1. Sunfalls

Aquele era um dia muito ensolarado, com a luz do Sol lançando raios dourados nos campos de girassóis, trigo e milharais que praticamente cercavam a cidade mergulhada em um calor intenso dia e noite, sempre. Mas em Sunfalls não passava de mais um dia normal e entediante, igual a todos os outros desde que a cidade fora fundada. 

Sunfalls era uma típica e clichê cidade de interior que jamais mudava: havia missa aos domingos, festival da torta uma vez a cada semestre e escola cinco dias por semana durante toda a manhã, com as famosas panelinhas de meninas pseudo-populares, seus namorados bonitões e meninos que viviam dizendo que iriam embora de Sunfalls assim que acabasse a escola para entrar em uma universidade, mas nunca iam embora de fato.

E havia Louisa Newton. 

Louisa nascera em Sunfalls e não fazia parte de grupo algum, tanto na escola como em qualquer outro canto da cidade. O pai de Louisa, Saul, era pastor na pequena igreja da cidade e sua esposa, Jenna, tinha uma sorveteria que nunca deixava de faturar por conta do clima insuportavelmente quente da cidade. Louisa tinha um irmão de nome Henrik, apenas um ano mais velho que ela. Henrik trabalhava com Jenna na sorveteria enquanto Louisa tentava se livrar do mesmo destino que ele: ter de passar quase vinte e quatro horas com a mãe extremamente alegre e “adoradora do Senhor”. 

Ela obedecia aos pais, mesmo odiando a si mesma por ter de ir à igreja toda semana e ter de rezar a cada grão de arroz que comia. Não reclamava por ter de ser como que Jenna estipulava, embora sua mãe fosse menos conservadora em relação a determinadas coisas. Deixava Louisa usar jeans azuis e tênis all star vermelhos, blusas ligeiramente justas e cabelos ao gosto de Louisa, soltos ou trançados, tingidos ou não, enquanto as demais mães forçavam suas meninas a usarem roupas fechadas e que deixavam pouca pele à mostra, incluindo cabelos presos. 

Mas era claro que, longe de suas mães, as meninas se transformavam nos piores pesadelos de seus pais. Invadiam galpões industriais e trocavam as roupas castas por minissaias e blusas extremamente decotadas, bebendo como vadias loucas com seus namorados e coisas do tipo, fazendo tudo que podiam de errado pelas costas de todos. Normalmente as pessoas de sua idade a evitavam por conta de seus pais, que eram demasiado fervorosos quanto à sua Fé. Pouquíssimas pessoas desejavam ter qualquer tipo de amizade com a filha do pastor, a quem pudesse tagarelar o que não devia sobre os demais jovens. Exceto Chris. 

Chris mudou-se para a cidade com seu pai, quando era apenas um bebê. Ninguém sabia coisa alguma a respeito de sua mãe, nem mesmo ele. Chris crescera com Louisa, pois ela era a única que não o olhava torto por não ter uma família como todas as outras naquela cidade, uma família que frequentava a igreja e tinha imagens religiosas espalhadas pela casa. O pai de Chris trabalhava em uma metalúrgica na cidade ao lado e raramente estava em casa, a não ser para dormir. Então Chris crescera sozinho, sem alguém que dissesse o que fazer, quando fazer. Ele tinha a mesma idade de Henrik, dezesseis anos. Aos treze havia tingido o cabelo de azul celeste e furado as orelhas no banheiro de casa, colocando duas argolas prateadas em casa uma. Seu pai, que se chamava Marco, o tinha proibido de trabalhar até que terminasse a escola para que Chris não acabasse se enrolando ao tentar conciliar os dois. Na cidade todos os taxavam de marginais por conta de suas aparências; Marco tinha mais tatuagens do que pele livre e um ar carrancudo, como se a qualquer momento fosse sacar um canivete do bolso e matar alguém. Apesar dos estereótipos, Marco e Chris eram boas pessoas, apenas mais duas vítimas de falsos comentários e olhares tortos. 

Aos quinze, Chris pedira Louisa em namoro, que aceitou. Desde então ele, Louisa e Henrik formavam um trio solitário que se mantinha longe de tudo e todos, passando os dias nos campos áridos ou comendo minhocas de gelatina empoleirados no muro grosso do pequeno cemitério de Sunfalls, atrás do qual passava um riacho cristalino à sombra de árvores nas margens.

Louisa chegava à escola com a mochila laranja-escuro pendurada em um dos ombros. Protegia os olhos azuis como o mar com óculos de sol em formato de coração de lentes de um vermelho muito intenso. Os cabelos loiros estavam soltos revoando ao vento. 

Ou estariam, caso houvesse algum vento. 

O sol escaldante fervia-lhe a cabeça e até mesmo o tecido fino de sua camisa social de mangas curtas com botões de flor era demais, fritando sem pena a pele. Louisa ainda não sabia como não tinha a pele grossa e queimada de sol como a maioria ali; sua pele era muito branca e sensível, mas bastante resistente. Era pequena, qualquer um com mais de dez anos poderia facilmente ser mais alto que ela. 

Ela arrastava seus sapatos ligeiramente encardidos, forçando-se a ir para a escola ao invés de passar o dia na sorveteria da mãe, tomando Milk shake de cereja e deduzindo quem Samira ia “pegar para Cristo” naquele dia. 

Samira era a típica beata solteirona que tinha como hobby encher a paciência de todos na cidadezinha quando não estava sussurrando passagens bíblicas pelos cantos. Tinha os cabelos muito escuros escorridos dos lados do rosto encovado. Podiam ver que ela ainda era jovem por baixo daquele aspecto de louca varrida cristã. Samira não era velha para ser taxada de caduca, devia ter a mesma idade da mãe de Louisa – algo na casa dos trinta e cinco anos. Cuidava de seu filho Genesis e de seu sobrinho Aiden, filho de sua falecida irmã, e Aiden estudava na mesma classe de Louisa. 

Louisa e Chris os chamavam de “sombra um do outro”, pois aonde Genesis ia, Aiden ia atrás e vice e versa. Os dois eram quase iguais com exceção da altura e tamanho: Genesis era mais alto e tinha um corpo maior. Os dois possuíam cabelos escuros, mas os de Gen eram pretíssimos enquanto os de Aiden eram castanho-escuro, olhos da mesma cor e ares de psicopatas matadores de animais, corpulentos e membros do time de lacrosse da escola. Louisa achava incrível e gentil a paciência que tinham com Samira, nunca levantando a voz para ela ou coisas do tipo quando precisavam tirá-la de algum estabelecimento onde ela vez ou outra causava algum tumulto. E lá estavam eles, sentados no banco em frente à escola, encarando o nada com expressões de puro cansaço. 

A escola não era grande, pois não tinha tantos alunos: era um edifício de apenas dois andares e cerca de dez salas, cinco em cada andar e um campo enorme atrás dela, com arquibancadas em dois lados dele. Ali praticavam de tudo, desde vôlei e futebol até lacrosse; embora apenas meia dúzia de pessoas jogasse qualquer coisa naquele sol escaldante.

Louisa sentou no gramado em frente à escola, colocando sua mochila ao lado no chão. Henrik não iria à escola naquele dia por conta de insolação após ter ficado um dia inteiro fritando no sol com os poucos que arriscavam praticar algo naquele calor. Lá longe, no final da rua da escola, Louisa via Chris chegando, andando daquele jeito preguiçoso e desleixado de sempre. Vê-lo sempre fazia seu coração disparar e com isso ela sabia que gostava dele, mesmo que sua mãe dissesse que ainda era cedo para ela se prender a alguém. 

Chris trazia a mochila jogada nas costas despreocupadamente. Vestia uma camisa parecida com a dela, com a diferença de que a dele era preta e a de Louisa, roxa escura. Porém ambas tinham um cacto bordado no bolso pequeno no peito. Chris adorava cactos e Louisa se perguntava o que eles tinham para atrair tanto gosto. Ele parou na frente dela, fazendo uma deliciosa sombra por alguns instantes antes de se sentar ao lado de Louisa. Ele se inclinou e a beijou delicadamente, sorrindo. 

— Olá, Lou. — Ele a cumprimentou com sua voz macia e jovem. 

— Oi, Chris. 

Louisa tinha a voz fina e infantil e não gostava nada dela. Queria ter a voz mais grave e manhosa, mas o máximo que conseguia era algo que ela achava parecer com o guinchar de um rato. Chris dizia que a voz dela era fofa e não tinha nada de feia, mas Louisa era cabeça dura. Ele falava que Lou era uma menina e tinha que ter voz de menina ao invés de desejar ter uma voz grossa. Os cabelos azuis e lisos dele estavam arrumados em um penteado como o de Elvis Presley, que ele tanto amava. 

— Você fez esse cabelo de novo... — Comentou Louisa, rindo. 

— Claro. Eu gosto dele assim, me dá um ar mais sério.

— Não dá, não. 

Louisa sorria, fazendo os óculos em formato de coração levantarem um pouco. 

— Ah, dá sim e você ama. Sei que você acha sexy meu topete azul de Elvis. 

— Você nem faz ideia do quanto é sexy, só de olhar para essa onda aí cheia de gel me dá uma vontade louca de fazer sabe o que? 

— Tá ficando boa a coisa, hein. O quê, docinho? — Perguntou Chris, tocando o rosto dela com a ponta do nariz, absorvendo o cheiro de Milk shake de cereja dela. 

— Me dá vontade de... 

— De? 

— De jogar um copo d’água na sua cabeça para desmanchar isso! 

Louisa curvou-se enquanto ria alto. Chris inclinou a cabeça e ergueu uma sobrancelha para ela, tentando não sorrir. Embrenhou os dedos nos cabelos e os bagunçou, deixando os fios azuis como os olhos de Louisa espetados para todos os lados. 

— Melhorou, Lou? 

— Não estava ruim, mas esse cabelo despenteado combina melhor com você. Sabe, eu estava pensando em colocar um piercing no centro do lábio. 

— Seus pais vão amar isso, vão até querer colocar igual. — Disse ele.

— Era brincadeira, bobão. 

Louisa deslizou a ponta do dedo indicador da testa dele até a ponta do nariz. Ela abriu a boca para falar quando o sinal do início das aulas os interrompeu.

Chris levantou da grama e estendeu a mão para ela, que aceitou. Andaram em direção à entrada felizes por finalmente saírem do sol. 

— O Henrik melhorou? — Questionou Chris.

— Um pouco. Ele se queimou bastante com o Sol. 

— Esse sol ainda irá nos matar um dia.

— Quanto otimismo, Senhor Chris. 

— É o que eu tenho de melhor, docinho. 

Chris deixou Louisa em frente à sala de aula dela, beijando os nós de seus dedos e se afastando pelo corredor. Louisa observava-o pelas costas andando para sua classe como se nada pudesse atingi-lo. Ela adorava aquela confiança toda que Chris tinha, pois às vezes Louisa precisava senti-la para não acabar enlouquecendo com a sua própria insegurança. 

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