UM POUCO DE CAOS, UM POUCO DE LUZ

Olhou novamente ao redor, tudo se movimentava em um perfeito equilíbrio, exceto… exceto por uma garota parada a alguns metros dali, parecia estar suspensa no ar. Sentiu-se subitamente frustrado, o que vinha acontecendo com certa frequência havia algum tempo, mas dessa vez a força com que sentiu era tao forte que mesmo que usasse todas as palavras que conhecia não conseguiria expressar a sensação, aquilo o irritou. - Como poderia um escritor não ter as palavras certas? - Era como se a garota tivesse despertado nele aquele horrível sentimento de ver algo, no caso alguém, tao fora de seu alcance, que fica impossível negar a impossibilidade do êxito, quando qualquer tentativa para obter o que desejamos será em vão, frustração em seu estado mais bruto. Ainda assim, havia também a agradável sensação, como banhar-se em um mar agitado, libertadora e eufórica, uma sensação que parecia crescer em seu peito. Era a garota? Não podia ser a garota, uma estranha em frente ao aeroporto, a vida dele já estava fora do eixo demais… Que direito especial aquela garota tinha, para interromper assim a vibração das coisas ao redor deles? - para em troca tocar o sol com os lábios – riu da frase que se formou em sua mente.

 James sempre fora assim, apreciava o movimento, o fluir das coisas. Para ele, diferente dos outros que consideravam aquilo um caos, o movimento provava que a vida era contínua e efêmera, e essa era a única vantagem que via na vida, efemeridade. Pois fora isso, a vida sempre fora uma grande sacana, um exemplo era o que se passava diante dos seus olhos naquele momento, Melinda estava falando com a tal garota e em segundos as duas vinham em direção ao carro. Observou as duas mulheres se aproximando, as duas atravessavam a avenida em direção ao velho carro, apesar da garota de cabelos escuros ser quase 15 cm mais alta do que a mulher ruiva ambas caminhavam no mesmo ritmo, a garota ruiva, sua garota, gesticulava e sorria com entusiasmo a mulher de cabelos curtos, sacudia a cabeça com um sorriso constrangido e resignado. A garota alta entrou no carro e só então o olhou e sorriu

– Excusez-moi, bonjour.

 James sentia algo remexer em seu peito, aquela garota, Sophie, Ray havia dito seu nome antes de saírem, não se encaixava ali. Vestida como um moleque, parecia-se fisicamente com uma das mulheres retratadas por Modigliani, com seu longo pescoço descoberto e seu olhar vazio. Sentia raiva da garota sem saber porque. Era raiva mesmo? Ele estava suspenso no espaço e fora ela que o arrastara ate lá, em uma fração de segundos. Sophie fez parecer que o ar era feito de seu próprio perfume, lírios e madressilva. Era algo familiar, doce e sensual, ele já a conhecia, estivera com ela um milhão de vezes em uma terra de sombras e névoas. Centenas de vidas e em todas, ela segurava seu coração e sorria. Sorria, enquanto o sangue de James escorria doce e quente entre seus dedos, ele a sonhara. Sua cabeça rodou.

Decidiu que não permitiria que a garota avançasse mais em sua mente, mesmo que tivesse que ser desagradável.

– Hei! Ray tem uma irmãzinha francesa? – se surpreendeu com o próprio tom, afinal a garota não tinha noção do estrago que estava causando, ela apenas o cumprimentara de forma cordial, julgando que se está na França onde se fala francês, não havia nada de errado em a garota utilizar o idioma local – Bonjour, petite fille.

 A maneira debochada com a qual reagiu ao cumprimento de Sophie o queimou tanto quanto o perfume da garota, ao notar o sorriso constrangido que ela sustentava sentiu-se culpado, reparou na forma pouco feminina que ela sentara na parte de trás do seu carro, achou divertido – essa garotinha não tem ideia do que está se passando na minha cabeça – sua reação para com a garota era a coisa mais incomum que já sentira, não costumava usar de deboche para se proteger. Por que estava tentando se proteger, afinal?

 Sua mente começou a vagar, a imagem de Sophie, vestindo saia curta e meias brancas, entrando escondida em uma sessão de filmes adultos. Sim era o que ela parecia, perdida ali no meio do caos particular de James. Como ela foi parar ali? Não fazia cinco minutos que a conhecia e ela estava instalada em sua mente como se sempre pertencesse aquele lugar, mesmo tao diferente de tudo que havia em sua cabeça. Ela o estava cumprimentando, quando ele se virou para responder, a imagem da garotinha no cinema ascendeu em seu pensamento, olhando-a nos olhos, não conseguiu dizer uma palavra, mas tentou esboçar um sorriso, que sabia, saíra mais suspeito do que jamais admitiria.

 Olhando nos olhos de Sophie percebeu que se equivocava, os olhos não eram vazios, como as mulheres de Modigliani, mas sim profundos, como um rio que transborda com a chuva, e James sentia-se como amaldiçoado cachorro que a correnteza carrega. Era mais caos dentro do seu caos, e o perfume, madressilva, só piorava a sensação. Ele queria arrancar ela do carro, também queria pular em cima dela, ele provavelmente estava ficando louco. Sophie havia invadido o carro, invadido sua mente, como um sol quente de verão, ele estava suando, o perfume dela o tornara sedendo e ele nem sabia pelo que, sentiu-se tonto e envergonhado.

 Se mexeu com incomodo no banco do carro, ao olhar pelo retrovisor pegou os olhos da garota de volta, um arrepio atravessou a pele em direção ao estômago, ela não tinha nenhuma expressão que revelasse seus pensamentos, além de um sorriso divertido que parecia mais educação do que real divertimento.

 Sophie… Sophie, o nome dela rolava por sua mente e língua para logo dançar entre seus dentes. O cabelo curto a deixava ainda mais feminina, por mais que ela parecesse se esforçar em busca do contrário. E os olhos – maldição – James se sentiu preso, os olhos de Sophie eram grandes e quase orientais, como uma antiga estrela do cinema mudo.

 Melinda falava incessantemente, aquilo parecia divertir e distrair a garota, ou melhor a garota parecia fingir divertimento e interesse.

 Quando sua namorada mencionou seu trabalho ajustou o retrovisor para assistir a reação de Sophie. Não que ele esperasse que ela conhecesse seu trabalho, já faziam quase três anos que o havia publicado, e depois disso só obtivera deserto e a coluna semanal do jornal local, que ajudava a contribuir com o pagamento das contas em casa. Ainda assim, por um instante ele acreditou que ela poderia conhecer seu livro, talvez conversassem sobre ele, talvez ela também estivesse tao confusa em sua presença, talvez ele estivesse arrastando a garota também – Talvez! Talvez! - pensou amargo, até em minhas divagações sou repetitivo.

 Sophie parecia cada vez mais distraída, mesmo quando questionada se conhecia seu livro, ela o fizera sem ter certeza, a cara de pau nem hesitara, e antes de responder ainda olhara bem em seus olhos. Sophie não fazia a miníma ideia sobre o que Melinda estava falando, o que parecia não afetar nem a Melinda e nem a Sophie.

– Você consegue um exemplar para ela, não é James? – Perguntou Melinda, enquanto Sophie sorria para ela como se estivesse prestando atenção, que grande trapaceira era aquela garotinha.

– A Dama Cinza – Disse, esperando pegar a garota na fraude, mas Melinda atrapalhou seus planos indicando que aquele era o nome do livro ao ressaltar que Sophie já dissera que não o conhecia. Porem verdadeiramente incomum foi o fato da garota corar, e tê-lo feito de forma tão adorável. James desviou os olhos do retrovisor – maldito Modigliani – gemeu por dentro. Mas logo sua atenção voltou para Sophie.

– Sobre Lady Janet Douglas? – ela falava sem dar atenção a ele. Então ela ao menos conhecia a história. Melinda seguia sua interpelação, mas Sophie parecia distraída, novamente. Assumiu que conhecia a história do fantasma de Lady Douglas, e ao notar o desapontamento de Melinda, se desculpou polidamente, saindo pela tangente de maneira bastante peculiar, era como se ela soubesse de algo mas não quisesse que eles soubessem, era um comportamento bastante intrigante. Talvez fosse apenas a forma de fingir interesse, socializar com os vizinhos do irmão, sim, era exatamente isso, um truque de boa educação, James já havia descoberto seu segredo, ela era uma trapaceira e ele não acreditou em suas desculpas.

 Quando tudo pareceu se acalmar, e o único barulho que ouvia, eram a estrada e o rádio, James decidiu observar melhor a garota que parecia estar em outra rotação. Sophie ia tão concentrada em seus pensamentos que não notou que ele a observava. Tudo nela, parecia animar um demônio interior, que até agora, James julgava inexistente. Seu cheiro era doce, como uma manhã ensolarada, ele podia sentir como seria tê-la nas mãos, sentá-la em seu colo, tocar com a língua o pescoço, os seios… – merda – praguejou internamente e torceu para que Linda não notasse a ereção que se precipitava. Precisava se distrair… Pensar em números talvez? Lembrou-se da conversa que tivera com Ray alguns dias atrás, Sophie completaria 22 anos no fim do verão, não era o tipo de número que acabaria com sua ereção. Novamente sentiu uma espécie de raiva palpitar, que tipo de porco escroto ele se tornara para ser tao desrespeitoso com aquelas mulheres? Como diabos ele se encararia no espelho? Tentou ordenar os pensamentos, mas só viu caos, não o seu idílico e glorioso caos, era o rio transbordando depois da chuva, e o patético cão, James, se afogando novamente – cara isso é absurdo, você nem conhece essa fedelha! – tentou gritar internamente consigo, mas como resposta o demônio riu de volta, feliz e satisfeito da bagunça que se instalara. Não resistiu espioná-la uma vez mais, pelo retrovisor observou o rosto, era delicado, com lábios cheios e avermelhados, o nariz arrebitado, mas os olhos eram o mais interessante da composição, aquilo causaria estragos, e o pior de tudo, os estragos seriam nele.

 Era inacreditável, quanto uma viagem de 25 minutos poderia ferrar tanto a sua cabeça, não… não era isso, sua cabeça já estava quebrada fazia muito tempo, mas agora algo conseguiu se arrastar para dentro, através do buraco aberto. Perguntava-se se a coisa que entrou em sua mente, era só a imagem da garota distante beijando o sol ou o demônio que a acompanhava. Trincando os dentes, pressentiu os problemas. Foi com alívio que avistou o prédio no meio da quadra, fechou os olhos e pediu que Sophie desaparecesse como a alucinação que parecia ser. Mas a garota não sumiria assim, sentia-se aliviado por estar em casa, desejava urgentemente parar de sentir o cheiro de flores que vinha dela – que porra estava rolando? – sua cabeça correu alucinadamente, enquanto Melinda recomeçou a falar.

Quando o carro estacionou em frente ao prédio em que moravam, um milagre extraordinário, julgando que vagas para estacionar em Paris são um mito tao grande quanto as múmias da Coluna de Julho, na Praça da Bastilha, James desligou o motor e com um suspiro tentou reordenar seus pensamentos – as coisas voltarão ao normal? - aquela torturante obsessão talvez acabasse assim que Sophie descesse do carro. Melinda virou-se para trás novamente.

– Você vai adorar Paris no verão, quase não tem turistas…

– Nem parisienses – Ele disse, soando mais mal-humorado do que gostaria. Melinda não se deixou abalar e seguiu sua conversa com Sophie, por dentro James já estava implorando para que elas saíssem logo dali, então subitamente teve a sensação mais desagradável que já experimentara, ele estaria longe dela, fisicamente longe, aquilo fez com que seu coração acelerasse e sentiu um calor subir pelo pescoço, o ar ao seu redor ficou denso, ele estava se afogando.

 Reparou no meio sorriso que Sophie estava lançando para Melinda enquanto falava – Sim, estive aqui no último verão, a cidade fica extremamente agradável e o fato do sol se pôr muito mais tarde que o habitual é bastante estimulante… - Ela esteve aqui: Verão passado ela estava aqui… - e eu na Córsega, tendo o verão mais fodido da minha vida – pensou amargamente.

 Melinda estava contando para Sophie o que fizeram no último verão, quando ele se deu conta que a garota já estava na ponta do banco, quase empurrando Melinda para sair, ele sabia sobre o relacionamento dos irmãos, imaginava o quão ansiosa Sophie devia estar para rever Ray, Melinda havia comentado sobre a proximidade deles, mas James confessou para si mesmo, nos últimos tempos não prestava muita atenção ao que a esposa dizia.

– Uau, Córsega!? - Sophie parecia legitimamente surpresa e curiosa, enquanto Melinda respondia com o tom que James havia se acostumado quando o assunto era a Córsega. - Sim, estivemos la no último verão, James buscava inspiração.

 – Isso parece maravilhoso! - A voz de Sophie era mel escorrendo do favo, parecia animada e legitimamente interessada, James se virou para encará-la e perguntou abruptamente.

 – Você conhece?

– Não, mas acredito… – Sophie pareceu incomodada, olhou para os próprios pés – bem, pelo que já li, acredito que seja um belo lugar, inspirador…

 Quando Sophie ergueu a cabeça, James a encarava com um sorriso maravilhado que ele não havia se dado conta – Quão doce ela conseguia ser? - ele pensou enquanto percebia o rubor nas bochechas dela, sentiu o rosto esquentar também, mas logo foi trazido de volta por Melinda.

 – Inspirador? Não para o James. – disse irônica, descendo do carro e puxando o banco para que Sophie a seguisse. E Sophie a seguiu, sem dirigir o olhar novamente para James. Melinda costumava ser amável e complacente na maior parte do tempo, mas a Córsega havia se tornado um ponto bastante doloroso do relacionamento dos dois.

Quanto a Sophie… O que ela pensaria sobre tal testemunho de fracasso? Como ela podia fazê-lo sentir todas as sensações mundanas e celestiais ao mesmo tempo? A única certeza é que ela jamais desapareceria, Sophie estava agora sob sua pele, ela e seu perfume de flores, e admitiu com temor para si – não que eu deseje que ela desapareça – James sentiu a água encher seus pulmões.

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