo engraxado. Ajudou a vesti-la e assim que ambas ficaram de frente para o pequeno espelho redondo na parede do norte, que Artemísia demonstrou algum sinal de vida, ela olhou pelo espelho sua acompanhante apertando os laços do corset e respirava fundo para que sua cintura fosse modelada, por aquele negócio de tortura. Ao se ver naquele espelho, encarou a si mesma tentando acalmar sua mente que estava se tornando um turbilhão e o coração que acelerava aos poucos, para a festa que a aguardava, por alguma razão um aperto passou por seu peito. Uma sensação de que algo estava errado. Provavelmente era o luto pesando seus ombros, mas ainda sim aquela pequena comoção que apertava sua garganta lhe disse que as coisas seriam piores sem seu pai. 

Ela limpou uma lágrima que caiu e fingiu que estava arrumando seus cílios, os olhos azuis estavam firmes e vagos, então ajeitou o cabelo solto e enrolado, que era bem escuro como as asas de um corvo até a cintura, beliscando suas bochechas altas que estavam pálidas como alabastro. Artemísia tinha um rosto fino, que era perfeitamente esculpido e suas maçãs do rosto eram bem marcadas. Aplicou uma coloração nos lábios voluptuosos. Seu corpo magro e curvilíneo foi puxado pela corset e ela espalmou as mãos no espelho, para facilitar o trabalho de Clarice. Quando voltou a levantar o rosto, percebeu que ela a olhava. 

Os olhos escuros dela eram intensos, um olhar atípico para algo que sempre foram leves e baixos. 

- Algum problema? - Artemísia arqueou uma sobrancelha. 

Clarice parou de puxar os fios de seda e suspirou cruzando os braços. 

- Não… Mas, não acho certo o que está acontecendo nesta casa. - ela disse, a voz baixa e constrangida. 

Artemísia se virou para ela. 

- Como assim? O que está acontecendo? - indagou preocupada, de repente. 

Sua acompanhante a encarou. Clarice nunca chegava perto dela, a não ser que fosse para pentear seu cabelo antes que dormisse todas as noites - uma atividade que Artemísia tinha extremo prazer, diga-se de passagem - e colocou as pequenas mãos em seus ombros. 

- Sua mãe não está fazendo essa recepção para homenagear seu pai. Seu noivo será apresentado diante de todos. Sua mãe estava planejando esta noite há meses. Ela contou para Roberta, que me contou na cozinha ontem. E então seu pai veio a falecer por um infarto… Não consegui chegar até a senhorita para contar. - as palavras de Clarice disparavam de seus lábios como uma torrente. 

Artemísia parou de respirar por um momento, totalmente estarrecida.

- Ela aproveitou que meu pai e eu não estávamos para planejar um casamento arranjado para mim? - ela moveu sua boca, mas não conseguia olhar para Clarice. 

A mulher a sua frente assentiu. 

- Sim. O conde Joel Royce. - disse balbuciando. 

Artemísia arregalou os olhos. 

O conde Joel Royce era um velho caindo os pedaços com portos, tão rico quanto um rei. Ele uma vez havia dado em cima dela em uma das poucas missas que ia com a mãe quando ficava em casa ou seu pai não conseguia tirá-la das garras de Georgina. Mas, ela já com mais de trinta anos… Só um pretendente horrível como aquele, concordaria em se casar. Só que nem mesmo Artemísia poderia acreditar que a mãe teria bolado esse plano tão horrível para uní-la a um homem terrível, que popularmente era conhecido por passar a mão nas menininhas da praça. 

Ela engoliu em seco e balançou a cabeça. 

- A senhorita não merece isso, depois de tudo que passou com a morte de seu pai. Eu sei que aqui é seu lar. Eu sentiria sua falta. - Clarice fixou seus olhos escuros nos azuis de Artemísia e fungou, como se estivesse segurando o choro. 

Por um momento, apenas um segundo ela imaginou se sua acompanhante poderia saber sobre sua atração. E mais do que isso, retribuísse. No entanto, antes que pronunciasse qualquer coisa, a porta de seu quarto foi aberta e Georgina entrou com a pompa de uma beladona e segurava a barra de seu vestido vermelho, preso pelos punhos. 

Ela observou Clarice ainda com as mãos sobre os ombros de Artemísia, que os retirou rapidamente para que não sobrasse para sua acompanhante e Clarice se apressou para sair, mas trocou um olhar com Artemísia, que assentiu suavemente como se dissesse “obrigado”. Assim que sua acompanhante se retirou, fechou sua expressão, o sangue bombeando em suas veias de raiva. Sua mãe mal esperara que seu pai esfriasse para bancar a desgraçada que sempre foi. 

- Não foi esse o vestido que separei para você. - sua mãe disse. 

Artemísia negou. 

- Não. Não foi. Mas, esse é o que quero vestir. Você não manda em mim. 

A frieza era avassaladora nos olhos de Georgina. 

- Não. Mas, tudo que está nessa casa sim. Então se você não quer virar uma meretriz desabrigada vai descer agora e fingir que é uma Braham, honrando seu pai como se deve fazer e se sentar à mesa como uma dama. - as palavras eram afiadas como estalactites de gelo. 

Artemísia riu, mas não achava graça de nada daquela palhaçada. 

- Meretriz? E a senhora deve saber disso vestida como uma. Meu pai acabou de morrer. Será que pode fingir que se importa? 

Os passos soaram tão rápidos, assim como o tapa que marcou sua bochecha desenhada. 

- Você vai descer ou se não eu mando aquele Conde nojento levá-la hoje e dar permissão para ele fazer o que quiser com você. Acha que não sei que aquela ratinha te disse? - o rosto de sua mãe se aproximou de seu ouvido. - Então faça o que eu mando. 

Artemísia não esboçou nenhuma reação. Sequer colocou a mão sobre a face marcada. Apenas se dirigiu a porta e caminhou para baixo. Atravessando o extenso corredor e as escadas em espiral de mármore, que dava direto para o salão principal da casa. Lá, os convidados - não menos que cem - estavam perambulando pelos espaços acomodados para eles, conversando, rindo, bebendo e dançando sobre a sala, onde estava decorado com um lindo arranjo e uma pequena orquestra. Demonstrando uma minúscula, mas óbvia fortuna gasta com absolutamente nada. Seu dinheiro sendo jogado fora. 

Várias pessoas a olhavam e Artemísia teve que engolir duro e seco, para conseguir encará-las. Será que sabiam o quanto sua mãe era depravada e grotesca? Que estava vendendo sua única filha para o primeiro que aparecia somente para desfrutar da herança de gerações de seu pai, com festas, extravagâncias e roupas? 

Ela achava que sim. Mas, ninguém se importava o suficiente. Bem, Clarice se importava  o suficiente para ser a única a abrir seus olhos para tudo que estava acontecendo ali. Seus olhos encararam o champanhe caríssimo que estava sendo servido e abruptamente, no fundo de sua mente o antigo alerta que apertara seu peito, soou como uma sirene. 

Sua mãe era uma grande cultivadora de ervas medicinais, testadas com eficácia em cura de ferimentos, machucados e dores corporais. Tinha uma estufa gigante que comprova seu amor pelas plantas, provavelmente os únicos seres que não era, de fato, um ser humano ciente, mas que ela adorava com ênfase. Então, lembrou-se dos gritos lamuriantes da mãe pelos corredores de casa de madrugada, dizendo como seu pai havia infartado, seu coração parando de bater instantaneamente sem que ela conseguisse salvá-lo. O médico fora chamado às pressas, mas já era tarde demais. Ao alvorecer ele foi declarado morto e os preparativos para seu enterro eram iniciados. 

A pergunta que ressoou na cabeça dela era abominável demais para ser repetida. Mas, alguma erva poderia parar o coração de alguém sendo mascarado por alguma doença? Artemísia não sabia. Sua mãe havia ensinado coisas básicas. Não estudos tão profundos, que ela imaginava que a mãe tinha conhecimento. 

Antes que ela pudesse pensar com mais cuidado, alguém puxou seu braço.

Era o Conde Joel Royce. 

Os olhos de Artemísia se arregalaram e se transformaram em fendas de ódio por aquele homem horroroso tocá-la. 

- Oi, meu bombomzinho. - ele sussurrou melodioso, seu hálito nojento batendo no rosto dela, que trincou os dentes para não gritar com ele. 

Artemísia não era mais uma adolescente para dar espetáculos na frente de todos ali. 

Mas, ela não cederia aos caprichos da mãe. Já havia perdido seu pai. A pessoa que mais amava no mundo. Nada mais restara ali para que quisesse ficar. Sua mãe nunca descansaria enquanto não se livrasse dela e vivesse sozinha para ofertar seus luxos. Então, teria que dar um jeito para que pudesse sair dali o mais rápido possível. 

Artemísia sutilmente se livrou do toque daquele homem. 

- Não me chame assim. Eu não sou nada sua. - ela sussurrou. 

Algumas rodinhas de convidados olhavam a interação dos dois e uma delas, continha sua mãe que sorria, gesticulando. Os olhos das duas se encontraram e sua mãe a encarou, apertando os olhos - olhos azuis frios, como os dela - e ergueu uma sobrancelha, indicando o Conde com o nariz arrebitado. Artemísia percebeu que seus parentes sorriam, acenavam levemente para ela, mas ninguém parecia enxergá-la realmente. E fitando toda aquela turba de seguidores supérfluos, algo chamou a atenção dela no canto esquerdo do salão, onde um corredor se abria para a área da cozinha. Uma mão pequena se agitava, tentando a todo custo prender seu olhar. 

Artemísia sem pensar duas vezes, se desvinculou do Conde e foi em direção ao foco de sua distração. Assim que chegou ao fim do salão, escapuliu para o corredor e aceitou a mão que foi oferecida para ela. Antes que sua mãe pudesse vir atrás, porque Artemísia sabia que viria, Clarice a levou para a cozinha, onde os funcionários preparam o banquete do jantar e saíram para fora, em sentido dos estábulos. 

Assim que colocaram os pés na grama do quintal começaram a correr. 

Sem fôlego, Clarice abriu a porta do estábulo, onde os animais dormiam com suas respirações altas. Artemísia passou os braços por ela e ambas se apertaram. 

- Me desculpe, por isso. Mas, não conseguia ficar de braços cruzados vendo você ir embora com aquele homem. - Clarice sussurrou. 

Artemísia tentou controlar o ar que saía de seus lábios, mas era impossível segurar seu coração que batia tanto a ponto de latejar em seu peito e se sentia viva, como nunca antes. Não entendendo como há segundos, estava lá dentro com aquele Conde maldito e agora estava nos braços da mulher que sempre gostou intensamente. 

Clarice beijou seu rosto. 

- Preparei os cavalos e poucas coisas que podemos levar. Conheço alguns parentes da próxima cidade. Podem oferecer abrigo por algumas noites e veremos o que fazer a partir disso. 

Artemísia sorriu, mal conseguindo acreditar. Mas, não perdeu tempo. 

Puxou Clarice para as baías, onde o cavalo de seu pai e o seu de estimação ficavam juntos e mesmo com pouca iluminação de dentro daquele ambiente, reparou nas celas colocadas nos animais e uma pequena trouxa, enrolada em uma manta de seu quarto. Seu peito se apertou ao pensar em tudo que estava deixando para trás - certamente não a mãe - mas, na coleção de ossos do pai. Nos livros que ganhara de presente dele. Nas camisas feitas a linho de outros países. Sua pena e o tinteiro que ele redigia cartas e documentos sempre, relatando tudo em seus diários, assim como desenhos tão realistas. 

Mas, sabia que se ficasse seu destino seria pior do que a morte. 

Então subiu junto com Clarice, colocando a trouxa em seu colo, pois era bem mais alta que Clarice, quase do tamanho médio dos homens da vila e mais forte também. O que sempre fora um fortuito. Artemísia adorava praticar esgrima, luta - escondida e ensinada por seu pai - e esportes que não eram como o tricô horrível e ruim que fazia. 

Disparando portal a fora, Clarice saltitou com o alazão negro em sua frente e ela atrás, com sua égua premiada branca como a lua cheia em cima de suas cabeças. As duas avançaram pela propriedade, saindo por uma porteira aberta e correram livres por um prado em aclive, sentido as montanhas, onde poderiam se esconder na mata e pegar a estrada que cortava próximo ao rio para a casa dos parentes de Clarice. 

Elas riram e seus olhares se encontravam a poucos segundos. 

Algum tempo mais tarde, assim que chegaram sobre a clareira que beirava as árvores, passaram a cavalgar lentamente e se aproximaram mais uma da outra. A escuridão era latente sob as folhas que passavam por seus cabelos, e galhos estalavam nos cascos dos alazões. Um arrepio subiu pela coluna de Artemísia e ela encontrou o olhar assustado de Clarice, como se a mulher que estava ao seu lado também sentisse uma tensão no ar, como um zumbido persistente de algo estranho e invisível. 

Após uma breve caminhada, notaram tochas acesas ao longe. O alarme soou novamente pela mente de Artemísia e ela segurou com firmeza as rédeas de seu cavalo. Ela estalou o dedo para Clarice, que a observou atentamente e Artemísia fez um sinal de silêncio, ela reduziu drasticamente seu ritmo, quase não sendo audível a cavalgada. 

Mas, já era tarde demais, as criaturas que as espreitavam podiam ouvir desde o sussurro do vento passando pelo cabelo delas até sentir o cheiro de suor que exalou de medo de seus corpos quentes e macios. 

Um estalo de um tronco se quebrando ecoou como um raio nas sombras da floresta, e rapidamente ambas foram atingidas caindo no chão, sem controle do que acontecia. Artemísia caiu, machucando suas costas e batendo sua cabeça em uma pedra, alojada no solo úmido e terroso. Desnorteada, levantou o rosto e seus cavalos relincharam assustados, como se tivessem visto algo que ela não conseguia ver. 

E antes que pudesse procurar Clarice, seu cabelo foi puxado arrastando-a e algo frio tocou sua nuca, era afiado pontudo e perfurou sua pele. 

- Doce. - uma voz inumana sussurrou em seu ouvido. 

A morte já estava ali abraçando-a sem que pudesse fazer absolutamente nada. 

Mas, de algum jeito, Artemísia voltaria e tomaria tudo o que um dia fora seu. 

Nem que para isso tivesse que se aliar ao Diabo. 

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