Sangramos Todos

Era começo de madrugada e se podia ouvir no coração do bosque o inconfundível som de terra sendo remexida na base da enxada. O responsável pelo trabalho era Jean, que tratava de tapar o buraco que Jindo fizera mais cedo. O rapaz já estava cansado e suado, apesar da noite não estar quente quanto a manhã. Jean tirou sua camisa e continuou a cuidar daquele buraco, mostrando-se ansioso e desesperado para finalizar o que fazia. Já estava exausto, mas não era só por isso que desejava o fim daquilo tudo. 

Mais meia hora se passou e ele finalmente se viu livre do trabalho. Analisou o espaço, a área parecia de acordo com todo o resto do solo. Ninguém desconfiaria o que repousava por debaixo daquelas inúmeras camadas de terra. Jean respirou aliviado e enxugou várias gotas de suor que caiam pela sua testa. Ajeitou seus cabelos curtos, também empapados pelo suor. Ele olhou para o lugar pela última vez naquela noite. Estava como ele desejava: livre de qualquer suspeita.

Passava das duas da madrugada e o rapaz tomava banho para se livrar de todo cansaço, das várias lembranças, dos vestígios de terra e de muitos receios. Jean mantinha sua cabeça abaixada, permitindo que a água morna massageasse seu pescoço e ombros, isso amenizava o incômodo naquela região. Ele ergueu a cabeça, as gotas agora lavavam seu rosto. Sem controle sobre seus pensamentos, viu sua mente ser invadida por aquilo que tanto tentava afastar. 

Jean passou a pensar que no cômodo ao lado estava aquela que ele decidiu enxergar como o grande amor de sua vida. Meses atrás  não pensava assim, meses atrás ele era muito diferente. Agora Andressa dormia tranquilamente, enquanto seu jovem marido não conseguia esquecer de toda sua situação. Ela estava cega, impedida de realizar seu maior sonho que era continuar escrevendo. Ela tinha surtos que tiravam toda tranquilidade do futuro advogado. Andressa ainda era assombrada por terríveis pesadelos. O estagiário pensara que formalizando uma união e levando-a para um lugar mais tranquilo, poderia mudar alguma coisa, mas tudo se tornou pior. 

A crise de Andressa martelava em sua mente. Ela confessando que achava estar enlouquecendo, aquilo o desesperava. Além de tudo, Jean temia pela sua escuridão. Sempre lutava para evitar tais pensamentos, mas em momentos como aquele, estando sozinho, perguntava-se novamente se deveria continuar com tudo. Ele estava arriscando um grande futuro e talvez tivesse que desistir de seus próprios objetivos para cuidar de quem aprendeu a amar profundamente por um único detalhe. Ele a amava, não queria levantar dúvidas quanto a isso, não mais. Contudo sempre duvidava se estaria disposto a aguentar até o fim. Três meses haviam se passado, o estágio havia sido perdido, o último ano na faculdade trancado e ele se perguntava do que mais teria que abdicar. Precisaria desistir de tudo definitivamente?

Voltou a se recordar do dia do acidente. Pôde sentir com perfeição e mais uma vez toda a angústia. Havia se tornado repetitivo demais. A tal angústia foi o sentimento que o fez ter certeza de muitas coisas. Quando entrou alucinado pela recepção do hospital, temeu ser tarde demais. Com a informação necessária, entrou desesperado na sala de emergência, já sabendo que Andressa passava por uma cirurgia de risco. Tudo estava tão bem horas atrás, o último mês havia revelado tantas coisas. Por isso ele não conseguia controlar toda sua preocupação e desespero. Estava apavorado com a possibilidade da perda. Tantos erros havia cometido. Havia se arrependido sinceramente, mas o destino se mostrava como um verdadeiro vilão. 

A cirurgia acabou. Andressa sobreviveu, um coma induzido foi necessário. As incertezas se prolongaram, a gravidade dos ferimentos era preocupante e quase dizimaram sua esperança. Todas essas notícias destruíram sua positividade e Erick e alguns médicos mais experientes trataram de acalmá-lo. Disseram que ainda havia esperança. Provavelmente em poucos dias ela sairia do coma, Andressa só precisava de paz em seu cérebro afetado. Entretanto, o que mais preocupava a todos os profissionais era a possibilidade de sequelas. Apenas um grande milagre livraria a paciente de temíveis consequências. Como previsto, uma semana depois Andressa despertou. Carregava o já esperado consigo, agora era vítima da cegueira. Não pôde aceitar. Acordar na escuridão trouxe muitas crises de fúria. Ela até mesmo decidirá a terminar o noivado de um ano. Jean não aceitou. Uma nova batalha teve início, ele estava para sempre ao seu lado. Após mais exames passaram a acreditar que o estado da paciente seria provisório. E veio a confirmação da amnésia pós-traumática. Recuperar essas memórias ainda era uma incerteza. Mas Jean se lembrava muito bem...

Continuava a se recordar enquanto ouvia o som tranquilizante e ao mesmo tempo deprimente da água. Sentia que aquilo era tão necessário. Ainda que, apesar de morna, a água lhe provocasse intensos arrepios. Jean se lembrou do primeiro dia em que pôde ver Andressa após o coma. Ele permaneceu de pé no quarto do hospital, ao lado da cama onde ela repousava em um profundo silêncio. Andressa, depois de sua primeira crise, ficou muda nas primeiras horas. O rapaz olhava para os olhos escuros da moça, eles se prediam a um ponto vazio no teto, estavam mortos e sem brilho. Jean movimentou uma das mãos na frente daqueles olhos, não houve nenhuma reação. Andressa estava tão pálida, cheia de curativos, praticamente irreconhecível e isso fazia o coração do rapaz se despedaçar a cada detalhe que reparava. Era mesmo ela quem estava ali. Tinha que se lembrar disso. Acabou se culpando mais uma vez, não deveria pensar dessa forma, muito menos permitir que ela saísse com seu carro, ele teria estar ao seu lado.

Jean sabia que, provavelmente, muitos aconselharariam a não se sentir responsável pela tragédia. Ele mesmo lutava para se convencer, mas em algum momento o sentimento retornava. Ele enxergava sua culpa de uma maneira que ninguém poderia imaginar. Ainda se sentindo remoer por remorsos. Naquele dia foi surpreendido pela amada. Andressa moveu uma de suas mãos à procura da dele e quando a encontrou a segurou bem forte. Lágrimas começaram a brotar dos olhos da enferma e com uma voz baixa e triste ela se desculpou:  

ᅳ Perdoe-me. Eu sei que você sempre admirou o brilho de meus olhos.

Jean olhou mais uma vez para os olhos de sua noiva. O vazio profundo daquele olhar o incomodou intensamente. Mais uma vez ele se culpou, agora por confessar a si mesmo que era verdade o que ela dizia. No entanto, não poderia se deixar abater, tampouco permitir que ela percebesse. Sua nova responsabilidade a partir de então seria fazer com que ela não se sentisse incapaz, nem mesmo infeliz. Ele colocou alguns de seus sentimentos de lado e decidiu que a partir dali iria dedicar seus próximos dias a fazê-la feliz. O rapaz segurou forte a mão dela e com sua outra mão acariciou seus cabelos escuros enquanto dizia:

ᅳ Não repita isso. Eu sempre vou amar tudo em você. 

Jean poderia permanecer naquelas lembranças por longas horas, mas algo interrompeu seus pensamentos. Repentinamente a temperatura da água mudou, tornando-se fria como gelo. Pego pela surpresa, o rapaz saltou para fora do box, arrepiado dos pés à cabeça e já sentindo os ossos chacoalharem. Pegou uma toalha enquanto xingava incansavelmente o chuveiro, a água, a fiação elétrica, o encanamento, toda aquela situação. Passou a enxugar seus cabelos enquanto olhava curiosamente para aquela ducha, perguntando-se:

ᅳ O que aconteceu agora? Merda! A fiação dessa casa deve estar uma porcaria.

Começou a se inclinar para fechar o registro, esquivava-se das gotas geladas e não parava de reclamar:

ᅳ Como se não bastasse tudo o que já aconteceu, agora isso… ᅳ Por fim ele conseguiu fechar o registro e se enrolou com a toalha, cobrindo a parte de baixo de seu corpo. Depois seguiu na direção do espelho. De frente à peça limpou o vapor que o deixava embaçado. Agora podia observar seu reflexo. Encarou-se por breves segundos e pegou uma pasta dental, colocando-a contra a escova e passando a escovar seus dentes. Ainda irritado voltou a se olhar no espelho, enquanto pensava:

"O Fabrício vai ter que vir me ajudar na reforma. Só espero que se venha, não esteja regado a álcool".

Ele enxaguou a boca e estava prestes a sair do banheiro quando uma corrente gelada atravessou seu corpo. Respirou mais profundamente e pode ver a massa de ar gelado acompanhar sua respiração. Tremeu. Tentou se apressar, a temperatura com certeza cairia ainda mais. Precisava ver se Andressa estava bem coberta e cuidar de ficar bem agasalhado também. Deu um segundo passo em direção à porta, não percebendo que no banheiro havia uma presença que o observava. Estava às suas costas, refletindo como uma névoa contra o espelho. Não tinha face ainda, mas logo mostraria o quanto furiosa estava.

Repentinamente a força o empurrou pelas costas, levando-o ao chão. Por poucos centímetros de distância Jean não bateu sua testa contra o armário da pia. Mas isso não se mostrou muito relevante. Enquanto desabava no chão, pôde enxergar perfeitamente o corpo de uma jovem caindo assim como ele, mas não no mesmo lugar e sim no que parecia ser uma estrada. Ela não teve a mesma sorte. Sua cabeça foi de encontro certo contra a beirada de um farol. O carro era prateado. A pancada foi muito forte. A mulher de cabelos longos, lisos e pretos se feriu duramente e permaneceu desnorteada no chão. Tateava o solo, não sabendo onde estava. Jean se sentiu da mesma maneira, tonto e no chão.

Gotículas vermelhas passaram a respingar sobre o piso. O rapaz tinha certeza que não havia batido contra nada, mas sangrava. Aquele sangue era seu, teve a certeza quando passou sua mão sobre a testa. Um corte havia se aberto ali. Jean havia evitado uma queda mais grave se apoiando com as duas mãos contra o piso, mas olhava para aquele sangue que continuava a pingar. Como havia se ferido? 

Levantou-se com certa dificuldade, ainda tonto, sua cabeça passava a latejar. Foi direto para o espelho. O reflexo deixava claro que realmente havia se machucado. Um corte considerável havia sido aberto no canto direito de sua testa. Inconformado e sem entender como o havia conseguido, o rapaz soltou alguns palavrões e abriu as portas do armário a procura de algo para fazer um curativo. Bufava de maneira raivosa, agora já sem paciência. Muitas coisas estavam acontecendo. Todo aquele dia e a madrugada corriam de uma maneira alucinada. Ele só desejava se deitar e dormir. 

Procurou a caixa de primeiros socorros por mais alguns segundos e como não achou nada, desistiu. Lavou o ferimento com sabonete, limpando o máximo que pôde e saiu do banheiro, desejando cada vez mais sua cama. No quarto vestiu um pijama de flanela qualquer e pegou um cobertor felpudo para cobrir sua mulher. Logo depois de cobri-la, deitou-se. Ainda olhou para Andressa ao seu lado, ela dormia tranquilamente, agora sem demonstrar nenhum tipo de preocupação. Isso o fez sorrir, principalmente quando ele olhou para o lençol e ainda viu as manchas escuras e secas das patas de Jindo. O cão agora dormia embaixo da cama. O dia estava acabado. Aquele lençol seria trocado quando o dia amanhecesse. Jean se acomodou sobre o colchão e deu um suave beijo no rosto naquela que dormia. Desejou-lhe "boa noite". Ajeitou sua cabeça no travesseiro e fechou seus olhos. Disposto a não se perder em mais pensamentos, apagou poucos segundos depois. Estava exausto.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo