Capítulo II

Enrolada em um cobertor grosso, eu estava na sala de estar da minha casa quando meu padrasto trancou a porta. As luzes da ambulância e do carro do xerife foram embora enquanto minha mãe me deu um beijo no rosto e foi até a cozinha buscar algo quente para que eu bebesse. Eu ainda sentia minhas vias respiratórias arderem da água que entrara e a garganta muito esquisita com a força da água que saíra dos meus pulmões quando o xerife terminara de me reanimar.

Meu irmão acompanhou-me pelas escadas até o banheiro para que eu tomasse um banho enquanto ele separava roupas secas para mim. Ele também me deu um beijo na bochecha e me abraçou, como se a última vez que ele tivesse me visto fosse há uns trinta anos.

Sozinha no banheiro, andei como se meus pés não estivessem firmes no chão. Curvei-me e abri o chuveiro para que ele pudesse ajudar a encher a banheira. Retirei a calça e a jaqueta molhadas e olhei-me refletida no espelho, de corpo inteiro. Imaginei-me com minhas asas e abracei meus próprios braços. Eu estava ali. Viva.

Fitei meus cabelos castanhos, lisos e compridos, minha boca fina e os olhos em um castanho intenso, as pálpebras bem manchadas com o lápis preto, o único item que sobrou da maquiagem que inutilmente usei naquele dia. Pisquei, fechei os olhos e perguntei a mim mesma o que eu estava fazendo. Olhei-me novamente no espelho. Tirei as meias junto com a calça, a camiseta do Palante e a roupa íntima, entrei na banheira, fechei o chuveiro e as torneiras que a enchiam.

O silêncio agora era quebrado apenas pelo barulho da água se movimentando por causa das minhas pernas entrando e saindo dela enquanto eu as ensaboava. Era aquele barulho de água batendo na beirada da banheira, algo parecendo uma goteira, ou quando você está em um lugar com teto alto e sozinho dentro de uma piscina. Finalmente dei por mim.

Só agora percebi o que tinha acontecido. Eu morri. Eu efetivamente morri por alguns momentos e depois voltei à vida. Neste meio tempo, eu criei asas e dois anjos me contaram que eu também sou um anjo. E que posso escolher se irei me tornar um anjo no céu ou na terra. Como se isso realmente fizesse alguma diferença... ou eu ainda não sabia a diferença que aquilo fazia.

De um modo ou de outro, aquele tinha sido um dia cheio. Quando eu contar isso ao meu psicólogo, ele vai me mandar diretamente para um hospício. Escondi a minha vergonha com minhas mãos sobre o rosto. Era uma pena que eu não pudesse me esconder de mim mesma. Sim. Eu chorei.

Ao sair do banho, um banho muito perturbador porque minha mãe ficava toda hora perguntando se eu já havia terminado, checando se eu ainda estava viva e não tinha cortado meus pulsos ou jogado dentro da banheira o secador de cabelo ligado, fui de roupão para a cozinha. Minha mãe me empurrou pela goela quase meio litro de chá verde com outras ervas nada deliciosas e tanto biscoito que eu nem imaginava ser possível ter aquela quantidade em casa. Meu padrasto ficava só me olhando de longe e meu irmão havia se enfurnado no quarto dele.

Estar sob aquele olhar sombrio do Andrew estava me deixando tonta, era o olhar de quando meu pai estava vindo para cá. Ele nunca gostava de ter outro “macho” em casa, ainda mais um macho que já havia copulado com a fêmea que agora era dele. E minha mãe, mesmo que eu tivesse acabado de morrer, estava se maquiando, arrumando os seios dentro do sutiã e ajeitando o cabelo, preocupada com a visita do meu pai.

- Ele só vem buscar o carro – eu disse, tediosamente, para ela perceber que aquilo não era grande coisa.

- Claro que não. Ele vem te ver, porque você passou por muito hoje – ela disse e, enquanto arrumava mais um grampo no cabelo e checava os brincos, deu uma olhadela para checar Andrew, que tinha o pior dos olhares mortais na direção dela. – E espero que ele vá embora logo, sem nos perturbar – completou, apenas para agradar a Andrew.

Neste momento, Andrew, como sempre, apoiou as mãos nos braços da poltrona que ele estava sentado, de uma forma muito violenta, e os apertou com força, levantando-se carrancudo e subindo as escadas para o quarto. Parecia que ele sentia meu pai pelo cheiro, porque quando ele pisou no primeiro degrau da escada, a campainha tocou. Era meu pai.

Eu logo tratei de acertar minha postura sentada no banco próximo à bancada da cozinha, tentando segurar minha caneca mais tranquilamente, como se eu estivesse ali na casualidade de sempre, tomando um chá. Minha mãe abriu a porta e ele logo perguntou por mim.

- Onde está a K.? – disse, enquanto passou pela entrada e já me viu na cozinha conjugada com a sala, vindo em minha direção. Me deu um abraço tão apertado que quase caí do banquinho em que eu estava. – Kate!

- Oi pai – eu disse e, para marcar mais ainda a minha casualidade ensaiada mentalmente, lhe disse sobre o que lhe interessaria: a chave do Peugeot. – Suas chaves estão...

- Depois falamos sobre isso, como você está? Ande, vamos, vista-se. Vamos para casa.

- E-espere aí – interrompeu minha mãe, que agora parecia uma leoa protegendo seu filhote. – O que você disse?

Meu pai sacou do terno um papel dobrado em dois e mostrou para ela.

- Do conselho tutelar.

- Ah! Não vem com essa de conselho tutelar! – minha mãe deu a volta por mim e me segurou pelo braço, puxando-me de meu pai.

- Você não está cuidando bem da minha filha! Eu já disse que quero ficar com ela, longe desse sujeito aí que você arrumou num boteco de esquina! – e meu pai me puxou também, pro lado dele.

- Hahaha! – minha mãe riu, puxando meu braço, de novo, de volta para perto dela – Como se você não tivesse uma qualquer a cada noite na sua cama!

E nessa hora, os dois me soltaram e começaram a gritar um com o outro.

- O que você quer dizer com isso?

- Que você não é exemplo para minha filha!

- Claro que sou! Sou um ótimo exemplo! Tanto é que estou brigando pela guarda dela para tirá-la de perto de você, que não consegue nem saber onde sua filha está ou em que lago ela está tentando se afogar à noite!

- Eu sabia exatamente onde ela estava! Não posso fazer nada se ela saiu do percurso que tinha me falado! Pelo menos eu estava na cidade, e você que estava num avião indo embora!?

- Eu estava no aeroporto e cancelei meu voo imediatamente assim que soube!

E assim a discussão seguiu, ela falando que ele era imprestável e ele falando que ela era inconsequente. Depois, insegura. E, depois, ambos começaram a culpar um ao outro para ver de quem que era a culpa da separação – coisa que já tinha acontecido há 13 anos ou mais. Foi então que eu me levantei e gritei mais alto que eles.

- Escutem, eu sou grande o bastante para decidir onde eu vou ficar. Pai, obrigada, mas vou continuar por aqui mesmo e, mãe, despeça-se do papai, porque ele tem que ir embora logo pra reunião dele e nós duas temos que dormir porque o dia foi cheio. Pai, guarde esse papel agora antes que eu pegue e queime ele. Suas chaves estão no chaveiro perto da porta. Obrigada por emprestar o carro, foi muito útil. Boa noite.

Subi para o meu quarto. Acho que fui muito rude com eles, mas eu queria deixar meu recado e sair fora. Acho que eles continuaram gritando um com o outro por mais de uma hora depois disso. Quando eu subi, Andrew estava ouvindo tudo lá de cima. Eu não culpo o Andrew por querer escutar. Sabe, ele é mais meu pai do que meu próprio pai, apesar de tudo. Ele me deu um abraço, que eu retribuí.

- Eu sei que você não é nada disso – eu disse a ele, tentando amenizar de alguma forma as ofensas que meu pai dissera sobre Andrew.

- Eu também sei. E sei que está na cara que eles ainda se amam. Olhe como brigam.

- Não sei, Andy. Acho que eles só têm pontos de vista diferentes sobre como me criar.

- Kate... Sinto muito, fui eu que contei à sua mãe onde você estava. Você sabe que...

- Eu sei que ela pede pra você me seguir às vezes.

- Eu vi que você tinha ido para o lago, mas passei direto e fui para casa, obviamente não pensei que você ia tentar... – ele não conseguiu terminar a frase.

De leve, com a palma da mão, bati duas vezes no peito dele, em forma de consideração. Agora, eu sabia quem tinha ligado para minha mãe... Só não sabia se deveria agradecê-lo verbalmente, apesar de ele ter chamado pessoas para ajudar, ter salvo a minha vida e tudo o mais. Tudo bem... com meu gesto, ele sabia que eu o perdoava por ter me seguido.

- Boa noite... – eu disse, ele respondeu de igual forma. Segui para o meu quarto, vendo Andrew fazer sua automutilação bisbilhotando os meus pais discutirem.

Finalmente cheguei ao meu quarto. Olhei aquele monte de pôsteres do vocalista do Palante. Finalmente algo valeu a pena por não morrer: pelo menos poderia gastar o resto dos meus dias olhando para aquele colírio. Afinal, se algo bom para olhar poderia existir no mundo, esse algo, ou melhor, esse alguém era o maravilhoso vocalista do Palante: Jayden.

Fechei a porta e, quando me virei novamente para minha cama, lá estavam sentados os dois anjos. Quase que dei um grito, tal minha surpresa ao vê-los ali. Me joguei contra a porta no susto e derrubei o gancho de toalhas vazio atrás dela, que bateu bem no meio da minha cabeça e caiu na minha frente, dando uma volta de meia lua ao rolar no chão.

- Patético – resmungou o anjo negro. Tive vontade de dar um chute no meio da cara dele.

- Daniel! – disse Miah, injuriada, chamando-lhe a atenção.

Eu me levantei e olhei bem para a cara deles.

- Achei que eu só podia ver vocês na minha fase “meio morta” – eu disse, fazendo aspas no ar com os dedos.

- Quem me dera – novamente o anjo negro, Daniel, resmungou.

- Aliás, finalmente eu sei o seu nome. Daniel.

- Oh, não fomos formalmente apresentados! – disse Miah, e eu consegui ver uma coloração tenuamente rubra em sua face. – Kate, meu nome é Elemiah e este é Daniel. Somos seus anjos da guarda.

- Ok, sem fatos novos por enquanto – eu disse, e sentei em meio a eles, com os braços cruzados. Eu já estava ficando impaciente.

- Kate! – disse Miah, no mesmo tom que anteriormente chamara a atenção do anjo negro.

- Olha, eu adoraria conversar com vocês, porém eu tenho que dormir. Amanhã tenho um teste de matemática e se eu for mal... Bom, minha vida já está meio acabada, então sabem como é. Eu gostaria de me trocar e dormir.

- Nem olhe para mim, eu já disse que não gosto de ficar vigiando esses melões aí enquanto você troca de roupa ou toma banho – ele resmungou de novo, o que me fez ficar envergonhada.

- Hey, você me respeite, hein! – exigi, enquanto o fiz virar de costas para meu armário e me levantei para colocar meu pijama.

- Então, bom, deixem isso para lá – sugeriu Elemiah. – Vamos direto ao ponto.

- Rápido, pois já estou terminando de trocar de roupa – finalizei, para eles verem que eu estava falando sério e que eu realmente estava com sono.

- Pois bem, Kate. Temos que te explicar algumas coisas, seremos breves, sabemos que sua alma passou por muita coisa hoje e isso gasta muita energia espiritual. Bem... nós somos da Sociedade dos Anjos.

Eu ri. Aquela frase era muito parecida com o que aquelas pessoas que apareciam na porta de casa pedindo dinheiro falavam.

- A Sociedade dos Anjos é formada por vários tipos de anjos, inclusive os anjos terrenos, que são pessoas recrutadas no mundo real para fazer o serviço. Como você pode ver, cada pessoa tem dois anjos da guarda. Um anjo branco e um anjo negro. O anjo branco cuida da sua saúde, integridade física, mantém a sua vida sadia em geral, enquanto o anjo negro traz a adversidade para a vida do protegido, lhe mostrando o imenso leque de opções que uma pessoa tem durante sua existência na terra.

- E como vocês recrutam os anjos? – eu perguntei, enquanto passava desodorante nas axilas. Naquele momento, o anjo negro já estava olhando para mim novamente, e disse:

- As almas têm uma quantidade certa de planos existenciais a serem vividos na terra. Vocês gostam de chamar isso de encarnação. As almas que estão na última encarnação e nasceram em alguns dias específicos do ano receberam um dom, que fica adormecido na pessoa. Quando esse dom desperta, descobrimos que aquela pessoa é um candidato a se tornar anjo e ficamos de olho no humano. Assim que morre, a pessoa recebe nosso contato e é convidada a tornar-se um anjo. Se a pessoa aceita, nós a deixamos viver por mais algum tempo enquanto a treinamos para se tornar um anjo.

- E se não aceitarem?

- Então deixamos que ela morra – disse Miah, como se, tranquilamente, estivesse apenas dizendo que ia na esquina comprar pão.

- Não acredito! Quer dizer que...

- É, teoricamente você aceitou – disse Daniel.

- N-não! Eu não aceitei nada!

- Sim, deixamos você voltar à vida. Então, você aceitou.

- Mas eu não sabia.

- Sabia sim.

- Claro que não!

- Hey, parem vocês dois – disse Miah, terminando o assunto. – Escutem, você vai virar um anjo e você, Daniel, mantenha-se calado. Agora, Kate, vá dormir. Já descobrimos muita informação por hoje. Boa noite!

Achei que eles iam sumir do quarto, entretanto isso não aconteceu. Eles ficaram olhando para mim enquanto eu olhava para eles, quando percebi que era a deixa para que eu me deitasse.

- Hum, ok – e eu me deitei.

Foi uma situação muito esquisita. Quando me deitei, senti dois corpos se deitando ao meu lado. Eram Mia e Daniel, ela do meu lado direito, ele do meu lado esquerdo, me abraçando.

- Esperem... V-vocês.... Dormem juntos comigo desde que eu sou pequena?

- Ugh, não! – ele disse, fazendo cara de nojo. Já tomei antipatia dele antes, mas agora eu definitivamente o odiava.

- Kate, nós geralmente ficamos observando você de cima do telhado da sua casa, só que hoje a situação é diferente. Você sabe de nós e eles sabem que você sabe, portanto precisamos redobrar a atenção sobre você.

Achei que o “eles” que ela disse se referia aos anjos superiores dela, eu estava entendendo isso como se fosse uma grande hierarquia angelical, e me virei para dormir. Sempre dormi virada para o lado direito, entretanto, nessa noite, eu não conseguia. Só consegui ter sossego quando me virei para o lado esquerdo, embora ao abrir os olhos despistadamente eu via o rosto deles, de olhos bem abertos, me vigiando.

- Vocês podiam pelo menos fingir que não estão me observando... – reclamei, baixinho. – Tenho uma prova de matemática amanhã e...

- Shh, seu irmão está vindo – disse o anjo negro.

Me sentei tão rápido que quase me estrangulei com as cobertas que tinham o peso dos dois anjos sobre ela.

- Depressa, debaixo da cama! Debaixo da cama! – tentei, inutilmente, arrastar Daniel para debaixo da cama.

- Ele não pode nos ver, fique calma – disse Daniel, tranquilamente, e quando meu irmão abriu a porta eu girei a cabeça tão desesperada que meu cabelo deu uma volta esquisita para o outro lado.

A luz do corredor entrou no quarto e eu só consegui balbuciar:

- Sim?

Eu vi o rosto do meu irmão à meia luz e ele deu um sorriso arrastado, rindo do meu cabelo. Eu arrumei os fios e me sentei melhor na cama. Ele parou de rir, pelo menos.

- Vim dizer que, mesmo eu sendo seu meio irmão, me senti triste quando achei que você tinha... Bom, quando achei que você tinha ido embora. Fico feliz que você esteja bem.

Eu não estava acreditando no que eu estava ouvindo. Meu irmão nasceu mais ou menos um ano depois que meus pais se separaram, então minha mãe teve que se casar com Andrew. Não que ela não gostasse do pai do Carl, ela realmente sempre demonstrou gostar muito dele, mas eu lembro vagamente que, na época, ela chorou bastante pela gravidez e pelo casamento. Hoje eu sei muito bem que ela estava chorando porque agora não teria chance nenhuma de voltar com meu pai. Andrew estava certo lá na escada: eles sempre se amaram. Só que eu nunca poderei afirmar isso na frente dele.

Meu irmão é magro, bem bonitinho, os cabelos castanhos e olhos verdes, um tanto popular com as garotas da escola e, apesar de quatro anos mais novo que eu, ele é uns vinte centímetros mais alto. Sempre foi muito sério. Como nossa diferença de idade não é muito grande, eu nunca tive que cuidar dele. As vezes ele é um peste, falando que sou baixinha, mas no geral ele é um irmão distante. Não sei muito sobre ele... Ele também não sabe muito sobre mim. É estranho ele dizer isso agora, porque eu o considerava quase que um desconhecido, só que era um desconhecido que morava dentro de casa e me atazanava na escola.

- Carl... Obrigada. Foi... Gentil de sua parte.

- Ok, só não cause mais problemas... Lembre-se de que temos uma mãe em comum. Não faça ela sofrer.

- Ok, Carl. Não vou. Boa noite.

- Boa noite, Kate.

Assim que ele fechou a porta, eu me deitei novamente e comecei a chorar sem parar. Sem parar mesmo. Foi quando senti braços firmes sobre mim, me abraçando forte, dedos tamborilando nas minhas costas e, depois, tapinhas nelas. Era Daniel me abraçando e me consolando. Minhas unhas fincaram como garras no colete preto que ele usava e afundei meus olhos marejados ali, no peito dele, até que dormi sem nem perceber que só consegui apagar porque ele me embalava...

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >

Capítulos relacionados

Último capítulo