Capítulo III

Novamente, eu acordei atrasada. Para variar, Carl entrara no banheiro de cima antes de mim, de modo que eu tive que usar o de baixo, cuja água era um tanto fria. Me arrumei. Jeans normal, jaqueta amarela normal e camiseta branca, como sempre. All Star no pé, caminhei até a cozinha e engoli um bolinho que minha mãe tinha feito ontem. Ela não estava ali, portanto não tive ninguém para me despedir.

Abri a porta e, quando achei que tudo não passara de um sonho, lá estavam eles, me ladeando – Elemiah e Daniel, meus anjos da guarda. Achei melhor me acostumar com isso. Infelizmente, eu estava sem o Peugeot e tive que ir a pé para a escola. Não que eu não gostasse de uma boa caminhada pela manhã, mas eu estava cansada pela minha morte de ontem e tal. Os anjos estavam silenciosos caminhando ao meu lado, quando eu tive aquela divina ideia...

- O que quer que esteja tramando, a resposta é não – disse Daniel. Ele sempre estava carrancudo quando falava, parecia estar constantemente com uma pedra no sapato.

- Eu não ia dizer nada!

- Kate, você não pode nos enganar: somos seus anjos da guarda! – disse Miah, que sempre era gentil e doce, e se abaixou em minha frente de modo a ficar didaticamente com os olhos na altura dos meus. Isso nunca funcionava comigo, de toda forma. Como não falei nada, ela continuou – Nós lemos seus sentimentos, querida. Às vezes são um pouco enevoados, mas na maior parte das vezes sabemos exatamente o que você está sentindo.

Agora fazia sentido o porquê eles estavam jogando na loteria àquela hora na orla da floresta, tentando acertar o que eu estava sentindo. Aquilo devia ser uma brincadeira para eles: não percebiam que era algo bem invasivo.

- E por acaso vocês podem ler pensamentos? Porque eu não estava tramando nada... – segurei minha mochila com força e dei uma acelerada no passo, com o nariz para cima. Era isso que eu fazia quando não queria falar sobre o assunto e meu interlocutor estava coberto de razão.

- Não, nós só vemos as mudanças do seu humor e traduzimos sobre o que você sente. Não é tão simples quanto parece... – explicou Miah e eu a interrompi.

- Ok, eu estava pensando em usar minhas asas para ir à escola. Satisfeitos? Agora podemos ir ou vocês vão continuar tentando decifrar cada coisa que eu sinto?

Eles não disseram nada, apenas se entreolharam. Eu estava nervosa sobre a prova de matemática. Esperei sinceramente que eles notassem isso e me deixassem seguir meu caminho para o abate em paz.

Não cheguei atrasada na escola, apesar de ter acordado tarde. Carl, como sempre, estava apoiado atrás da placa que mostrava o nome da escola – Colville High School. Minha mãe nunca acreditara que era justo pagar por educação, portanto não pagava colégio particular para nós, o que para mim representava nada mais nada menos que apenas mais um motivo para meus pais entrarem em atrito.

Ele olhou para mim de esguelha, como sempre, me vendo chegar, porém que dessa vez ele largou a cintura da líder de torcida loira, cheia de maquiagem e de corpo escultural para ir até mim, a irmã psicopata maluca e sem graça da escola. Ele nem me disse bom dia, apenas deu seu recado:

- O Justin quer falar com você.

- Ah, bom dia, Carl – eu disse, cínica, e continuei meu caminho, apesar de estar morrendo de curiosidade para saber o que o maldito traidor de sentimentos queria falar comigo. Fiquei pensando se meus anjos da guarda sacaram isso, mas tive vergonha na cara o suficiente para não perguntar a eles... eu não queria ganhar mais uma característica de psicopata: falar sozinha.

- É sério, Kate. Ele... ele me disse que terminou com você... e que quer conversar. Ele só foi deixar as coisas dele na sala de aula e volta.

- Eu não estou nem aí – respondi e meu irmão me segurou pelo pulso. Nessa hora percebi como ele ficara forte por ser do time de futebol americano. – Está me machucando, me larga! – reclamei e, quando me virei, dei de cara com Justin.

Ah, Justin! O Don Juan da região. O corpo forte, o rosto de astro de cinema, cabelo preto e olhos da mesma cor. Aquelas sobrancelhas retas faziam todas as garotas caírem de joelhos pelo olhar dele que, antes era encantador, mas agora para mim só parecia com dois buracos negros onde eu não estava afim de me perder de novo.

Voltei a mim e foi impressionante quando vi, ao lado esquerdo de Justin um anjo negro e, ao lado direito, um anjo branco, porém quem estava branca que nem uma folha de papel era eu. Ele também tinha anjos da guarda. Disfarcei o que eu estava vendo, mas automaticamente lembrei que o aniversário dele era dia 31 de maio. Não sei se ele notou que eu também tinha anjos ao meu lado. Talvez parecesse loucura eu ficar ali trocando figurinhas sobre as experiências que tivemos com nossos anjos da guarda. Às vezes ele nem sabia que tinha anjos da guarda...

- Vai ficar aí me olhando o dia todo? – eu disse, desejando que ele respondesse algo poético como “Sim, eu nunca me canso de te olhar” ou então “Fico paralisado quando te vejo”, mas não teve nada disso. Não que o que ele tenha dito na sequência não fosse igualmente... fofo.

- Seu irmão me contou o que aconteceu ontem. Hum... você está legal?

- Bem... – ajeitei minhas mãos nas alças da minha mochila, eu a seguro firme quando me sinto acuada ou coisa do gênero, quebrei os quadris e fiquei batendo o pé a esmo na grama verde do imenso jardim frontal da escola. – Considerando que meu relacionamento sério de mais de um ano terminou, que quase morri afogada na noite passada e a prova de matemática que tenho à frente, estou até que estável.

Estou até que estável. Estou até que estável! Oh, Deus, não existe algo mais estúpido que isso para se falar numa hora dessas! E, com minha visão difusa, eu pude ver os lábios do anjo branco de Justin se mexendo. Eu nunca fui uma excelente leitora labial, portanto não entendi nada, e também não queria ficar olhando diretamente para o anjo dele. Os anjos dele que vão para o inferno, junto com ele. Assim que o anjo terminou de jogar o veneno, Justin disse:

-  Hum... acho que isso é bom. Sabe, Kate... sobre ontem... – ele olhou para mim com o rosto abaixado e cara de culpado. Não era para menos. Mas ainda assim ele ficava maravilhoso dessa forma. Justin deixou uns segundos silenciosos para que eu o interrompesse gritando algo como que eu não queria saber sobre ontem ou sobre nós dois, entretanto fiquei quieta, e ele continuou falando – Eu queria dizer que eu sou um idiota. Eu terminei com você e nem mesmo disse o motivo. Tipo, ninguém termina porque quer o bem do outro, certo?

E nessa hora, foi o anjo negro que disse algo para ele. Ótimo. Agora ele não iria voltar para mim.

- Absolutamente certo – eu disse a ele, tentando falar mais alto que o anjo. Bom, talvez se eu falasse alto o bastante, Justin não conseguiria ouvir a fala do anjo traduzida em um pensamento dentro de sua mente.

- Porém, é a mais pura verdade, Kate. Não quero que você pense que é uma desculpa esfarrapada...

Justin, então, deu um passo à frente e movimentou o ar perfumado em volta dele, chegando perto de mim, segurando minha mão.

- Eu realmente... eu...

Ele novamente olhou para baixo. Fiquei assustada com isso, porém me segurei e não disse nada. Aprendi esse velho truque com minha mãe... Ela sempre disse que temos que deixar aparentar pros caras um ar de que “não estou nem aí para o que você está falando” ou “anda, fala logo essa lorota toda pra eu poder te dar um pé na bunda” e deixar ele falar, falar, falar e falar até cansar. Assim, ele vai acabar falando alguma coisa muito errada que ele fez e vai perceber o erro, pedir desculpas e você poderá usar isso contra ele o resto da vida. Obviamente que eu nunca tinha feito isso antes, mas dessa vez pareceu o certo a se fazer. Só para ter o gostinho da vingança.

- Sabe Kate... eu te amo muito – nessa hora, ele apertou minha mão tão firme como nunca antes havia feito. Me senti como se estivesse em uma estação de trem com Justin, se despedindo para ir à guerra. – Eu te amo tanto que dói e eu não consigo mais aguentar isso...

Aguentar? Aguentar o quê? Todo mundo falando que você namora a psicopata com dor nas costas?

- Algumas responsabilidades maiores estão me ocupando e me tirando a atenção ultimamente. E eu... eu não posso te envolver nisso. Infelizmente.

- Ok, Justin – eu afastei as minhas mãos das dele e apertei as alças da minha mochila, mais firme que nunca. – Quem você engravidou? A Cristina? A Megan? A Amy? Ah, já sei, a Jess.

- N-não! Você tá louca? – ele ficou realmente surpreso.

- Então, Justin, vá procurá-las.

- Eu já disse que não é isso! – ele empertigou o corpo, como se isso fosse o maior absurdo do planeta e colocou as pontas dos dedos das mãos na testa, tentando raciocinar.

- Então o que é? Garanto que não está preocupado se você vai ou não vai para Harvard, porque sua vaga lá já está garantida pelo seu avô, então que preocupação maior você deve ter? – tentei ofendê-lo.

- Você não entende... – ele suspirou e maneou a cabeça de forma negativa. Estalou a língua nos dentes e depois olhou para mim. Eu nunca tinha visto a cara dele tão desolada. Reparando agora, ele parecia exausto. – Olha... apenas... apenas tente me perdoar.

- Se eu souber um motivo, talvez ficaria mais fácil te perdoar.

- Olha aqui... – ele chegou tão perto de mim e o olhar dele era tão assustador que, se alguém parecia um psicopata ali, esse alguém era ele. Perdera a paciência. – Eu não tenho que ficar me explicando. Não sou obrigado a ficar com você. Já te disse isso ontem. Agora, você quer que eu seja gentil ou que eu termine da mesma forma que terminamos ontem?

- Com certeza você acabou de falar exatamente o que eu queria ouvir: Você não é obrigado a ficar comigo, quanto mais a ficar se explicando para mim. E esse, Justin, esse é o verdadeiro motivo de você estar aqui de pé na minha frente falando comigo. Você já me disse isso ontem, já feriu meus sentimentos o bastante dizendo isso e acabou de falar a mesma coisa de novo. Este é o verdadeiro motivo, e leia meus lábios quando eu digo: você não sente nada por mim. Não sente nada que o obrigue a ficar comigo. Nenhum sentimento ou pensamento no seu ridículo ser faz com que você tenha obrigações para comigo e nem no mínimo ter um pingo de respeito por mim ou algum valor pelo relacionamento que construímos durante o tempo que ficamos juntos! Agora, com licença, que eu tenho uma vida para levar adiante...

Andei e ele tentou segurar meu braço mais uma vez. Nunca fiz um gesto tão violento, o músculo do meu braço até doeu quando me soltei da mão de Justin e saí andando batendo os pés firmemente na grama. As pessoas ao redor tentaram fingir, mas deu para perceber que todos estavam prestando atenção na nossa conversa inteira e agora fingiam que não estavam mais olhando.

Obviamente, a minha primeira parada foi o banheiro das meninas. Chorei mais do que eu já tinha chorado a madrugada inteira, até que a sineta tocou, me obrigando a ir à sala de aula fazer aquela m*****a prova.

Andei pelo corredor da morte até minha sala de aula, onde o rebuliço estava excessivo na porta. Quando entrei na sala e procurei me sentar em um lugar mais fácil para colar, uma notícia maravilhosa chegou aos meus ouvidos pela nossa querida diretora: a prova fora cancelada.

Aquilo era música para os meus ouvidos, porém quando ela falou o motivo do cancelamento da aula, eu fiquei mais ou menos alegre, mais ou menos triste, pois a notícia tinha um sentido duplo: as provas foram canceladas porque o professor se envolvera em um acidente de carro na ida para a escola. Estava internado no hospital, quase morrendo. Claro que a parte do “quase morrendo” ela disse de um modo mais brando como “em estado grave” ou “prestes a falecer” e, depois que ela mandou para a detenção os alunos idiotas que assobiaram e comemoraram a notícia, liberou o restante de nós para estudarmos no horário vago.

Depois, descobrimos o que realmente tinha acontecido. Alguém ouviu um professor comentar que ultimamente o Sr. Wister, o professor de matemática, estava bem abatido e disse mesmo que iria suicidar. Ainda comentou: “coisa de louco, não é? ”.

“Obrigada pela parte que me toca, professor Harris, obrigada mesmo.” – pensei.

Aproveitei esses momentos de paz e tranquilidade, pelo menos para os alunos de matemática da Colville High, e fui até a sala de psicologia. Meu encontro com o psicólogo da escola estava marcado para mais tarde, após as aulas, porém eu estava vislumbrando uma possível oportunidade para ir mais cedo para casa. Enquanto eu estava sozinha no corredor vazio, me senti um pouco mais segura para conversar com meus anjos.

- Miah... – eu sussurrei, sozinha no corredor. Bem, sozinha para quem me via, mas eu estava acompanhada. – Porque o Justin também tem anjos da guarda? É porque o aniversário dele é trinta e um de maio? Quer dizer, teoricamente cada pessoa tem seus anjos da guarda, certo? Mas, porque eu só consigo ver os anjos dele e os meus? É porque a gente beijou na boca?

- Não, Kate – ela respondeu enquanto eu andava e fingia que nada estava acontecendo. – Não podemos falar nada sobre isso.

- Como assim?

- Bom, as coisas que cada anjo trata com seu protegido não podem ser reveladas. É algo como “sigilo profissional”. Temos missões a cumprir e estas missões algumas vezes são secretas.

- E a minha é secreta?

- Com certeza que sim.

- E porque todo mundo então já está sabendo que eu estou aqui? Pelo menos foi isso que vocês me disseram ontem à noite. Que “eles” sabem.

- Estou dizendo que os segredos ficam entre os anjos. Não são repassados aos nossos protegidos.

- E porque ele tem anjos?

- Você é surda? – interveio Daniel, com seu jeito sempre tão delicado de falar comigo. – Miah já disse que não podemos falar, então contente-se com isso e siga sua vida.

- Daniel, você é um troglodita! – eu o xinguei e Miah começou a rir.

- Obrigado pelo elogio – ele disse, irritado.

- Aliás, estou indo ao psicólogo da escola, então fiquem bonzinhos aqui fora – eu disse, como se adiantasse alguma coisa.

Logo estávamos todos lá: Eu, Miah e Daniel, sentados num banco esperando um aluno sair de dentro da sala de psicologia para que eu pudesse tentar adiantar minha consulta. Na porta, havia pendurado um aviso escrito “Em atendimento. Favor não interromper”. Eu nunca tinha visto aquela placa, porque eu sempre ia no horário marcado, então só dava de cara com o “Seja bem-vindo. Entre sem bater” que habitualmente estava ali para mim.

A maçaneta se mexeu e me preparei para entrar quando vi quem estava saindo. Era Justin, com seus alados amigos. Ele parecia realmente muito chateado quando saiu de lá, porém tentou “consertar” o semblante tristonho diante do meu, que estava inexpressivo na ocasião. O Dr. Austin olhou para mim do lado de fora quando ia virar a placa da porta e desistiu de sua ação.

- Sua consulta é à tarde, Kate.

- É que eu tenho o horário vago.

- Então vá estudar – ele disse, calmo, dando o conselho gentilmente como se fosse um prudente amigo.

- É que eu passei por muita coisa. Talvez não seja suficiente somente à tarde... – tentei, sem intenções de voltar mais tarde.

- Eu estou sabendo, Kate, sua mãe nos telefonou hoje cedo. Bom, talvez seja melhor mesmo que você entre. Vamos, venha...

O Dr. Austin me deu passagem e eu entrei na sala de psicologia da escola. Não era uma sala fria e com persianas de metal horizontais como todas as outras, mas tinha uma cortina aconchegante que tampava os vidros da divisão da sala com a recepção, carpete fofo e verde musgo, uma cadeira do doutor com uma escrivaninha ao lado, um divã com uma poltrona próxima e uma cadeira para os alunos, com um criado mudo carregando uma caixinha de lenços de papel. Vi alguns usados, amassados ao lado da caixinha. O doutor notou que eu havia percebido.

- Não se preocupe, não são do Justin.

“Antes fossem” – pensei, vingativa, mas não falei isso. Se eu aprendi alguma coisa naquelas sessões com o Dr. Austin, era que ele estava me estudando desde que eu passara pela porta de entrada.

- Não, não é isso. Talvez apenas por não ser muito higiênico – e eu sorri.

- É que eu não estava esperando outro paciente agora, sabe – ele deu uma risada de volta enquanto eu peguei os lenços de papel, me levantei da cadeira e os joguei numa lata de lixo. Com aquela resposta eu tinha certeza de que eles eram do Justin. Fiquei feliz em me livrar daquilo, pois agora que eu sabia que eram lenços com lágrimas dele, felicidade esquisita que realmente me incomodou. – Obrigado, Kate. Bom, o que temos hoje, então?

- Sabe... – retornei e me deitei no divã. Pode apostar que eu quase dormi quando fiz isso, tal qual era meu cansaço, porém não queria gastar o tempo do Dr. Austin apenas para tirar um cochilo ali – O boato é de que o professor de matemática cometeu suicídio... é loucura pensar assim? A pessoa é louca por pensar em se matar?

- Isso foi uma pergunta para mim?

- Não... Bom, mais ou menos.

- Você não é louca, Kate. Já passamos dessa fase do tratamento, lembra-se?

- Claro que eu lembro, apesar de ser complicado acreditar nisso. Quer dizer... você soube o que aconteceu ontem? Digo, comigo?

- Sim, todo mundo da cidade soube, porém – ele cruzou as pernas colocando o tornozelo de uma sobre o joelho da outra e recostou-se na sua poltrona, daquele jeito que só ele sabia fazer, que indicava que ele estava voltando toda a sua atenção para mim. De certa forma, sentir aquilo era bom. –, eu gostaria de ouvir a versão mais completa. A sua versão, é claro.

- Oh... – eu coloquei as duas mãos no rosto e permaneci assim por um tempo. Com os olhos fechados eu sempre achava mais fácil falar com o doutor, assim parecia que ele era apenas uma voz na minha mente, como se as palavras dele não viessem dele, mas viessem de dentro de mim, e assim eu sentia como se eu estivesse ali, sozinha com meus pensamentos. – Eu não sabia o que fazer. Justin terminou comigo. Eu...

E eu só consegui chorar depois disso. Meia caixa de lenços de papel depois, consegui retomar a fala.

- Eu só queria me matar! Queria fugir. Sair de perto dele. Queria que ele sumisse do meu mundo. Ou que eu sumisse do mundo dele, sei lá. Eu não sei o que eu estava pensando na hora, apenas me deu vontade de... de destruir algo.

- Mesmo que fosse você mesma?

- É...

- E o que sobraria para você depois que destruísse a si mesma?

Fiquei calada mais um tempo. Eu odiava o Austin.

- Nada. Minha existência acabaria – eu disse. Odeio quando o Austin fica calado se eu dou a deixa para ele falar. No silêncio dele, continuei falando. – Na realidade, eu estava contente por isso. Me livraria das coisas chatas que tenho que conviver agora. A única coisa que fiquei meio chateada foi deixar minha mãe triste. Eu não queria causar muita confusão, não queria que prendessem um cara qualquer, drogado e meio punk, que seria culpado por minha morte, mas que não tinha nada a ver com a história. Pensei até em me embebedar até cair num rio em Seattle, quando finalmente tive a brilhante ideia de prender uma pedra no meu pé, para que eu me afundasse na água. Dr. Austin, eu... eu me afundei. Tipo... eu. Eu me afundei. Onde eu estava com a cabeça? Quer dizer... somente doidos cometem suicídio, como o Sr. Wister. Também, quem consegue explicar como uma pessoa gosta de matemática? Na certa é doida...

- Não fale assim do seu professor. Ele está internado. Precisa de pensamentos positivos, certo?

- Certo. Eu quero que ele fique bem. Quer dizer, na verdade eu até pensei que isso poderia ser uma coisa boa. Quer dizer, boa para ele. Digo, se ele realmente quisesse se matar e tal. Foi uma coisa ruim para a família dele, isso com certeza, eles devem estar sofrendo. Eu só sei que quando eu vi minha mãe abraçando meu irmão em frente ao meu corpo morto, eu senti como eles sofriam, foi horrível e...

- O que disse?

Fiquei quieta. Austin não tinha se distraído, muito pelo contrário.

- O que disse que viu? – ele repetiu.

- Eu... – e eu me sentei. Olhei para ele e ele olhou de volta para mim. – Eu acho que estou vendo coisas.

- O quê? Você é doida Kate!? – Daniel, indignado, levantou-se da cadeira e gritou isso no meu ouvido, tão alto que tive que me forçar para não expressar o susto que levei. Não consegui escutar o Dr. Austin, mas imaginei o que ele tinha perguntado.

- Eu acho que estou vendo coisas... tendo alucinações...

- Kate! Kate! Não conte a ele sobre nós, Kate! – Daniel continuava gritando e Miah olhou para mim.

- Kate, você não pode contar a ele sobre nós. Você corre o risco de ser internada em um hospício... – disse Miah.

- O que disse, doutor? Me desculpe, não ouvi – eu disse e ele repetiu calmamente o que dissera enquanto Daniel e Miah me enchiam o saco.

- Que tipo de alucinações?

- Kate, não conte – disse Miah.

- Kate! Cale a boca Kate! – disse Daniel, muito mal educado e preocupado.

Eu não conseguia entender o porquê de tanto rebuliço. E comecei a pensar se realmente aquilo tudo era uma alucinação das boas.

- Eu vejo... – comecei a falar. Daniel quase teve um derrame.

- Kate, nós somos reais. Lembra-se das suas asas? Do seu poder de cura? – disse Miah, sempre a voz da razão.

- Monstros. Eu vejo monstros. Aliás, são dois.

Os meus anjos arregalaram os olhos.

- Um é muito mal-educado e sempre me xinga. O outro monstro é mais legal, só que não deixa de me dar medo.

- Hum... – Austin me avaliou. – É mentira.

Agora até mesmo Miah ficou um pouco tensa. Eu me virei e deitei no divã novamente.

- Kate, eu entendo que você pode ter sofrido algo enquanto estava desacordada. Já ouvi relatos de pessoas que puderam ver seus corpos mortos diante de si quando passaram por dificuldades de saúde na vida ou experiências de quase-morte. É esse o tipo de alucinação que você tem?

- Como você sabe? – falei. Eu estava salva.

- Eu apenas sei das coisas. Esqueceu que estudei psicologia a vida inteira? Olhe, eu passarei um remédio para ansiedade.

O Dr. Austin se levantou e foi até sua escrivaninha, receitar o medicamento para mim. Miah e Daniel agora estavam recostados na parede, aliviados. O Dr. Austin foi falando e falando como eu deveria tomar o remédio e me envolver em atividades familiares para estreitar os laços entre a família, assim eu aprenderia a sofrer um pouco menos quando tivesse perdas desse tipo, pois eu estava sofrendo por arrependimento de passar pouco tempo com eles. Era a lorota mais mal inventada que eu já tinha ouvido na minha vida, porém eu iria fazer aquilo, só para não dizerem que não tentei me curar.

Ouvir aquele anjo idiota no pé do meu ouvido me enchendo o saco durante toda a aula de biologia foi complicado. Enquanto eu dissecava uns sapos – oh meu Deus, quando os professores vão desistir de pedir para fazermos isso!? –, Daniel ia dizendo o como eu era irresponsável e como eu poderia colocar tudo a perder.

- Calma, só foi um deslize – eu disse, sozinha, porém minha dupla, uma garota que eu não conhecia muito bem, olhou para mim e respondeu:

- Então tome cuidado da próxima vez.

A voz da garota fez coro com a de Miah. Respirei fundo, desanimada, e respondi:

- Ok.

A hora do almoço não foi fácil. Eu não achei nenhum lugar para me sentar quando cheguei no restaurante da escola. Agora que eu não podia mais almoçar na mesa do Justin, eu não sabia para onde ir. A mesa quebrada num cantão em que eu almoçava sozinha antes de começar a sair com o Justin agora estava ocupada pelo pessoal do clube de teatro e aquela fumaça que rodeava todos eles, com certeza, não era nenhum efeito de palco.

Não peguei nada para almoçar, não estava com fome mesmo. Me direcionei para as escadas e subi até o telhado da escola. Sempre achei a visão de lá magnífica, dava para ver a cidade quase inteira.

Meus dedos deslizaram por entre as grades e, na hora que eu estava sozinha, finalmente me encontrei e vi a realidade: meu namorado terminou comigo. Terminou comigo e não me deu um motivo – só me deu uma tonelada de desculpas esfarrapadas. De alguma forma, eu sei que ele me ama. Eu sei. Comecei a chorar.

- Não fique assim – disse Daniel. Olhei para os lados e não vi Miah.

- Onde está Miah?

- Ela foi resolver um problema.

- Ela bem que podia matar o Justin – eu rosnei, limpando minhas próprias lágrimas.

- Hahaha! – ele riu. Era uma risada gostosa e sincera. – Isso não faz o tipo dela. Ela subiu para resolver umas coisas.

- Hum...

Virei-me de costas para ele e encarei a imensidão da cidade novamente.

- Quantas pessoas sentiriam falta de mim se eu morresse? – falei, vagamente. Para minha surpresa, Daniel respondeu.

- Todas aquelas que têm você gravada no coração.

Aquilo me surpreendeu. Sempre que eu estava bem, ele me tratava mal. Agora que eu estava mal, ele me tratava bem. Naquele momento comecei a entender a mecânica da adversidade. Nossa conversa seguiu. Ele falava sempre de forma simples e direta, com a voz no mesmo tom da minha: sem qualquer emoção.

- Mas, eu posso quantificá-las? – perguntei.

- Depende.

- Depende do quê?

- Depende da quantidade de árvores que você tem.

- Hein!? – virei-me, completamente perplexa.

- Se você fosse uma semente plantada no coração de cada pessoa que você conhece, quantas dessas sementes você regou?

Fiquei pensando. Ele continuou a falar:

- Depois que as árvores crescem e ficam frondosas, enormes, suas raízes cravam mais e mais na terra de modo que é muito traumático quando uma árvore dessas é arrancada de onde cresceu.

- Então prefiro não me plantar dentro do coração das pessoas.

- Mas sem as árvores, ficaríamos sem ar. Morreríamos.

- Ou talvez não iria me regar muito – me corrigi. – Assim eu não cresceria o suficiente para que elas sofressem caso eu fosse arrancada.

- Se fosse assim, sempre existiria um vazio no peito das pessoas e não iríamos conseguir respirar direito.

Fiquei em silêncio de novo. Ele continuou falando, mais uma vez:

- Esse garoto, Justin, era uma árvore imensa presa no seu coração. Você está com vontade de respirar... e, pelo menos no lugar dessa árvore, outra semente pode ser plantada.

De novo, eu não disse nada. Depois de alguns momentos, ele completou:

- Só que tem algumas árvores que são únicas em sua espécie e raridade. Como sua mãe e seu pai. Jamais uma outra crescerá no lugar.

- O que você está dizendo? – eu estava amedrontada.

- Não fique com medo.

- Eu não estou.

- Eu leio seus sentimentos, esqueceu?

- Meus pais vão morrer logo? Fala logo. Fala rápido.

- Não, não foi isso que eu quis dizer!

- Fala! – eu segurei o colete preto de couro que ele usava e o sacudi para frente e para trás. Daniel segurou minhas mãos e me parou, gritando:

- Não foi isso que eu quis dizer!

- Então o que é!? – gritei de volta.

- Só falei isso para você seguir o conselho do psicólogo!

- Que conselho!?

Estávamos berrando um para o outro. Eu já havia me esquecido completamente do conselho.

- De passar um tempo com sua família! – gritou Daniel.

Eu nem estava considerando isso mais.

- Some da minha frente! – gritei de volta, empurrei meu anjo e corri escada abaixo até a enfermaria.

Simulei um ataque cardíaco e logo telefonaram para minha mãe. Dentro de alguns momentos, eu não estava mais simulando. Eu realmente estava nervosa e fiquei sem ar. Eu estava com uma árvore faltando em mim. Minha árvore tinha sido arrancada e o buraco que ficou ali na terra era grande demais para que fosse fechado. A ferida doía demais. Eu estava desesperada. Enquanto eu arfava assentada na maca, Daniel ficou na minha frente, com os musculosos braços cruzados, o corpo e o pé apoiado na parede. Se a enfermeira estivesse vendo, iria gritar para que ele tirasse os pés sujos da parede imediatamente.

Daniel ficou me observando durante muito tempo. Eu vi no olhar dele que ele estava pensando o quão despreparada e desequilibrada eu era. Talvez ele estaria pensando em me executar, pois eu vi ele mexendo em algo na sua cintura, enrolado em uma atadura negra. Era a primeira vez que eu via aquela espada ali, amarrada num cinto, dependurada no corpo dele.

- Você não precisa de ninguém para viver.

- Você acabou de falar que quando a árvore é arrancada, ficamos com um vazio – eu disse, sem deixar de, antes, checar se havia alguém observando nossa conversa. A enfermeira estava no telefone com meu pai agora: era a praxe da escola ligar para ambos caso os pais do aluno fossem divorciados.

- Com o tempo, você aprende a conviver com o vazio. Essa é a segunda opção. Você sempre se acostuma com o que tem. Mesmo que você perca algo que parecia promissor e maravilhoso, com o tempo você passa a achar que seu novo status quo é o suficiente. E agora? Você vai aceitar as coisas que têm em mãos e seguirá em frente ou vai ficar parada sofrendo diante do buraco da árvore arrancada?

- E se eu... – ele me interrompeu.

- Desistir não é uma opção.

Aquilo fora profundo para mim. Meu coração agora tinha mesmo parado, ou foi o que eu senti. Eu só conseguia odiar o anjo Daniel cada vez mais a cada segundo que passava, mas ele era alguém verdadeiro que eu tinha ao meu lado. Mais transparente e autêntico do que ele, impossível.

- Você só fala coisas para me perturbar.

- Alguma coisa tem que fazer você mover essa bunda enorme daí.

- O que disse!? – gritei.

- Um minuto – ouvi a enfermeira no telefone, ela direcionou-se a mim, gritando em resposta – Nada! Estou no telefone! Oi, ah, sim. Bom, eu precisava do pedido para amanhã à tarde...

Daniel contorcia-se de rir.

- Eu disse que alguém tem que fazer os seres humanos saírem do lugar. Terem vontade de fazer alguma coisa. Por isso vocês são inquietos.

- É, existem muitos “Daniéis” por aí pra trazer adversidade.

Rimos. Então, minha mãe chegou e foi me abraçando como uma louca. Depois disso, seguiu-se uma seção de exames e horas a fio num hospital. Descobriram que minha pressão estava apenas baixa por ter comido mal no café da manhã e uma leve crise de ansiedade, além do cansaço do stress causado pelo dia anterior e o sono. Novamente, a dor nas costas foi examinada, e nenhum resultado mostrou alguma coisa. Fiquei pensando porque minhas asas não apareciam no raio-x. Claro, o raio-x não é da minha cabeça, pois é lá que minhas asas moram: na minha imaginação.

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