05

Jogo as chaves sobre o aparador assim que entro em casa.

É estranho como qualquer lugar pode vir a ser o seu lar dependendo da situação em que nos encontramos. Seis anos atrás eu despenquei do reino das fadas e, supostamente, deveria ter morrido afogada. Por alguma razão desconhecida, eu sobrevivi e um homem de quase setenta anos, médico e gentil me encontrou flutuando dentro do lado em seu quintal. Ele decidiu que não me deixaria morrer ali. Os meses voaram desde então, imperceptíveis, anos vivendo e confiando em um mortal que, de certa forma, me tratava como um membro da família que não possuía. Sem esposa, sem filhos, sem parentes vivos para lhe fazer companhia, apenas a mim, a jovem estranha com cicatrizes nas costas e cabelo azul que nunca respondeu nenhuma das perguntas pessoais vindas dele.

Encaro o quadro pregado na parede de pedras rústicas acima da lareira. A moldura de madeira marrom escura e grossa entorno da foto de um senhor sorridente de feições serenas e alegres. Cabelos brancos e ralos, um sorriso acolhedor e olhos azuis cristalinos. Caminho até lá, pego as últimas toras de lenha empilhada e alimento o interior com chamuscados. Precisaria ser limpa antes de usar outra vez, mas mesmo assim, acendo o fogo com o riscar de um fósforo. Guardo a caixinha na prateleira da própria e as chamas sobem esquentando minhas pernas e logo, o resto do ambiente. Leio as palavras escritas na moldura do quadro.

Doutor Victor Hale, neurologista premiado. 1950-2020.

Sinto falta dele e das histórias que me contava nas noites frias de inverno, enquanto tomávamos chocolate quente nas cadeiras perto do lago onde me encontrou. Sinto falta das nossas caminhadas pela floresta, das aulas de piano e de como me incentivou a frequentar aulas de dança como forma de distração e controle das crises de ansiedade. Nunca imaginei que tinha tal transtorno psicológico e como ele piorou com a minha “queda” do reino das fadas. Aparentemente, qualquer coisa que distraia os pensamentos obsessivos é de grande ajuda, focar no presente para evitar o futuro e o passado. Ótima técnica, pena que nem sempre é o bastante.

Victor me ensinou tudo, eu era um bebê que precisava reaprender a falar uma língua que um dia aprendera – porém, fiz questão de esquecer cada palavra que o mortal que jurou seu amor por mim me ensinou – a me vestir, como me portar e o que eu deveria temer nesse novo mundo. Acho que no fundo, ele sabia que eu era diferente das garotas normais de Nova Orleans e, por isso, ficara comigo. Quase como uma descoberta, uma experiência particular dele. Obviamente, não me importei, porque não havia nada a perder. Então, que diferença fazia? Se o preço para minha segurança e adaptação seria ser observada, às vezes e receber a atenção e o carinho de um homem sem filhos e inteligente eu o pagaria.

O doutor Hale me deu um sobrenome quando precisei de documentos, ensinou a sonhar e a planejar, a ser cautelosa no quesito confiar em estranhos. Ensinou tudo o que sei e sou extremamente grata por isso. Ainda mais quando herdei a casa enorme e chique em que moro agora e o restando da sua conta bancária bem gorda. Dinheiro é uma questão tola para as fadas - coisas materiais pouco importam para os feéricos – mas aqui, para os humanos, descobri que algumas notas de papel e zeros a mais nas contas bancárias são bem relevantes se quero continuar com os meus luxos.

Um regougar agudo e curto chama minha atenção às costas e me viro para encontrar uma bolinha de pelos laranja-amarronzado espreguiçando entre as almofadas do sofá. Pandora se esticada e arqueia as costas, empinando o focinho preto e comprido para mim, as orelhas de pontinhas levemente escuras se movem também conforme se senta sobre as patinhas traseiras negras.

— Aí está você! – Saldo a pequena raposa e ela me encara com os olhos castanhos. Acaricio o pelo branco do peito e um ronronar ressoa dentro das costelas. — Queria poder dormir assim o dia todo!

Pandora agita o rabo grosso e peludo alegre com o carinho recebido e pula do sofá para o tapete de pelos brancos e macios, pronta para assumir seu papel de minha sombra pela casa toda.

Deixo os saltos no pé da escada e subo para o quarto amplo. Uma parede de janelas do teto ao chão com vista para o lago. A paisagem é linda, misteriosa e um tanto sombria levando em consideração os pinheiros altos e a mata fechada além do lago da propriedade. As longas cortinas acinzentadas de linho pendem até o piso de madeira aquecido pela calefação. A floresta sempre me acalma e Victor permitiu que eu ficasse com esse quarto, mesmo sendo o dele e ele precisando mudar todos os seus móveis para o cômodo ao lado. Um pai para mim.

Desço o zíper da saia justa e ela escorrega pelas pernas até o tapete de pelos também cinza. Todo o quarto é uma mistura de cinza-prateado, branco e azul pastel – tons que acalmam para dormir. Tiro a blusa a caminho do banheiro e ela cai perto da porta, logo depois o sutiã apertado. A sensação de me livrar dele é maravilhosa, mas nada comparada com a dos espartilhos e corsets de Illinea.

Olho por cima dos ombros no espelho. As finas linhas cor da pele estão rosadas e ainda latejam como no centro da cidade. Elas vão desde o meio das omoplatas até o início da lombar, duas linhas delicadas e dolorosas. Inflamadas. Faço cara feia para meu reflexo, para a dor e para o sangue seco nas mãos, braços e rosto. As gotas vermelhas na bochecha eu não percebera antes, as do meu cabelo tampouco. Coloco as mechas para trás revelando as orelhas pontudinhas, um dos traços feéricos que me resta. Pairo o olhar na joia arroxeada pendendo entre as clavículas e respiro fundo, sentindo a culpa se remoer no peito e a falta que meus pais – minha mãe – me fazem.

Dou de ombros e ligo a água quente da banheira, perfumo as bolhas com lavanda e arruda para limpar as energias ruins do dia e para relaxar os músculos tensos das últimas horas exaustivas. Levei pouco tempo para me acostumar com todo aquele luxo que Victor me proporcionara e sequer precisaria trabalhar. Ele não me deixava fazer outra coisa que não fosse relacionada ao meu aprendizado e adaptação ali, então, só pude trabalhar depois que ele morreu. Como se eu precisasse de trabalho! Contudo, ficar em casa por tanto tempo sozinha me faria mal e sair e ocupar a cabeça – mesmo que com alguns problemas dependendo do dia – seria a melhor opção. E ainda é. Dáhlia também me acolheu com facilidade.

Não é sempre que uma garota jovem e bela como você aparece com interesse em flores. Ela disse depois que terminamos a entrevista. Você é especial, Amara. Sinto que posso confiar em você e gosto disso, mesmo achando que tem menos idade do que está me dizendo. Ela estava errada quanto a isso. O principal de tudo é que detesto ser especial.

Afundo nas bolhas reconfortantes e permaneço submersa nelas por vinte minutos. Pandora se deitou no piso de mármore polido a minha espera e adormecera cinco minutos após notar que seria um banho longo. Ela resmunga quando saio da banheira respingando água e visto o roupão macio e branco, o piso gélido ao toque dos pés. Meu reflexo me encara pelo espelho. O cabelo azul molhado e escorrendo até os quadris, olhos cansados e as bochechas coradas devido ao calor e ao vapor pairando no ar úmido. A água lavou o sangue da pele e me sinto renovada, porém preciso de uma bela noite de sono e talvez, uma taça de vinho antes. Enrolo uma toalha no cabelo, escovo os dentes e ando para o closet. Um pequeno cômodo retangular entre o banheiro e o quarto.

Procuro uma camiseta grande o suficiente para mim, porque sim, eu compro peças enormes e faço de pijama – de algum modo, são mais aconchegantes e melhores para dormir – e a visto, o comprimento batendo na metade das coxas. Escolho uma calcinha confortável e levemente sexy – não que eu vá usá-la para algo nessa noite, não vou – e recolho as roupas do chão, jogando-as no cesto de peças sujas.

Desço com Pandora nos calcanhares e sorrio para o jeito fofo com que ela pula os degraus da escada, desajeitada e graciosa ao mesmo tempo. Viro à direita da escada para um corredor com três portas, uma delas levando a adega pessoal da casa. Prateleiras de acrílico ocupam uma parede inteira do chão ao teto com centenas de garrafas de vinho, espumantes e outros alcoólicos preferidos de Victor, agora todos eles são meus para saborear quando quero. Escolho um tinto seco, uma taça e atravesso a sala de estar, o arco da sala de jantar e a porta dupla da cozinha.

Abro o vinho sentindo o aroma ácido da uva e sirvo meia taça. Pandora estoca em meus pés pendendo a cabeça para o lado. Ela move os olhinhos para o potinho de comida ao lado da ilha de balcões.

- Está bem! – Cedo mesmo sabendo que já a alimentei hoje e que raposas devem seguir uma dieta regrada por serem animais de estimação incomuns. A alimentei com uma bela porção de carne de coelho de manhã então, quando abro a geladeira, tiro de lá um potinho de frutas vermelhas e despejo no recipiente metálico e redondo dela. — Pronto. – Suspiro e Pandora ergue os olhos da tigela, insatisfeita pela falta de carne. Apoio as mãos na cintura. — Raposas também comem frutas!

Discutir com uma raposa é, de longe, racional. Agarro a taça e parto de volta a sala de estar, passando por ela em direção ao meu cômodo favorito da casa. Uma sala única e especialmente minha. Outra regalia do doutor Hale para a filha adotiva favorita. Pego a chave escondida atrás do quadro na parede e destranco a fechadura. Sei que moro sozinha e ninguém mais invadiria a privacidade que esse ambiente exige, mas, é o meu lugar. Tenho ciúmes dos meus bens materiais e talvez eu seja um tantinho possessiva com tudo que pertence a mim. Problemático, sei disso.

Deixo uma fresta aberta da porta atrás de mim e a mistura de aromas invade meu nariz. O ar cheira a papel envelhecido dos livros, incenso perfumados e cera queimada das velas. Apoio a taça em uma mesinha redonda de pedra marrom lisa e brilhante com pés arredondados de metal enegrecido. Acendo algumas das velas, depois um palito com essência de sálvia e me aconchego na poltrona na janela quadrada, cobrindo as pernas com um xale de cor creme. Pego o livro da mesinha – um dos thrillers sombrios que aprecio, um certo fetiche interessante na escrita incômoda e cruel da autora – e começo a leitura de onde parei, bebericando do vinho conforme páginas e mais páginas fluem diante dos olhos. Pandora se acomoda em meu colo e se enrola em uma bola de pelos quentes após terminar com as frutinhas.

Eu gosto da paz e da calmaria. Dos galhos balançando uns contra os outros pelo vento lá fora, do cheiro de terra, floresta e livros, do clima outonal recém chegado com a brisa fresca – quase gelada – da solidão. Demorei a aceitar que esse mundo, tão distinto de Illinea – seria o meu e hoje, é tão fácil quanto respirar. Estou em casa.

Noto que, em algum momento, meu olhar se perdeu lá fora, na floresta e na pequena parte do lago visível daquele lado da casa. As cicatrizes pulsam como que para me lembrar de que estão ali e algo chama minha atenção por entre os pinheiros. A sensação percorre meu corpo em forma de calafrio e mantenho a visão fixa, desejando ser apenas coisa da minha cabeça. Ela não está ali. Não pode estar!

Paro a taça no ar, em meio ao último gole da bebida. Duvessa, escondia e encoberta pelas sombras da noite, como grandes olhos violeta brilhando sob a luz da lua crescente. Ela olha para a janela, para além do vidro, para mim. O cristal cai dos meus dedos, estilhaçando-se aos pés da poltrona, desviando meu foco para os caquinhos, o estrondo despertando uma Pandora irritada e meu coração a mil, quase quebrando as costelas saltando para fora. Quando volto a olhar a floresta, ela sumiu. Sumiu porque nunca esteve ali. Frases do livro em minhas mãos trêmulas ecoam em minha mente.

“O medo e a culpa são irmãs”.

Estou alucinando, vendo pessoas onde elas não podem estar. Jamais estarão, porque estou em casa. Estou em casa. Segura. Então, por que caralhos ainda me sinto observada? Respiro fundo, abandono o livro e pego a raposa nos braços.

— Acho que misturar vinho com Shirley Jackson é uma má ideia. – Digo a Pandora que se aninha em mim. — Vamos dormir.

Decido limpar os cacos amanhã. Tranco a porta da sala como de costume e escondo a chave em seu lugar. Por desencardo de consciência, verifico a tranca da porta da frente e da porta dos fundos na cozinha. Devidamente trancadas. Subo para o quarto, livro-me da toalha na cabeça e escovo os fios compridos. Afundo nos lençóis com a raposa acomodada acima da minha cabeça, no travesseiro que ela reivindicou no dia em que a trouxe para cá. Sua respiração morna esbarra em minha testa e tê-la ali acalma os batimentos cardíacos do meu coração acelerado.

Sinto os cílios pesados de sono, mas, até que eu convença a mim mesma de que Duvessa está no reino das fadas e não assombrando meu quintal, leva horas e unindo o pensamento obsessivo e ansioso com a dor nas linhas onde as asas ficavam, torna praticamente impossível fechar os olhos por mais de três segundos.

“Nenhum organismo vivo pode existir por muito tempo com sanidade sob condições de realidade absoluta”. Shirley Jackson escreveu. Por seis anos ando longe de qualquer magia, evitando-a a todo custo. Criei uma realidade que é irreal. Uma falsa vida de mentiras, caminhando cegamente pelo mundo ao meu redor. O dia de hoje retorna à mente como um filme. Freya, a vampira, Noah... Magia demais. Minha realidade absoluta se quebrou e minha sanidade se foi com ela.

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