A Primeira Alpha
A Primeira Alpha
Por: Karen Pinheiro
Capítulo - 1

Uma garoa fina e gelada caía incansável sobre os prédios antigos de Londres, transformando as ruas em espelhos opacos e empapando até os ossos da caçadora. A chuva, insistente, logo engrossou, batendo nas lajes e escorrendo em cortinas nas janelas, como se o próprio céu tentasse lavar a cidade de algum pecado antigo. Os moradores, enrolados em seus cobertores, dormiam alheios; não faziam ideia de que, a poucos quarteirões dali, uma caçada silenciosa e obstinada se desenrolava.

Ela estava imóvel sobre a cobertura do edifício, há horas, como uma sombra empunhando paciência e ódio. À sua frente, erguiam-se as paredes do armazém, um monólito sem janelas, cercado por portas de metal e pequenas entradas estratégicas. Pelos binóculos escuros, pôde contar o movimento: pelo menos vinte vampiros distribuídos, repartidos em posturas relaxadas que traíam confiança cega. A movimentação era quase nula; nada parecia despertar curiosidade entre eles, nada os fazia se mexer rapidamente. Ainda assim, cada detalhe lhe dizia que aquilo era uma armadilha pronta, uma calma tensa antes da chuva estourar em sangue.

Mesmo encharcada, ela conseguia distinguir o cheiro, um aroma familiar e repugnante que a assolava desde que a tragédia se abatera sobre sua família. Era o odor de Armand Corvinus, uma marca de ferro no ar: ferro frio, óleo e algo doce e podre que impregnava o lugar como se tudo ali tivesse sido banhado pelo mesmo veneno. Não havia só o cheiro dele; ela sentia a presença de cada vampiro dentro daquela fortaleza, como uma mancha que espalhava maldade por toda parte. O sangue dela ferveu nas veias ao lembrar do que Corvinus haviam feito ao seu pai, à sua mãe. Mas a memória mais cruel, a que fazia suas mãos tremerem com fúria, era que naquele exato momento ele mantinha prisioneiro, seu amado, aquele a quem havia entregado seu corpo e alma.

Ela percebeu que, se deixasse a mente correr livre por suas lembranças, perderia o controle. A raiva ardia em seu peito como pólvora, pronta a explodir e arruinar o plano cuidadosamente traçado. Ela fechou os olhos por um instante, contando até dez, buscando a disciplina que aprendera nas longas noites de treinamento. Essa noite Armand Corvinus morreria pelas suas mãos, e não de forma impulsiva, não seria algo desleixado, a não, ele sofreria em suas mãos.

Um uivo escapou do interior do armazém, cortando a chuva como uma lâmina. O som gelou suas entranhas; conhecia aquele gemido, tão humano e ao mesmo tempo distorcido. Armand estava torturando ele, e a simples ideia fez seu coração sangrar. A visão do amado preso, ferido, fazia com que suas juntas doessem, fazia seu estômago revirar. Ela sabia, sabia de sobra, que era uma armadilha. Eles queriam provocá-la, atraí-la para dentro para que, tomada pela fúria, ela cometesse erros fatais. Mas não havia escolha: se não entrasse ali e acabasse com aquilo, ele continuaria a sofrer. E ela não permitiria que mais dor recaísse sobre ele, seu amado e companheiro.

Abriu a pequena porta metálica que dava acesso ao depósito na cobertura, um refúgio que, mais cedo naquele dia, ela havia preparado com cuidado cirúrgico. Lá, em silêncio, esconderá um arsenal: pistolas 380 ajustadas, mecanismos limpos; munições especiais, forjadas com prata e um composto letal pensado para perfurar carne que não respirava; facas de prata brilhando sob a pouca luz; duas katanas de lâmina seca, presas nas costas como cruzadas de aço; e uma bolsa oculta junto à bainha, cheia de pentes carregados. Cada peça fora escolhida não apenas pela morte que poderia causar, mas pela eficiência em terminar com o que aquilo representava.

Ela passou as pistolas na cintura, prendeu a faca na coxa esquerda, outra na direita, sentiu o frio da prata contra a pele molhada, um lembrete de que aqueles instrumentos eram aliados. As katanas nas costas, perfeitamente alinhadas, pareciam nomear o destino de quem ousasse cruzar seu caminho. E havia ainda uma surpresa, algo guardado para o caso de todas as armas falharem: um pequeno frasco com um líquido negro aprisionado dentro de uma caixa de madeira talhada, um veneno antigo, aprendido com um velho sacerdote nas montanhas, um veneno que fazia até os mortos retorcerem sua ausência de vida.

Ela observou novamente o armazém, respirou fundo. A garoa batia no rosto, misturando-se às lágrimas que ela não tinha mais permissão para derramar; eram lágrimas de raiva, de culpa, e de uma saudade que corroía. Hoje, pensou, Armand lhe devolveria tudo aquilo. Hoje, cada sombra ali dentro provaria o inferno que ela era capaz de trazer.

A cidade, nesse momento, dormia. Somente a chuva e o bater dos seus próprios sapatos quebravam o silêncio. Ela saltou do parapeito com a leveza de quem faz do perigo uma camuflagem. A queda foi curta, calculada, pousou sem ruído entre caixas e restos metálicos do terraço ao lado do armazém. Seus movimentos eram rápidos e econômicos, como os de um predador que soube esperar o momento exato para a caça.

Ao se aproximar da entrada lateral, ouviu passos abafados. Dois vampiros discutiam baixinho, trocando piadas cruéis que fariam qualquer mortal recuar. Ela sorriu, com os dentes cerrados. A mão acariciou o coldre: a primeira bala especial estava pronta. A missão não era vingança cega, era restauração. Restaurar o que fora roubado, devolver nomes aos entes perdidos, apagar o rastro que Armand deixara como se fosse dono da própria vida.

Seu corpo, treinado por noites sem estrelas, agiu no compasso que havia ensaiado mil vezes. O primeiro disparo foi seco, preciso. A chuva abafou o som, transformando-o em um estalo perdido. O homem caiu, como um boneco esquecido. O segundo veio em sequência, a faca fez o trabalho sujo onde a bala falhara. Tudo aconteceu em instantes que duraram uma eternidade: lutas curtas, golpes calculados, sangue misturado à água, reflexos que já não pertenciam ao humano que ela um dia fora.

Enquanto avançava, prometeu em silêncio a cada queda: “Por minha mãe. Por meu pai. Por quem me foi tomado.” E na promessa havia algo mais, não apenas ódio, mas responsabilidade; a certeza de que, ao derrubar cada um ali, não estaria apenas vingando, mas também preservando um juramento. Ao alcançar a porta principal, ouviu novamente o uivo, mais fraco, mais próximo. Armand estava mais perto do que ela imaginava. Um sorriso frio desenhou-se em seus lábios empapados: a hora havia chegado. Ela empurrou a porta, respirou o cheiro pesado do interior e entrou. Hoje, sob a chuva e o céu pesado de Londres, ela mostraria o inferno para cada um de seus inimigos.

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