06

Acordo incomodada. A raposa me observa sentada em minha barriga e me cutuca com a pata fofa entre os seios. Acorde! Parece dizer. Ela pisca os olhinhos marrons fixos aos meus e inclina levemente a cabecinha para o lado. Pisco para ela também, desnorteada com o despertar e ainda me sinto cansada, como se não tivesse dormido uma hora sequer essa noite. Talvez, não tenha dormido. Cortesia do pesadelo horrível que venho tendo há algumas noites.

Jogo as cobertas de lado e coço entre as orelhas de Pandora, que acata o carinho abanando a ponta do rabo foto. Meus pés tocam o chão e mesmo por cima do tapete felpudo o frio irradia pelos dedos. Abro uma pequena fresta da cortina e está escuro lá fora. A floresta dorme profundamente e as nuvens pesadas ameaçam uma tempestade a qualquer minuto. Faço uma careta para o sol que se recusa a esquentar a terra e pela ideia de que preciso sair para trabalhar. Gosto do que faço, mas ninguém merece ter que sair da cama com esse tempo instável e gélido.

Frio. Está frio, mas estamos no outono para a temperatura cair desse tanto. Olho as horas no relógio da mesinha de cabeceira e os ponteiros fazem seu tic-tac monótono marcando 5:30. Cedo demais. Por isso o sol não nascera.

Pondero comigo mesma se voltar para a cama é uma boa opção e logo decido que, na verdade, é péssima. Se voltar a dormir implica em mais pesadelos que arrepiam minha espinha e suam minha pele até molhar os lençóis, então não, muito obrigada. Mesmo estando nos últimos minutos da madrugada e uma enorme parte da cidade ainda dormir, visto uma calça legging preta, tênis de corrida e um top preto. Jogo um moletom azul pastel curto por cima – apenas para manter o calor enquanto preciso dele – e prendo os cabelos para o alto com um elástico.

Evito o espelho ao realizar as necessidades no banheiro, pois, sei o que encontrarei. Olheiras arroxeadas sob as pálpebras e olhos exaustos cheios de ansiedade e em estado de recuperação pós sonho ruim e noite horrível. Meus pesadelos são incomuns. As pessoas geralmente despertam deles, mesmo que na pior fase do sonho, mas eu não. Meu subconsciente me mantém presa e refém das cenas catastróficas que se repetem.

Sangue. Dor. Morte. Escuridão. Uma gigantesca repetição da guerra que causei, da morte dos meus pais e de centenas de feéricos. Do ódio e da fúria que se instaurou no reino depois disso e dos duzentos anos encarcerada nas profundezas do palácio até que a rainha decidisse ser o momento da punição. E então vem a parte do penhasco, do oceano, da morte que não veio para mim quando afundei. Eu deveria ter morrido naquele dia. Eu queria ter morrido naquele dia.

Meu olhar ganha foco e volto a escovar os dentes. Enxaguo a boca e por fim deixo o quarto com Pandora nos calcanhares. Permito esmaecer os pensamentos mórbidos a caminho da lavanderia no final do corredor, entro e agarro a coleira da raposa saltitante no chão. Fecho a porta do cômodo e a maçaneta da sala do Victor reluz a direita. Sinto o coração se apertar no peito e engulo em seco a falta que ele faz nessa casa e nessa cidade.

 Ele era conhecido e amado por muitos, seu funeral estava cheio de médicos e pessoas importantes de Nova Orleans e nenhuma delas jamais soube sobre mim. Ele não permitiu que fosse assim, porque sabia como todos reagiriam sobre a filha adotiva estranha e talvez, ele fosse gentil e demasiado bom para me expor a tal coisa. Fui ao funeral, porém somente depois que todos foram embora e pude ficar sozinha com um corpo gelado e arrumado, pronto para ser incinerado e virar cinzas.

Eu nunca derramei uma lágrima. E isso é assustador.

Pandora arranha minha panturrilha, tirando-me do devaneio triste e sorrio para ela.

— Acalme-se, pequena. – Agacho para colocá-la na coleira e sou lambida na bochecha. — Prontas? – Pergunto como se ela fosse responder e obtenho um abanar de rabo alegre.

Saio para o ar livre e frio da floresta. A grama parece úmida e as plantas ao redor da fundação da casa tem gotículas de orvalho nas folhas e pétalas das flores. O cheiro de terra molhada, chuva e frescor dos pinheiros me abraça e conforta a mente perturbada dessa manhã.

Começo a correr pela margem da floresta onde o terreno ainda é plano e as árvores espaçadas. A raposa me acompanha, veloz como o vento batendo contra o rosto e invadindo os pulmões com o aroma floral e amadeirado. A visibilidade ruim faz com que eu tropece nas raízes altas e nas pedras grandes demais. As nuvens pesam, ameaçadoras acima da cabeça e trovões ressoam longínquos, avisando a todos da chuva em breve.

Ouço as batidas do coração, aceleradas a cada passo à frente, o sangue correndo pelas veias latejam nos ouvidos e sinto a pulsação na garganta. Os músculos da perna reclamam com o impacto, a força excessiva e imploram para que eu pare de usá-los. Meu corpo reclama por completo e luto contra cada instinto de parar. Preciso disso. Preciso do vento agressivo, das pernas doloridas, do pulmão a ponto de explodir. Preciso de cada uma dessas sensações para apagar as que me corroem. Sobrepor a culpa, o medo e a ansiedade que me devoram. Concentro todos esses sentimentos na respiração e inspiro e expiro, deixando sair tudo.

Só paro quando as veias pulsam na garganta, quando o sangue correndo ecoa em meus ouvidos, quando meus joelhos tremem e quase cedem. Pandora também para e sua língua está de fora. Tento controlar a respiração, inspirar e expirar, deter a dor do esforço e da falta de ar. Arfo com as mãos nas coxas e observo a raposa coçar uma das orelhas e sacudir a cabeça. Ela adora sair de casa, apesar de amar o conforto e o luxo do lar. É quando o instinto animal dela se liberta e aprendi dar esse espaço a ela. Todos devemos libertar a fera interior de vez em quando. Isso impede desastres mais do que podemos imaginar.

Quando volto para casa já são 6:30 da manhã. Quando saio do banho e desço pronta para o café são 7 horas. Alimento a raposa e me sirvo de uma torrada com geleia de framboesa e café puro. Reúno o restante das coisas entre chaves, celular e uma bolsa limpa e diferente da de ontem, já que essa continua suja com gotas secas do sangue de Noah. Merda, Noah. Lembro-me do que prometi a ele e reúno em uma caixa de papelão algumas ervas e outros itens para repor na sala dos fundos da floricultura, incluindo o necessário para o curativo do mortal. Em seguida, me despeço de Pandora, que se enrolou nas almofadas no sofá e tranco a porta da frente.

A chuva começa a cair na metade do caminho e uma neblina espessa toma conta da estrada, escondendo o caminho metros á frente e tornando o clima sombrio da floresta que cerca o caminho todo até as primeiras ruas civilizadas. Sigo para o centro e o trânsito está um caos com pessoas correndo sob seus guarda-chuvas, apressadas para sair do frio e da água gélida para dentro de um ambiente acalorado e seco. Como de costume, Nova Orleans recebe uma onda de turistas no outono para comemorar o halloween e eles abarrotam o quartel francês, tornando ainda mais eufórica a cidade do Jazz conforme o dia das bruxas se aproxima.

Estaciono às pressas e procuro as chaves da loja na bolsa, um pouco atrapalhada com a caixa em um dos braços. Mesmo acordando bem mais cedo do que precisava e saindo de casa a tempo, consegui me atrasar. Maldita chuva! Praguejo girando a chave na fechadura e empurro a porta com o ombro. Assim que entro, a fecho e viro a placa de aberto.

Encaro o interior parcialmente iluminado pela luz do dia e ascendo as luzes para complementar a iluminação. Suspiro ao notar um rastro de gotas escarlates ressecadas no chão, seguindo da entrada até a cortina de miçangas. Sei o que tem além dela. Sangue e uma bagunça que deixei ontem depois de salvar Noah. Respiro fundo para tomar coragem e começar os afazeres.

Limpar, organizar e limpar de novo. Uma hora depois todo sangue some e tenho panos sujos na lata de lixo da rua junto a caules de flores cortados, restos de papeis de presentes e fitas usadas. Também reponho o estoque na cristaleira e arrumo os papéis bagunçados da mesa. Ajeito a tiara trançada com meu próprio cabelo e os fios azuis que caem soltos do topo da cabeça e retoco o batom no espelho acima do aparador com a tequila – por sorte, não há sangue em mim dessa vez.

O sino da entrada toca e preparo um sorriso saindo da sala dos fundos.

O dia é produtivo e as vendas melhores ainda. Vendo rosas, orquídeas e peônias, alguns buquês com um misto de outras flores, ursinhos de pelúcia e laços gigantes em cestas de doces. Ligo para refazer pedidos de reposição entre um cliente e outro, confiro o relatório da semana de vendas e despesas antes de entrega-lo a Dáhlia.

Subo a pequena e estreita escada circular ao lado da minha sala pessoal e a porta vermelha com um olho mágico se ergue adiante. Empurro o relatório por debaixo dela. Não tenho permissão para incomodar Dáhlia durante os sábados, por isso sequer bato para anunciar que estou ali. Espero que ela tenha ficado dentro do apartamento e não saído para ver o desastre que deixei noite passada.

Quando desço de novo, um jovem menino entra acompanhado de uma criancinha loira e graciosa. Ela parece feliz e animada e ele tedioso e indiferente, talvez, até mesmo irritado por estar ali com a garotinha.

— Sejam bem-vindos! – Sorrio nos últimos degraus e vou até eles. O garoto me olha por um instante o suficiente para se assemelhar a um julgamento interno e depois olha ao redor, torcendo o nariz para a floricultura. — Desejam ajuda?

— Você tem, eu não sei... – Ele gesticula para as flores. — Quero qualquer uma delas. Tanto faz. – Completa dando de ombros e checando o celular vibrante com mensagens.

— Não, Ryan! – A criança solta a mão dele e abraça a girafa de pelúcia contra o peito. Um pequeno ser dentro de um vestido surrado e meias calças rasgadas. O cabelo loiro fino e caindo em cachos pelos ombros. — Não pode ser qualquer uma delas! Tem que ser uma especial. É para mamãe! – Ela pisca os olhinhos pequenos e azuis para mim e se aproxima. — O papai deixou a mamãe triste e eu e meu irmãozinho queremos deixar ela feliz.

— Chloe, calada. – O jovem reprende a irmã e revira os olhos enraivecidos. Depois, se volta para mim. — Ela não sabe o que fala.

Seguro seu olhar por um segundo franzindo a testa e tentando entender a bagunça que são esses dois. A vida deles não é do meu interesse, mas, por algum motivo, meu coração se aperta com desconfiança e pena da pequenina Chloe. Os pais provavelmente brigaram, ou pior, além de serem negligentes em relação aos filhos pelo estado das roupas mal cuidadas e ouso dizer da má educação; o irmão dela é um adolescente dominado pelos hormônios da fúria e egocentrismo. Sorrio para ela.

— Acho que eu tenho algo para você, pequena. – Digo e vou até um enfeite pronto com um botão de rosa e um ursinho branco com olhos negros envolvendo a flor. Mostro a eles e agacho perto de Chloe, que sorri de orelha a orelha. — O que acha?

— É lindo! – A voz fina e infantil parecendo uma melodia doce.

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