3 - O Herdeiro de Lallybroch

Katherine

Minha avó continua acariciando meu rosto até que meu pai chegue. Ele está brabo, muito brabo, e seus olhos estão frios enquanto ele me olha. O rei  avança pelo recinto até que pare em minha frente. Por alguns segundos, temo que ele vá me bater, mas ele apenas cai de joelhos e me pega pelos ombros, olhando-me atentamente em busca de algum machucado.

      - Onde está a mamãe? - Assumindo a postura de rei, Filipe não diz nada, mas a tristeza evidente em seus olhos quando ele se afasta me faz ter certeza de que nunca mais a verei.

      As portas de carvalho da sala do trono se abrem novamente, mas desta vez é tio Jonas e tia Celine, irmã gêmea de minha mãe, que entram. Olho para as mãos de minha tia, ela está carregando meu manto de viagem.

      - Não. - Meu pai se levanta e começa a se afastar, virando as costas para mim. - Não, pai, por favor. Não me mande embora. - Corro em direção a ele e agarro seu manto, mas meu pai me afasta com brutalidade, derrubando-me no chão.

      - Filipe. - Minha avó o repreende enquanto tenta me impedir de chegar até ele novamente. - Ela é apenas uma criança. Nada do que aconteceu foi culpa dela. Aquela maldita torre…

      - Era para ela ficar na torre. - Meu pai grita, tão alto que todos prendem a respiração, temendo a ira do rei. - Se ela tivesse ficado na maldita torre, Eleonora, Celeste estaria viva. - A voz do rei de Ravengarden falhou ao pronunciar o nome de sua amada.

      - Pai, por favor. - Grito enquanto minha tia me pega nos braços e me leva em direção à porta da sala. - Por favor, por favor não me mande embora. Eu não quero ir. Eu quero minha mãe. - Eu gritava, desesperada, entre soluços e lágrimas, mas meu pai me virou as costas.

      Enquanto minha tia me carregava para fora, acariciando meus cabelos e me prometendo que tudo ficaria bem, que eu ficaria segura, eu só conseguia pensar que naquela noite algo quebrou dentro de mim. Naquela noite, perdi minha mãe e meu pai.

Acordo assustada e olho para os lados. Estou em meu quarto, tudo está bem, foi apenas outro sonho horrível, ou melhor, foi tudo uma lembrança horrível. Fico sentada olhando pela janela por um tempo. Já é noite, provavelmente dormi o dia inteiro.

      - Céus, você está viva. - Alicia surge do nada e se joga na minha cama, me abraçando com força. - Me desculpe, machuquei alguma coisa? - Ela se afasta e me analisa. - Vou trocar as ataduras. - Ela faz um gestou indicando meus antebraços enfaixados enquanto se afasta.

      Respiro fundo e começo a sentir as dores que a adrenalina não me deixou sentir antes. Minha cabeça dói mais do que nunca, minhas costelas doem e meus pulsos, céus, é como se algum animal enorme tivesse cravado as garras neles. Então aconteceu mesmo, eu realmente encontrei um lobo. E Boonie…

      - Alicia. - Ela evita meu olhar enquanto arruma o material de primeiros socorros sobre a minha cama. - Onde está Boonie? - Eu sei a resposta, sei que ela está morta, mas apenas quando seus olhos se enchem de lágrimas é que não consigo mais negar a verdade para mim mesma.

      - Olhe para o outro lado, Kat, talvez você não queira ver isso. - Diz Alicia enquanto tira as faixas do meu braço direito. Embora ela tenha me avisado para não olhar, eu já estava encarando as feridas pulsantes.

      Não são apenas cortes normais, longe disso. Quatro cortes profundos vão do meu cotovelo até quase a parte interna do meu pulso. Todos os cortes são contornados de um tom doentio de roxo e escorre um líquido semelhante a pus, mas é verde e mal cheiroso.

      Rapidamente olho para o lado, respirando pela boca e tentando controlar o enjoo. Sinto cada toque da mão de Alicia, por mais leves que sejam. Sinto quando ela despeja o líquido anticéptico, quando ela passa o algodão para limpar o excesso, sinto quando Ali coloca as gazes sobre os cortes e sinto principalmente quando ela enrola eles novamente.

      Fecho os olhos enquanto Alicia repete o mesmo processo no braço esquerdo e tento pensar em outra coisa, mas olhos dourados e cabelos cacheados enchem meus pensamentos, então abro os olhos novamente e observo os cortes. Encarar a dor física é sempre mais fácil do que encarar a dor da perda.

      - Vou chamar seus tios. - Alicia sai do quarto enquanto me sento novamente na cama, concentrando-me na dor que percorre meu corpo para que possa esquecer das cenas daquela noite.

      Oh céus, Boonie. Eu deveria ter sido mais forte. Por minha causa, Boonie está morta, pois, para começar, se não fosse por mim, nem haveria um lobo na floresta. Junto a pouca força que me resta e levo minha mão até a gaveta da mesa de cabeceira branca, pegando nossa foto, nossa primeira foto juntas, no dia em que nos conhecemos.

      Estávamos em um piquenique da escola, nós três juntas. Lembro que Boonie não quis sentar-se com o resto de sua turma, então juntou-se a mim e a Alicia enquanto riamos e brincávamos. Na foto, Ali está de pé, com um cupcake de chocolate nas mãos, fazendo uma careta, pois uma abelha voava ao redor do doce, eu ria com vontade e Boonie... Boonie olhava para mim, sorrindo e com os olhos brilhando.

      - Ah, meu amor. - Minha tia entre no quarto com meu tio seguindo-a de perto. Eu consegui segurar as lágrimas tranquilamente até agora, mas ao ver a irmã gêmea de minha mãe andando em minha direção, com o rosto manchado de lágrimas e preocupação estampada em seu semblante, faz com que o ato de segurar as lágrimas torne-se quase impossível, mas eu não vou chorar, me recuso a chorar.

      - Você está bem, Kat? - Tio Jonas sempre foi um homem severo, assim como meu pai, mas até ele parece abalado enquanto minha tia me abraça e chora em meu ombro.

      - Estou bem. - Tia Celine se afasta e eles trocam olhares entre si. Imagino que este seja o momento em que eles vão começar a me xingar, dizendo que nunca mais sairei de casa, mas então eles se sentam e me olham.

      - Precisamos conversar, Katherine. - Meu tio franze o cenho, procurando as palavras certas para iniciar a conversa, mas a verdade é que ele não precisa, pois minha avó teve essa conversa comigo quando eu tinha nove anos, pouco antes dela falecer.

      Ela não me contou muita coisa, pois é algo que me deveria ter sido dito apenas aos dezoito, contou-me apenas algo sobre o destino das princesas de Ravengarden e sobre, o que é estranho, nenhuma nunca ter sido coroada aos dezoito, como manda a tradição dos clãs.

      - Tio… - Estou prestes a lhe falar que vovó já me explicou quem sou, mas lembro que prometi que não contaria para ninguém então mordo o lábio.

      - Querida, você lembra das histórias que eu te conto durante nossa aulas? Especificamente falando, você lembra da história de Merlin e da criação da ilha de Lorien? - Tia Celine começa a falar com delicadeza.

      - Sim, lembro. - Ela parece mais aliviada, mas ainda assim tensa, o que me deixa confusa. Não é uma história complexa, fala apenas sobre um pai que crio uma ilha para proteger seus filhos.

      - Nós não deveríamos te contar isso agora, mas tendo em vista os acontecimentos de ontem à noite, seu pai autorizou que a gente conte o necessário. - Tia Celine se mexe desconfortavelmente na cadeira. - A verdade, meu amor, é que você é Freya Ravengarden, a futura princesa do clã Ravengarden, e precisamos manter você segura, pois você precisa ser coroada como a verdadeira princesa e ter um futuro diferente de todas as outras princesas do clã.  - Todas as outras? Do que ela está falando? Tia Celine faz uma pausa, como se pesasse as palavras. - Naquele dia em que você saiu da torre em que seu pai a mantinha por segurança, ele percebeu que não seria possível mantê-la escondida até os seus dezoito anos, se com seis você fugiu, o que faria com mais um pouco de idade? - Minha tia para, olhando tio Jonas como se pedisse ajuda.

      - Ligamos para o seu pai esta manhã e ele mandou uma guarda para levá-la de volta para Ravengarden. - Ele passa a mãe pelos cabelos grisalhos e olha em meus olhos. - Sinto, muito, Katherine, mas você voltará para Lorien assim que amanhecer.

      - Não. - Eu nunca quis deixar Lorien, pedi e implorei que meu pai me deixasse ficar, mas depois de viver mais da metade de minha vida entre mundanos, a última coisa que eu queria era voltar para lá. - Vocês me prometeram, vocês falaram que eu poderia ficar até os dezoito. - Engulo em seco, desesperada.

      - Freya…

      - Katherine, meu nome é Katherine. Não me chame de Freya nunca mais. - Respiro fundo, tentando empurrar a raiva para longe, a fim de manter meus poderes sob controle e me concentrar no aqui, no que está acontecendo agora.

      - Katherine. - Minha tia pega minha mão com força. Olho em seus olhos e é como se estivesse olhando para minha mãe. A cor deles é diferente, os de minha tia são mais parecidos com os meus, mas há neles a mesma bondade e o mesmo amor direcionado a mim. - Sabíamos que esse dia chegaria, meu amor, ele só chegou mais cedo do que o previsto. Por favor, Katherine, eu te peço, não dificulte as coisas. Você sabe como seu pai pode ser quando é contrariado. - Ela limpa as lágrimas de seu rosto e sorri.

      - Alicia vai com você e a guarda. Eu e sua tia iremos em alguns dias. - Meu tio pigarreia enquanto levanta-se e vai em direção a porta. - Tome um banho e pegue algumas roupas para a viajem. Não demore. – Dizendo isso, ele sai pela porta.

      - Espera, tia. - Tia Celine, que estava se levantando para seguir o marido, para e me olha, um sorriso leve brincando em seus lábios. - O que aconteceu com o lobo? - Minha tia olha em direção a porta, como se quisesse desesperadamente fugir.

      - Ele... - Ela para por um momento, esvaziando sua expressão e depois continua. - O lobo não será mais um incômodo, pois ele está morto. Você conseguiu Katherine, você o matou.

Passado o choque de saber que realmente matei o lobo, eu me levanto e vou em direção ao banheiro. Estou uma bagunça, penso, olhando meu reflexo no espelho. Meus cabelos estão cheios de galhos e com algumas folhas, tenho arranhões no rosto e nas mãos e hematomas por todos os lugares de meu corpo. Tiro minhas roupas lentamente e ligo o chuveiro.

      O banho, que deveria lavar a sujeira de meu corpo e parte da minha dor, é, na verdade, um desafio. A água toca em meus arranhões fazendo arder, mas não consigo me concentrar na dor, pois tenho que focar em meus braços, impedindo que a água molhe os curativos.

      Depois de me secar, saio em direção ao meu quarto com a toalha enrolada firmemente ao redor de meu corpo. Congelo na porta de meu quarto, demorando cerca de trinta segundos para perceber que é Alicia mexendo em meu armário.

      - O que você está fazendo aqui? – Meu tio falou que Alicia irá comigo para Lorien, penso, só agora entendo a verdade por trás de suas palavras. – Você é uma feiticeira? Como eu? – Alicia arregala os olhos e um leve sorriso curva seus lábios.

      - Não, sou uma fada. – Ela suspira enquanto coloca algumas das roupas do armário sobre minha cama. - Me desculpe, eu deveria ter dito alguma coisa para você antes, mas seu pai e seus tios... - Ela olha para o chão, evitando o meu olhar.

      - Está tudo bem. - De tudo o que aconteceu ontem, descobrir que Alicia é uma fada que me vigia é, de longe, uma das mais fáceis de encarar.

      - Certo. - Ela sorri e continua tirando roupas do meu armário. - Precisamos arrumar nossas coisas. Na verdade, suas coisas. Não poderei ir em casa, então pensei que você poderia, talvez, me emprestar algumas roupas? – Ela pega duas mochilas no fundo de meu armário e me olha.

      - Claro, pode pegar o que quiser. - Ali sorri enquanto continua escolhendo algumas peças em meu guarda roupas.

      - Vista isso. - Alicia me alcança algumas roupas e eu visto, enquanto ela organiza as duas mochilas com o que poderá ser essencial para nós na viagem.

      Comemos panquecas que minha tia trás para nós e conversamos um pouco, enquanto guardamos itens de higiene pessoal e algumas coisas de valor sentimental que não suportaria deixar para trás, como a faca que ganhei de tio Jonas quando completei quinze anos, o colar com um pingente de coração que ganhei de tia Celine e algumas fotos minhas com Boonie e Alicia.

      Meia hora depois, o sol começa a nascer, surgindo forte e brilhante por entre as árvores que circundam a casa onde eu cresci, onde criei lembranças, memórias tão doces, a casa que estou deixando hoje, talvez para sempre.

      - Precisamos ir. – Alicia diz, com uma certa tristeza na voz, enquanto me alcança algo em sua mão fechada. – Achei isso na floresta, quando te encontrei. – Ela coloca o anel que Boonie me deu em minha mão. Olho para o diamante em formato de coração e quase choro enquanto coloco o anel de volta em meu dedo anelar. – Ei, está tudo bem. Vai ficar tudo bem. – Ela me abraça com força e depois me guia para o corredor.

      No alto da escada, Alicia larga minha mão enquanto desce as em direção a cozinha. Como ela pode estar sempre tão alegre? Boonie está morta, penso enquanto ouço sua voz, cheia de alegria, cumprimentando alguém que eu ainda não vejo.

      Paro na entrada da cozinha, analisando a cena que se desenrola. Meus tios estão sentados a mesa, cada um com uma caneca de café nas mãos e um sorriso forçado no rosto, e, de frente para eles e de costas para mim, estão três homens muito altos e de ombros largos, de pé, eles parecem ocupar todo o espaço da cozinha de minha tia.

      - Eu estava morrendo de saudade de vocês. – Alicia, na ponta dos pés, abraça um por um dos gigantes. – Essa é Katherine, nossa carga preciosa. – Ela anda em minha direção e engancha o braço no meu, me puxando para dentro do recinto.

      Quando os meninos parados em minha frente se viram para me encarar fico tensa imediatamente. Vampiros. Nunca vi um pessoalmente, óbvio, mas minha tia me fez estudar algumas coisas sobre eles, então ao menos consigo reconhecer um quando vejo, ou achei que pudesse.

      Todos os três são pálidos, mas há alguns detalhes que os diferenciam. O que está mais longe de nós tem cabelos pretos na altura dos ombros e olhos azuis. O do meio, tem cabelos pretos bem curtos e olhos acinzentados. Mas é o que está mais próximo de nós é que prende minha atenção. Assim como os outros dois, seus cabelos são pretos, mas seus olhos são azuis mais escuros, quase pretos, como o céu ao anoitecer… Puta merda, é o menino que eu encontrei no corredor ontem. Como pude deixar passar o fato de que ele é obviamente um vampiro?

      - Este é Jaxon. – Percebendo a tensão no ar, Alicia sacode levemente meu braço e aponta para o menino de cabelos cumpridos. Ele dá um leve sorriso e algo em seus olhos faz com que eu consiga devolver o sorriso com naturalidade. – Eduardo. – Ela aponta para o do meio, que também sorri para mim. – E Lorenzo. – Ela aponta para o menino que está mais próximo e ele dá um sorrido zombeteiro.

      - Prazer em conhecê-la, princesa. – Engulo todos os palavrões e insultos que tenho vontade de proferir contra esse estranho arrogante e apenas sorrio, como minha tia me ensinou.

      - O prazer é meu. – Faço uma leve mesura, o que o faz rir.

      - Nos veremos em breve. – Minha tia diz, acariciando meus cabelos e tirando minha franja da frente de meus olhos enquanto os três meninos e Alicia saem pela porta. – Não se preocupe conosco, apenas com você. Pegou roupas para o frio?

      - Peguei. – Grita Alicia da porta da casa e depois sai.

      - Vejo vocês em breve. – Dou um abraço apertado em meus tios e saio pela porta.

      Em frente a casa há uma SUV preta nos esperando. Vou até Alicia, que caminha ao meu lado, e juntas colocamos nossas coisas no porta malas enquanto os vampiros ficam esperando, pacientemente, que entremos no carro.

      De alguma forma, enquanto eles discutem onde cada um vai sentar, acabo presa no banco de trás entre Eduardo e Lorenzo. Passo algum tempo tentando achar uma posição confortável, mas não importa para onde eu me mexa, sempre fico tocando em algum deles, ou nos dois. Pelo menos eles não são frios, penso com amargura.

      - Já acabou, princesa? – O sarcasmo na voz de Lorenzo faz com que eu descida ficar mais inclinada em direção a Eduardo, que não parece desconfortável com esse fato.

      - Eu não sou uma princesa. – Praticamente rosno em direção a Lorenzo, tentando deixar claro que não vou tolerar seu comportamento desagradável. Afinal, qual é a dele? Nem mesmo o conheço.

      - Você é tão princesa quanto eu sou príncipe, princesa. - Demoro um tempo para entender suas palavras, mas então a ficha cai. – Perdão, acho que não me apresentei adequadamente. Meu nome é Lorenzo Lallybroch, sou o herdeiro do clã de Lallybroch.

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