|3| O LAMPEJO QUE APARECE

  O  VESTIDO ERA BONITO.

Brilhava como se tivesse sido feito com pedaços do Sol. Eu me sentia como a estrela mais brilhante da constelação.

— Por que dourado? — perguntei a Arbo, parada diante do espelho de corpo inteiro enquanto ela escovava meus cabelos sem graça para trás das orelhas, prendendo alguns grampos na parte superior do lado direito de minha cabeça, obrigando os cachos á caírem pelo ombro esquerdo e deixando meu rosto completamente limpo.

— É a cor das festividades. É falta de educação usar roupas escuras em Cerimônias. — ela explicou — O escuro representa a morte, é o que usamos para matar. Mas hoje, vamos apenas celebrar. Dourado é cor do brilho e do furor das estrelas. E elas brilham quando estão felizes, é o que dizem.

O vestido descia colado até os pés, como se tivesse sido moldado e costurado em meu corpo. Pequenas contas douradas dependuradas em longos fios de um material que não pude identificar também desciam num padrão circular, enrodilhando todo meu corpo dos seios à baixo. A única coisa que estranhei, foi a falta do sutiã. O modelo era criado com um bojo próprio para seu uso sem eles. Quando interpelei Abro, ela explicou que ele havia sido desenhado pelos Maoris, e a tradição permanecia.

Um manto em tule de uma cor semelhante ao vinho fosco e a cor de meu cabelo também descia preso aos ombros, como se fossem duas asas abertas. A gargantilha em tons de dourado, prata e azul celeste encobria todo meu pescoço, deixando apenas o triskle a mostra. Mas o que me maravilhou, foi um adereço parecido com uma coroa sem pedras nem pontas, simples, de forma circular posta em minha cabeça. De suas extensões, pequenos cordões de prata desciam por cima de meu cabelo, dando a volta por baixo dele e voltando a se interligar ao metal reluzente do outro lado.

Eu meio que me parecia com uma princesa egípcia de um filme antigo.

Estava tão deslumbrada com minha própria imagem, que mal percebi quando verbalizei os pensamentos.

Arbo riu.

— E quem você acha que inspirou os egípcios á se vestirem assim na antiguidade? E tem mais uma coisa... — ela disse, arrebatando outra coisa de cima do criado mudo ao lado da cama e voltando para mim novamente.

Ele me mostrou quatro braceletes dourados através do reflexo do espelho.

— O que é isso?

— É costume honrar nossos brasões nas cerimônias. Estes braceletes estão adornados com o brasão da família Hatthwey. — ela disse antes de fechar dois deles em meus pulsos, e os outros dois na parte superior de meus braços, como eu vira em Eron no julgamento.

A meia lua cercada pelas estrelas cadentes se sobrepunha em alto relevo sobre o ouro reluzente, trazendo lembranças que não vivi, que pareciam se desprender de lacunas que não existiam em minhas memórias.

— Onde conseguiu esses brasões?

Arbo deu de ombros, considerando sobre me contar ou não.

— Sua tia os tinha guardados. Eles pertenceram a... Hera.

Engoli em seco, ensaiando uma careta ao expelir a próxima pergunta.

— E esse vestido? A quem pertenceu?

Dessa vez, a cor deixou o rosto de Arbo por alguns segundos, suas narinas se inflando ligeiramente, os céus se fechando em nuvens escuras dentro de seus olhos tempestuosos.

— Meu pai mandou tecer esse vestido especialmente para a Invocação de Zoe. Ela o usaria no dia em que completasse o treinamento e ganhasse sua Marca da Promessa. — ela explicou, a voz parecendo se enroscar nas paredes de sua garganta enquanto saia, pouco antes de seus olhos mirarem os meus no reflexo do espelho — Não se preocupe. Ela nunca o usou.

O “sinto muito” se enroscou em minha garganta, se negando a sair.

Arbo não era o tipo de garota que se reconfortava com palavras desse calibre. Mas ainda assim, não consegui me desprender do desconforto que acometia todos os meus sentidos ao tocar naquele assunto frágil que era sua irmã.

— Você sente falta dela.

Não era uma pergunta.

Pela primeira vez desde que me lembrava, Arbo não retesou o assunto. Ao invés disso, soltou um suspiro profundo, caindo na ponta do colchão de lençol repuxado e continuando a me encarar de forma seria através do reflexo do espelho. Seus olhos levemente repuxados lhe dando um ar mais sério do que seria aconselhável propor.

— Sabe, eu te odeio. — ela disse de repente — E também te amo. Você tem uma mania irritante de entender coisas em mim que outras pessoas não entendem, e eu odeio o quanto isso está mexendo comigo.

Repeli um murmúrio, não completamente certa de que aquilo havia sido um elogio. As coisas eram estranhas com Arbo, mas eram boas.

Seus olhos azuis se desviaram em direção ao nada a sua frente.

— Ela costumava me fazer ser uma pessoa melhor... — Ela disse de repente — Tínhamos planos para um futuro juntas. Em nosso tempo livre, combinávamos táticas de batalha, como iríamos querer nossa Morada e como queríamos que nossos namorados se parecessem. — seus olhos me encontraram pensativos por um instante, se desviando rapidamente ao pularem para o pensamento seguinte. — É estranho como vocês duas têm gostos absurdamente parecidos. Chega a ser besta.

Ensaiei uma careta.

— Acho que não vou querer saber o que isso significa... certo?

Ela deu de ombros.

— Provavelmente. Eu... — ela fez uma pausa significativa, procurando pontos pelo quarto em que firmar o olhar, parecendo desconfortável dentro do próprio corpo enquanto procurava as palavras certas á expelir — Isso vai soar estranho, mas... eu ... gostaria de ter te conhecido antes.

Surpresos, meus olhos encontraram o caminho de seu olhar através do reflexo, não completamente certa do que aquilo significava.

— Quero dizer. Acho que se sua tia não tivesse feito nada do que fez, você poderia ter crescido em Miriad. Poderíamos ter crescido juntas, e a Invocação de Zoe para as Trevas poderia ter me ferido de forma mais leve. Você sabe, as feridas poderiam ter não deixado cicatrizes.

Por um momento, meus pensamentos voaram em direção ás possibilidades que aquele pequeno pensamento representava. Se tivesse crescido em Miriad, como uma Falange de verdade, o que isso teria mudado em mim?

— Esqueça... — Arbo disse de repente, saltando da cama em sua típica mania vendaval — Eu só... pensei alto. Isso é prova que meus pensamentos nem sempre são os mais inteligentes. Quero dizer, só na maioria das vezes, quem sabe...

Sorrio para o seu reflexo. Mas o sorriso é torto e sem graça. Quase a sombra de um.

— Eu também queria ter te conhecido antes.

   — Já pedi para calarem a droga da boca! — Arbo chiou pela milésima vez para as duas ruivinhas de dez anos que nos perseguiam pelas escadarias frontais da Catedral Elementar, que correram em nossa direção quão logo descemos da carruagem.

— Ainda não acredito que você tem duas irmãs gêmeas...

— Duas pestes gêmeas, você quer dizer. E não “pestes negras”, mas “pestes vermelhas”. Não ia achar tão legal se você estivesse em meu lugar, acredite.

— Ter duas irmãzinhas é uma dádiva divina, Arbolence... — tia Peg a corrigiu de seu modo familiar, enfiada em seu conjunto tradicional de blazer e saia que era usado apenas em momentos especiais — Nunca as entregue ao demônio sem um motivo.

Arbo rolou os olhos.

— Acontece que posso lhe dar mais que apenas um motivo...

As centenas de Falanges que nos rodeavam usavam roupas parecidas. Ilínea e Manson saíram antes de todos por alguma razão em especial, e Edra andava perdida por Miriad desde que voltei á mansão Pinnbolrg. Assim como Dublemore. A carruagem incumbida de nos trazer era reluzente, em tons de cobre e marfim, e os cavalos brancos possuíam crinas escuras e gigantescos olhos turquesa.

Arbo se parecia com uma espécie celestial de deusa maior, trajando um vestido marfim adornado com símbolos dourados, bordado em fios de ouro por toda a extensão lisa do vestido, que se dobrava sensualmente sobre suas curvas sem lhe dar um aspecto vulgar, mas provocante. A fenda que se abria na perna direita quase alcançava a parte superior da coxa, lhe dando um ar ainda mais sobrenatural. Seus cabelos ruivos estavam amarrados em uma trança desfiada do lado direito do pescoço, e uma tiara dourada de onde vários pingentes reluzentes contornados com pequenos rubis vermelhos enfeitavam os fios, posta no alto de sua cabeça. Os quatro braceletes exibindo as folhas originadas do brasão da família Kendrick orgulhosamente postos em seus braços e pulsos.

Quando adentremos Catedral a dentro, o clima festivo nos recepcionou, e mesmo em e meio á multidão de pessoas, senti uma sensação diferente e quente fluindo verticalmente de algum lugar em particular, vertendo pelas paredes de meu coração em um acesso súbito de calor.

Pensei que nunca chegaria, Emunah... — as palavras arrepiaram minha nuca ao soarem em minha cabeça.

Onde você está?

Aqui em baixo... — ele sussurrou — Esperando você. É como se eu sempre tivesse estado aqui.

As brasas acesas chiaram em meu peito, descendo em direção ao estômago.

Tal qual Arbo havia explicado, as comemorações aconteciam no subterrâneo da Catedral, onde estava concentrada toda a força da terra. O mesmo local onde as Moradas eram construídas no mundo terreno.

Eu... estou chegando.

E eu estou ficando maluco apenas ao pensar nisso.

Sorri como uma idiota, disfarçando rapidamente quando tia Peg notou o euforismo estampado em todas as minhas feições. Engoli em seco quando minha tia estreitou seus olhos terrosos em minha direção, retorcendo a boca em uma careta desagradável. Lhe rendi um leve sorriso caloroso, e ela chacoalhou a cabeça.

— Você ainda vai me deixar com os cabelos brancos, garotinha...

— Seus cabelos já são brancos, tia...

— Exatamente. Sabe o que acontece depois dos cabelos brancos?

Meu sorriso sumiu.

— Isso não foi engraçado.

— Não era para ser.

As irmãs gêmeas de Arbo começaram a gritar atrás de nós, fazendo perguntas estranhas que Arbo fazia questão de ignorar com um revirar de olhos.

— Elas são sempre assim? — perguntei, a seguindo em direção ás escadarias que nos levariam para baixo.

— Não. São bem piores. — ela resmungou — Não deixe que isso te suba á cabeça, mas elas meio que te veneram. Aguente a puxação de saco durante o restante da Cerimônia ou morra tentando.

As escadarias se abriam para um amplo salão pintado de dourado e terracota. Um lustre no teto maior do que qualquer lustre que eu já havia visto brilhava em milhares de diamantes pequenos á cima de nossas cabeças, e no centro, uma balança de cristal reluzia lapidada por entre o brilho destoante das pedras preciosas. As paredes eram recobertas por tapeçarias enormes, recriando cenas cheias de símbolos envolvendo guerras, balanças pesando almas, Têmis despencando dos céus, e mesas cheias de frutas que eu não conhecia. No fim do enorme salão, cinco Tronos se erguiam á baixo de uma grande escultura de um punho fechado, onde um grande rubi se incrustava em cada dedo.

As mulheres se pareciam com deusas vestidas de forma quase egípcia, e semelhantemente, os homens vestiam apenas uma calça recoberta com alguns adornos dourados em metal. Os troncos nus me deixaram confusa por alguns momentos. Todos, usavam apenas um manto de qualquer cor por cima dos ombros, e por um momento, a quantidade absurda se símbolos que eu não conhecia me atingiu como uma maré de sensações controversas.

— Por que os homens se vestem assim? — perguntei a Arbo em dado momento.

— O tronco nu evidencia nosso maior orgulho: os símbolos. Quanto mais símbolos, mas respeitado você é. A cor do manto varia de acordo com os gostos de cada um.

— Oh... eu...

Parei no meio da frase quando um manto em especial lá em baixo me chamou a atenção, como se o salão tivesse obscurecido e um holofote brilhante tivesse sido ligado naquela direção. Era o único manto dourado na multidão, unido no peito por uma corrente de bronze. Os ombros largos de seu portador estavam inclinados, seu rosto virado em outra direção, e os cabelos escuros jogados de forma sensual de um lado da cabeça. Duas argolas da mesma cor refletiam a luz que baixava do grande lustre, enviando seixos brilhantes em minha direção. Os braceletes exibiam um lobo com uma aljava na boca, e as calças escuras traziam um cinto âmbar trabalhado em ouro puro, o contraste serpenteando em cores quentes com o bronzeado dos músculos poderosos que o possuíam. Um cinto escuro de couro em forma de X cortava seu peito, provavelmente se fechando nas costas e exibindo mais uma recriação de seu brasão na junção das duas linhas. No mesmo instante que meus olhos descerem até ele, os seus subiram até mim, como que atraídos pela mesma força magnética.

Dourados como fogo, como se as chamas crepitassem em ondas vindas de seu interior. O verde havia de desintegrado, derretido em meio ao ouro líquido que circulava suas íris.

Seus olhos analisaram cada pedaço de meu corpo enquanto e obrigava minhas pernas á continuarem descendo os degraus sem pisar em falso. Ele piscou, visivelmente aturdido enquanto milhares de pensamentos pareciam se passar por de trás do ouro derretido em seu olhar.

Eron se virou completamente em minha direção, o rosto sério enquanto eu devolvia seu olhar.

Emunah... — ele sussurrou, e por um momento, deixou que a palavra preenchesse o vazio que nos separava. — ... você só pode estar tentando acabar comigo...

Meu peito se inflou sob o peso entorpecente de seus olhos.

Talvez eu esteja...

Seus olhos se estreitaram mais.

Talvez você possa acabar se arrependendo.

Eu não costumo me arrepender, garoto cataclista.

Seu maxilar se tencionou, seu rosto se inclinando ligeiramente enquanto ele erguia uma sobrancelha escura, alguns fios de cabelo caindo por cima dos olhos dourados.

Ev... já ouviu falar sobre o que acontece quando as pessoas brincam com fogo?

É... acho que devo ter ouvido algo semelhante uma vez.

Ele voltou a endireitar a cabeça, mordendo o lábio inferior e me devorando silenciosamente com o olhar, como se eu fosse o último pedaço de morango banhado em chocolate da face da terra.

Se eu não te beijar agora, sinto que posso explodir.

Cuidado. Minha tia está logo atrás de mim.

Ele sorriu de canto, parte da tensão aparente em sua voz se derretendo no calor de seu sorriso.

Nem todas as forças do inferno irão te ajudar a escapar de mim hoje, Emunah.

Minha tia pode ser pior que as forças do inferno.

Isso é o que vamos ver... — ele disse, se movendo graciosamente e passando a caminhar em minha direção, sua figura lembrando muito á um felino, seus passos atraindo os ombros para baixo enquanto ele se aproximava. O manto voando atrás de si como duas asas brilhantes.

Eron! Estou falando sério!

Eu também estou, Emunah...

O assombro mudo tomou forma na boca de meu estômago, e Arbo encurvou as sobrancelhas de meu lado.

— Ou esse garoto simplesmente adora confusão, ou tem um instinto primitivo muito forte de morrer. — ela piscou por alguns momentos, erguendo as sobrancelhas em tom genuíno de surpresa. — Admita, Eve. Você tem pensamentos sujos com ele.

Você tem. — ele respondeu por mim ­— Não precisa ficar vermelha. Nesse exato momento, meus próprios pensamentos também não são dos mais honestos...

Eron, pare aí mesmo!

Ele não parou.

Eron!!

Demorou exatamente o tempo que achei que demoraria para que tia Peg detectasse sua presença. Enviando calafrios por todas as partes de meu corpo, que chegavam a se infiltrar até pelas solas dos pés, Eron me alcançou, e me pegando de surpresa, se curvou em uma vênia entre graciosa e sexy, e tomou minha mão, beijando suas costas. Seus lábios quentes enviando fisgadas dolorosas ao logo de meu braço.

— Boa noite, Emunah.

Abobalhada, não consegui pensar em nada para dizer, ao mesmo tempo em que minha tia o encarava de maneira tangente e ao mesmo tempo neutra. Eu já flagrara em outras vezes tia Peg o olhando daquela forma austera que se encara uma pessoa quando ela se parece com Eron. Com incredulidade. Perplexidade. Uma espécie de adoração muda.

E este era um desses momentos.

Até minha tia não era a prova dos encantos que o garoto cataclista vertia espontaneamente nos lugares nos quais estava, assumindo um pose angelical enquanto sorria de maneira dócil.

— Saudações, Sra.Hatthwey. — ele baixou o queixo, fechando o punho direito em cima de seu coração — Eu gostaria de ter o prazer da companhia de sua sobrinha esta noite.

Boquiaberta, não consegui reter a careta de espasmo quando tia Peg sibilou por algum tempo, como se tentasse se recordar de algo. Ela piscou, desviando o olhar e chacoalhando a cabeça. Mas não sem não me enviar um olhar levemente recriminador ao mesmo tempo.

— Cuide bem dela, Sr. Stellar. Ou o inferno vai ser o paraíso comparado ao que vou fazer com você. — ela disse antes de se virar e seguir seu caminho, puxando uma Arbo perplexa com ela.

Eron sorriu ao meu lado quando ambas se afastaram, me oferecendo um braço e um olhar que claramente dizia “viu só”?

Aceitei seu braço, o prendendo ao meu enquanto lhe concedia um sorriso que era preparado apenas para ele.

— Quando você quer, você bem se parece com um anjo, Sr. Stellar.

Ele sorriu maliciosamente enquanto me aproximava mais de si, seus olhos percorrendo um caminho insinuante até o decote de meu vestido.

— Mas quando quero, bem me assemelho a um demônio, Srta. Hatthwey. Um demônio irracional que adora despedaçar vestidos bonitos.

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