Capítulo Dois

Nova Iorque

  Com os portões abertos para o primeiro horário de visitação, os calouros foram engolidos pela atenção de todos os estudantes, por todo o campus e nos corredores, nas janelas dos andares mais altos e nas pequenas praças. Todos estavam interessados na nova remessa de escravos guiados pela Senhorita Clarke. Era como um divertimento pessoal para eles ver o desconforto na cara dos jovens.

  Após alguns minutos de visitação e uma longa palestra sobre os fundadores da Grove Hill e sua grande façanha na Wall Street, Alice sentiu a doce brisa em seu rosto após tantos minutos tediosos e sufocantes.

  O contato com o vento gélido lhe causou uma sensação de prazer seguida de uma leve tontura, por um minuto ela pode ouvir as batidas de seu coração ecoarem por sua mente e logo em seguida o ardor nos olhos. Aos poucos a tontura tomou conta e ficar de pé se tornou uma tarefa muito difícil. 

- Você está bem? - Nathalie a segurou prendendo os cabelos de Alice atrás da nuca. - Parece que vai vomitar.

- Não exagere, eu estou bem. - A dor na cabeça se espalhou fazendo Alice fechar os olhos com força. Com respiradas mais pesadas ela focou em se manter em ótimo estado, mas a essa altura todos do grupo estão parados com seus olhares sobre si.

  Abigail terminou sua explicação esperando as perguntas dos alunos até notar o pequeno grupo focado numa das calouras. Com uma leve exaltação em seus nervos, ela se aproximou do grupo tornando as duas jovens o ponto focal do tour.

- Algum problema? 

- A Alice está se sentindo mal. - Nathalie se prontificou ajudando a amiga a se sentar num dos bancos disponíveis. Abigail encarava as duas procurando qualquer sinal de atuação, mas a garota parecia tão pálida que poderia desmaiar a qualquer segundo.

- Está sentindo alguma coisa Srta. Smith? - A orientadora a examinou tocando em sua testa e bochechas tentando medir a temperatura.

- Estou com tontura e dor de cabeça. Nada demais, posso continuar o tour. 

  Na infância Alice tinha um dom especial, não importava o momento ou a circunstância, sempre que precisasse se passar por doente ela conseguia e com certo brilhantismo. Mas naquele momento ela não acreditava que tinha forças para realizar o efeito reverso, a expressão da orientadora era uma resposta clara de que ela não iria prosseguir com o tour.

- O Sr. Saetre vai acompanhar você a enfermaria e assim que estiver melhor pode ir para casa. - O homem de antes surgiu na multidão atraindo a atenção de todos, naquele momento dois pensamentos circulavam na cabeça de Alice.

 Por que precisava ser aquele cara?

 Por que de tantos carmas a sua primeira conversa havia de ser com ela naquele estado lamentável?

 - Gabriel, leve-a para a enfermaria e garanta que seja bem atendida. Já a Srta. Green pode prosseguir conosco.

- Por que não posso ir com ela? - Nathalie questionou sobre o ocorrido, não por preocupação com Alice e mais como forma de chamar atenção do garoto bonito.

- Creio que é a sua primeira vez aqui. Gabriel já é meu aluno e conhece muito bem este lugar. Quero garantir que pelo menos uma de vocês acompanhe a instrução. No caso de isso ser um plano para escapar da orientação.

  Nathalie seguiu o grupo contrariada deixando Alice e Gabriel sozinhos. A tensão cobria o corpo de Alice, ela nunca foi boa em iniciar uma conversa com estranhos e quando o fazia sempre acabava parecendo maluca.

  Para Gabriel aquele momento era um impecilho, não podia estar perto dela, pelo menos não agora. Por isso naquele momento ele abandonou toda delicadeza que ainda o habitava e usou sua versão mais dura. Ela precisava manter distância e ele iria garantir isso.

- Sabe andar? - Ele perguntou com uma expressão de tédio atraindo uma expressão não amigável da garota. - Não espera que eu te carregue não é. Isso não faz parte do meu trabalho.

- É sempre tão babaca assim? - Sua expressão agora continha traços de divertimento. Alice parecia não compreender por que tratá-la com tanta hostilidade, os vários momentos em que foi pega o observando lhe vem à mente e ela enrubesce ao pensar que tais atos possam tê-lo deixado ofendido.

- Só às terças. Vamos logo.

  O caminho para a enfermaria foi silencioso, Gabriel queria deixá-la sob cuidados médicos o mais rápido possível. Isso pouparia seu tempo e ele poderia focar em seu verdadeiro objetivo naquele lugar.

  Ao atravessarem a porta branca com um símbolo vermelho, o cheiro de naftalina, álcool e café expresso inebriou o local. No balcão bem diante da entrada, uma mulher de pelo menos vinte e poucos anos com cabelos curtos e roupas largas aguardava. Uma caixa de rosquinhas doces repousava suavemente sobre o balcão ao lado de um copo fumegante de café.

  Gabriel se aproximou e pegou uma rosquinha do balcão. A mulher o encarou com um olhar assustador.

- Sabe a quantidade de açúcar que tem nessas coisas não é. Isso vai acabar te matando.

- O que posso fazer por você, Gabriel? - Ela colocou os óculos redondos e sorriu sarcástica. Seu corpinho gorducho se remexeu na cadeira conforme ela o encarava com despeito, a conclusão de Alice era óbvia, a enfermeira claramente saiu de algum seriado de TV.

- A moça ali não tá se sentindo bem, poderia fazer sua função. 

  Aproveitando a distração de ambos, Alice aproveitou para se esgueirar para fora da enfermaria, seu plano poderia ter ido bem se não fosse o corpo do homem atrás de si. O impacto a deixou surpresa por tempo suficiente para que quase fosse de encontro ao chão, para sua sorte seu braço foi segurado mantendo ela firme antes que tal desastre acontecesse.

- Cuidado garota, não vai querer arrumar outro motivo para ser atendida não é. - A voz calorosa de Sebastian preencheu seus ouvidos com seu bom humor nativo e Alice agradeceu por surgir alguém com a devida educação.

  Antes que pudesse agradecer, uma queimação se iniciou em seu braço onde a mão do homem repousava. Como se entrasse em contato com carvão em brasa sua pele se contorceu fazendo seus nervos explodirem com reações de dor. 

  Sebastian rapidamente se afastou conforme ela caiu de joelhos segurando o braço machucado, a marca perfeita de seus dedos estava envolta no pulso fino como se houvesse sido marcada a ferro. A reação de espanto entre os dois era notável, mas ao contrário de Alice ele parecia saber exatamente o que havia acontecido.

- Você está bem? - Gabriel surgiu ao seu lado com um olhar de preocupação.

- Ele me queimou. - A confusão em seu rosto era palpável.

  Enquanto todos focavam em Alice, Sebastian escondeu a palma da mão ferida pelo mesmo fogo que queimou a pele da garota. Seu segredo poderia permanecer salvo contanto que ela permanecesse calma. Ele já esperava por isso no momento que encostou nela. 

  Eram as leis do seu mundo, quando luz e trevas convergiam pela primeira vez num espaço desencadeavam uma reação, devido a sua natureza de chamas ambos acabaram queimados. Esse tipo de atenção indesejada poderia lhe causar mais problemas.

- Não machuquei você.  - Ele se defendeu, ostentando total domínio da situação. Alice o encarou em total conflito sem saber como todos naquela sala não estavam vendo o que ela via. - Não sei do que está falando.

  A enfermeira saiu de trás do balcão e veio examinar a garota que permaneceu de joelhos no chão. Com seu toque gentil, ela ajudou Alice a se erguer e analisou o braço em busca de qualquer sinal de agressão, mas a pele alva permanecia intacta como se jamais houvesse sido tocada.

- Eu não sou louca. Não estão vendo a queimadura no meu braço? - Alice lançou um olhar de súplica para Gabriel mas o mesmo se quer a notou por estar focado no homem que atravessou as portas os deixando sozinhos.

 Havia um segredo naquela sala e apenas os dois homens sabiam do que se tratava, mas para o bem da garota Gabriel considerou deixá-la no escuro. Algumas coisas não devem ser reveladas, qualquer chance de vida normal que ela pudesse ter era bem vinda. Pois aquele tipo de exposição marcaria a vida de uma pessoa para sempre.

- Não há nada no seu braço querida. - A enfermeira a levou para uma das macas dando o espaço que Gabriel precisava para seguir o estranho.

- Acha que estou louca? - Os olhos castanhos estavam atormentados pela incerteza, a situação toda era assustadora de maneiras inexplicáveis. Nada fazia sentido e para Alice tudo era uma grande dor de cabeça sem nexo ou foco.

- Se alimentou recentemente? Teve algum tipo de tontura ou alucinação?

- Não. - Ela apenas prosseguiu com seu trabalho, checando cada ponto a procura de um diagnóstico convincente. Apesar de não poder usar os recursos da universidade sem propósito, Raíssa aprendeu a usar seu treinamento com pessoas mentalmente sensíveis e o fato de não haver nenhuma ferida era preocupante, mas a ilusão de um curativo poderia fazê-la se sentir melhor.

 Recebendo os remédios necessários para as dores de cabeça Alice deixou a enfermaria seguindo pelo extenso corredor do prédio. Notando os mesmos quase vazios, ela se assustou ao perceber estar completamente perdida dentro do campus.

  Pegando o celular ela enviou um torpedo a Nathalie alertando sobre seu estado atual e seu retorno para casa. Com determinação ela avançou pelos corredores arcaicos admirando a estrutura do prédio e todo seu peso histórico. Podia ver os séculos passeando pela sua cabeça ao ver os arabescos ou alguma estátua antiga num dos corredores.

  Fascinada com os adornos do teto que se assemelhavam a galhos flutuando sobre sua cabeça, ela sequer percebeu sua chegada ao estacionamento. Os pingos de chuva a encontraram começando a cair sobre si de forma suave prosseguindo para uma tempestade.

  Apesar de a temperatura não aconselhar um momento de chuva, ela não se importou. A sensação das gotas de chuva sobre sua pele era libertadora, como planar no ar com uma aura leve ao seu redor. Ela seguiu pelo estacionamento apreciando as gotas de água até o velho comichão na nuca retornar, desta vez mais intenso que antes.

  Alice observou todo o estacionamento em busca do que poderia lhe causar esse pressentimento ruim, não havia uma alma viva em parte alguma, apesar da chuva dificultar sua visão era quase impossível deixar de sentir que estava sendo seguida.

 Se virando para prosseguir sua caminhada ela pode ver a silhueta no final do corredor de carros. A figura encapuzada ostentava uma grossa capa vermelha que cobria sua figura por completo, o formato humanóide era distorcido pelas garras longas e as marcas no rosto. 

  Se algum dia aquilo tivesse sido um humano ela não saberia dizer, mas as trevas que emanavam de sua alma eram pesadas o suficiente para fazê-la fugir.

  Antes que a criatura saltasse sobre si ela correu entre os carros com todas as forças buscando por qualquer esconderijo que pudesse encontrar. Em um ato de desespero Alice se enfiou debaixo de uma picape e deixou seu corpo se unir ao concreto na esperança de que ele não a encontrasse.

  A criatura tinha correntes em seus braços e pernas, os grilhões sacudiam conforme se movimentava formando um barulho ensurdecedor. Ele se arrastava pelo estacionamento farejando sua vítima mas a chuva mascarava o cheiro da garota o unindo ao odor da cidade.

  Quase sem respirar Alice viu o monstro parar diante de seu carro por quase um minuto inteiro, ela podia ver as feridas sobre seus pés iluminadas por chamas debaixo da pele. O odor pungente do cadáver emanava da criatura trazendo a bile a sua garganta. 

  Pode dar um suspiro quando o mesmo se afastou descartando seu esconderijo. Ela esperou alguns minutos para ter certeza de que poderia sair, mas antes que pudesse pôr os pés para fora foi puxada debaixo do carro com brutalidade.

  Alice cerrava as unhas contra o asfalto tentando se segurar em qualquer lugar conforme era arrastada aos berros pela tempestade, seus gritos eram ofuscados pelos trovões persistentes que a mantinham silenciada para o resto do mundo.

  Entre suas preces de desespero os faróis de um carro foram vistos vindo em sua direção. Sentindo seu fim se aproximar Alice fechou seus olhos e implorou a todos os deuses que ela acreditava que fosse uma morte rápida. Suas orações foram ouvidas quando os freios do carro foram acionados e seu corpo tombou de uma vez contra o chão sendo brutalmente largada na estrada.

  Apesar de levemente cegada pelo brilho dos faróis, ela pode ver a silhueta de uma jovem descendo do carro. A pele morena se iluminava sobre a luz exibindo os cachos grossos que ostentavam uma delicada mecha branca. 

- Você está bem? - Ela perguntou ao vê-la no chão e seus olhos se arregalaram ao notar as marcas de garra na perna da garota. - Vamos eu vou te levar para um hospital.

- O que era aquilo? - A morena a observou sem entender suas palavras e Alice perguntou mais uma vez. - A coisa com garras. O que era aquilo?

- Acho que se você viu aquilo um hospital não vai ser muito útil. - Exibindo as presas ela mordeu a carne bronzeada levando o braço de encontro aos lábios rosados de Alice, o sangue prateado deslizou pela boca dela a fazendo cuspir o líquido viscoso como se sua boca queimasse com ácido. - Tinha que ser uma nefilim não é. Não suportam uma gota de sangue na boca.

- Do que está falando?

- Regra número um caloura. Nunca saia numa tempestade, os rastreadores trazem a chuva quando estão caçando, os demônios usam os trovões para ofuscar os gritos das vítimas e se alimentam delas sem problemas. 

  Sem qualquer esforço ela se ergueu levando Alice junto. Ao colocar a garota no carro e seguir para o banco do motorista ela a encontrou com uma ar desesperado, naquele momento Lucinda soube que aquela garota seria um belo problema.

- O que está fazendo?

- Primeiro estou salvando sua vida. Segundo, me chamo Lucinda Walker, mas pode me chamar Lucy e por último fique calada e vai ficar tudo bem. Os amigos daquele rastreador podem estar por perto. - Ao pegar o volante Alice acabou tomando a atitude mais imprudente em nome do medo. Lucinda a jogou contra o banco do carona dando um jeito de apagá-la. Ela não causaria problemas se estivesse dormindo e isto já era muita coisa.- Novatos.

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