Ônix - Prelúdios Lúdicos volume 2
Ônix - Prelúdios Lúdicos volume 2
Por: William Morais
A primeira

 (Uma aventura pirata completa em 1 capítulo!)

                                                                  *

        – E para concluir – falo, após a psicóloga terminar de fazer anotações sobre o que conversamos até ali. –: É melhor arriscar tudo, do que não ter tudo para arriscar. E pra ser arriscado, basta ter, porque, seja o que for, podemos perder a qualquer momento. Mas se optarmos pelo nada, nada seremos. E não acho que estamos aqui para não sermos.

        Ela olha para mim e diz:

        – Interessante, William. Mas como você chegou a essa conclusão?

        Respiro fundo e respondo:

        – Vivendo. Seria a minha resposta se eu precisasse resumir muito.

        – E se pudesse resumir um pouco menos? – Ela força um tanto mais, nunca impondo.  

        – Eu diria que é um processo – colaboro com ela, porque no fim das contas é colaborar comigo mesmo. – Viver me ensina, mas escrever me ajuda a refletir sobre o que percebo. Coloco na fala de algum personagem alguma percepção captada do mundo. Uma joia bruta. E para testar a teoria, adiciono argumentos contrários, que coloco nas falas de outros personagens. Os conflitos servem para lapidar a percepção e assim chego a uma conclusão.

        Ela continua a me olhar. Sabe que, em verdade, gosto de desenhar minhas ideias com muitos traços e continuo:

        – É como se eu colocasse algo da vida real na fantasia, para testar, e a fantasia me devolvesse esse algo lapidado, para que eu possa usar na vida real.

        Ela não anota nada. Passa o braço direito, com a mão que segura a caneta, sobre o braço esquerdo com a mão que segura o caderno e agora os dois braços estão cruzados como as pernas debaixo deles. A psicóloga é bem elegante e percebe que estou focado nela. Para que eu mude o foco para mim, ela pergunta:

        – Pode me dar um exemplo desses conflitos presentes em sua escrita?

        Me acomodo no sofá grande, colocando minhas pernas para cima e me recostando no apoio de braço mais próximo a mim, e digo:

        – Para isso, imagine um futuro no qual toda a história passada da humanidade foi enterrada, no qual qualquer vestígio da extinta era tecnológica é considerado um tesouro secreto e proibido. E como os maiores caçadores de tesouros são os piratas, um deles, Ônix Pedra-Negra, seguia acumulando conhecimento proibido e se inspirando em heróis do velho tempo para, de certa forma, salvar o futuro. E quando ele não ia de encontro aos desafios, os desafios iam de encontro a ele. Como naquele dia, na taverna do coelho caolho, na qual ele bebia com seu marujo, chamado de caramujo, enquanto jogavam tempo e conversa fora.

                                                          *

        A taverna não estava muita cheia. Havia duas outras mesas ocupadas e alguns homens e mulheres sentados ante o balcão, além de Ônix e Caramujo, sentados à mesa grande.

        – E foi por isso que o coitado do nosso camarada, Suvaquinho pelado, nos deixou – Ônix falou, após dar um bom gole em sua bebida e colocar a caneca sobre a grande ele e seu marujo, que vestia roupa quase toda negra, como seu capitão. Mas trajava um colete marrom e tinha um pano de mesma cor amarrado à cintura. Os sapatos eram de um tom de terroso também, embora mais claros ainda. Tinha cabelo curto e a barba era tão rala que praticamente não existia. Como ele havia pego a caneca, enquanto o capitão largava a dele, Ônix continuou para que Caramujo pudesse beber: – E mais triste do que isso ter acontecido com ele, só se tivesse acontecido comigo. 

        O marujo respondeu, assim que limpou muito da bebida que escapou da boca, usando a manga da camisa:

        – Isso é verdade. Que bom que não foi, capitão, porque ser um dos seus marujos é o que me impede de morrer de fome. – E tentando saber mais sobre o capitão, que já havia bebido bastante e talvez estivesse mais inclinado a se abrir, perguntou: – E por falar em coisa ruim, me diz, capitão, qual foi a coisa mais triste que te aconteceu até hoje?

        – Não ter acontecido a coisa mais feliz que poderia ter me acontecido.

        – E qual coisa é essa?

        – E de que adianta eu te contar?

        – Ué, vai que eu possa ajudar.

        – Duvido O capitão bufou um riso. Mas já ajuda se você pagar a conta hoje.

        – Ixi... Estou bebendo porque achei que você ia pagar.

        Foi exatamente a deixa que uma garota, sentada no balcão atrás deles, esperava para se aproximar. Virou-se e parou ao lado de Caramujo, antes de dizer: 

        – Não se preocupem, rapazes. Eu pago a conta.

        Ela aparentava vinte e poucos anos. O cabelo estava preso em três tranças longas. Duas emolduravam o rosto e uma mais cheia descia pelas costas.  Vestia uma blusa cor de vinho, de gola alta, mas com mangas curtas, e uma saia verde musgo, bastante curta. Sobre a coxa direita havia uma adaga numa bainha curta presa a uma faixa de coura presa com fivela. Usava luvas que deixavam as pontas dos dedos expostas e a bota de couro marrom ia até os joelhos, cobertos por joelheiras macias.

        O marujo sequer perdeu tempo pensando numa resposta, ao imaginar que jamais haveria objeção à oferta da mulher e falou:

        – Ué, tá bom...

        Mas Ônix estreitou os olhos num instante depois ergueu uma das sobrancelhas, ao dizer:

        – Não se precipite, caramujo. Eu decido se está bom.

        A mulher ignorou a fala do capitão, se sentou na cadeira vaga e perguntou ao marujo:

        – Porque você é chamado assim?

        – O capitão disse que é porque eu sou um cara e sou marujo.

        – E o pensamento dele, no geral, é lento – Ônix completou, sorrindo.

        – Essa parte até hoje eu não entendi – Caramujo falou e mulher arregalou os olhos por um instante. O marujo também não entendeu a reação dela, mas se defendeu, por achar que devia, dizendo: – Mas eu tenho uma ótima memória.

        Ônix riu novamente e falou:

        – Se tivesse, se lembraria que não tem. Mas se quiser provar o contrário, nos dê um exemplo.

        – De quê? – Caramujo perguntou.

        A mulher o encarou, agora franzindo a testa e fisgando um dos cantos da boca, enquanto o capitão sacudia a cabeça levemente e foi aí que o marujo resgatou a conversa, que quase resvalou para fundo de sua cachola, e disse:

        – Ah! Bem... me lembro de... de... me lembro de você dizendo que eu tenho péssima memória e me pedindo um exemplo.

        A cara esforço de Caramujo mudou para a de um vitorioso. E seu capitão falou, num tom que deixava claro não ser algo muito bom:

        – E é o máximo que podemos esperar de você.

        Caramujo se sentiu ofendido e estufou o peito magro, ao dizer:

        – Ah! Eu tenho uma ótima memória sim. Lembro o nome que dei ao primeiro bonequinho de madeira que eu ganhei na vida. Eu o chamava de madeirinha.

        E o capitou segurou o riso, ao dizer:

        – O que não é muito impressionante, já que isso aconteceu semana passada.  Por isso, se quer nos convencer, nos dê outro exemplo.

        – Eu disse que tinha uma ótima memória. Não duas. – O marujo ergueu as mãos e as sobrancelhas.

        Ônix voltou a mirar a mulher sentada à mesa deles e falou:

        – A questão importante aqui é: porque você, garota, pagaria nossa conta?

        – Estou considerando fazer parte da sua tripulação.

        Ônix arregalou os olhos e deixou a mão próxima da bainha da espada, ao perguntar:

        – Você sabe quem sou eu?

        – Se eu não soubesse, não estaria considerando – ela falou, sorrindo de forma amigável e aparentemente sincera.

        – Entendi – Ônix relaxou. Afinal, seus feitos ganhavam cada vez mais fama. – Está investindo um pouco de dinheiro, em um agrado, afim de ter chance de conseguir mais dinheiro ainda ao trabalhar para mim. E o quanto é o suficiente para você? Porque enquanto para muitos, pouco é muito e para uns poucos, muito é pouco. De que tipo você?

        – Eu quero é justiça – ela firmou a voz.

        – Eu não luto por justiça. – Ônix fez uma careta de desdém. – Eu luto por mim.

        – Contra os representantes da lei – a jovem mulher afirmou.

        – Apenas porque meus interesses são prejudicados por tais governantes – o capitão explicou.

        – E eles são injustos – a mulher falou e insinuou: – Logo...

        Ônix abriu a boca para responder, mas não achou uma resposta e a fechou, porque precisaria matutar um tanto mais. A afirmação dela fazia sentido.

        Mas a mulher não o deixou elaborar uma resposta e exigiu outra:

        – Você luta por igualdade, não é?

        – Não mesmo! – Ônix se fez de ofendido. – Luto por méritos! Quem está em qualquer comando devia merecer e não apenas nascer em berço de ouro. Mas não tenho nada contra alguém ter mais do que outro, seja do que for, se tiver feito por merecer.

        – Méritos... – a jovem mulher saboreou a palavra e lhe pareceu agradável. – É mais justo ainda.

        – Olha, se quer entrar para minha tripulação, você vai precisar dar provas de que merece – Ônix impôs.

        – Eu disse que estava considerando. Não terminei a minha entrevista.

        Pedra-Negra arregalou os olhos e bufou um riso, antes de dizer:

      – Quer fazer parecer que eu estou tentando te recrutar?

        – Você devia estar tentando, capitão – Caramujo se intrometeu. – Uma moça bacana dessa. Que quer pagar a conta.

        – E você devia escutar seu marujo – A mulher falou, após acenar a cabeça ao marujo, em agradecimento, e depois se voltou a olhar para o capitão.

        Ônix sacudiu a cabeça. Não em negação à afirmação dela, mas sim por ela não conhecer o Caramujo como ele. Para remediar isso, falou:

        – Caramujo, meu caro, diga para a moça aquele seu pensamento, do qual tanto se orgulha e que, segundo você mesmo, foi o mais inteligente que já teve e provavelmente terá na vida.

        – Essa é fácil! – ele animou-se e falou: – Mesmo um peido bem peidado é um peido de merda!

        O marujou riu, de satisfação. E riu. Apenas ele. Ônix e a mulher estavam paralisados. O capitão atento à reação da mulher que não se movia. Olhava um tanto incrédula e consternada. E Pedra-Negra perguntou para ela, quando o risinho de Caramujo definhou:

        – Ainda acha que devo escutá-lo?

        – Errado ele não está – a jovem mulher se atreveu a dizer.

        Mas Ônix retomou o assunto, dizendo:

        – Mas seja como for, a decisão é minha.

        – E minha – a mulher se impôs, mas com tanta segurança de estar certa, que não precisava ser agressiva. E não era. Seus lábios estavam sempre sorrindo, ou pareciam estar. E com essa leveza, continuou: – Antes, me diga algo relevante para mim: Acha que a verdade deve prevalecer?

        – Que verdade?! – Ônix se espantou.

        – A verdade, seja ela qual for, em qualquer questão.

        – Que verdade? – Ônix replicou o tom de espanto.

        A mulher entendeu e argumentou:

        – Ela pode ser pouco usada, mas existe.

        Ônix fez careta e falou:

        – Se você acha que isso é verdade, já começou sendo enganada por si mesma, porque a verdade não existe.

        Ao contrário do pirata, a mulher ampliou o sorriso e falou:

        – Se a verdade não existe, sua afirmação é mentira e assim a verdade volta a existir.

        O capitão novamente abriu a boca para argumentar e novamente não saiu som. Não havia argumento de imediato e, enquanto matutava, foi a voz do Caramujo que rompeu o silêncio, recém estabelecido:

        – Uma vez sonhei que estava acordado... mijei nas calças...

        Ônix e a mulher olharam para o marujo em silêncio, por um breve instante, antes de ela dizer ao capitão:

        – Porque defende a mentira, se é o que os governantes fazem?

        Ônix Pedra-Negra se animou, pois para isso ele tinha resposta, e a deu, como se fosse óbvio:

        – Eu defendo a mentira porque eles tentam transformá-la em verdade. A mentira, quando encarada como tal, não é o problema... e na maioria dos casos é até a solução. Não confunda as coisas e não tente me manipular. É você quem precisa provar que merece ser aceita como uma das minhas. Para isso, precisa ser inteligente e boa de luta.

        Uma das sobrancelhas da mulher deu sinal de respeitar o raciocínio sobre tratar a mentira como verdade e restou achar outra brecha e a achou, dizendo:

        – Se é preciso provar ser inteligente para entrar para sua tripulação, porque o Caramujo faz parte?

        – Ué, não entendi... – O marujo coçou a cabeça, pensativo.

        E a mulher abriu os braços como se nada mais precisasse ser dito. E não precisava. Ônix reconheceu a astúcia dela, dizendo:

–Tá. Agora só falta provar ser boa de luta. Bora lá pra fora.

                                                  *

        Ônix parou no beco atrás da Taverna do Coelho Caolho e a mulher e o marujo fizeram o mesmo. Ele colocou a espada no chão e deu alguns passos, se afastando da mulher. Caramujo o seguiu e parou atrás dele.

        O capitão indicou a espada com a ponta do queixo e a mulher disse:

        – Se você vai começar sem usar uma arma, eu também vou. Mas não te aconselho a me enfrentar desarmado.

        – Não estou desarmado – Ônix falou. – Meu corpo e a minha mente são minhas principais armas numa luta que começa antes de um soco ou chute ser dado, ou a espada ser sacada. E a melhor forma de fazer isso é começar abalando o estado de espírito de um oponente. Provocações. E eu sei que você sabe disso.

        O olhar do capitão mirou abaixo da linha do quadril da mulher e um breve sorriso foi percebido pela mulher. Nem um pouco consternada, ela falou:

        – Ah! Você notou?

        – Uma saia curta é tão evidente quanto... funcional...

         Ônix inclinou a cabeça por um instante, mas a sacudiu, como se livrasse de uma magia hipnótica e voltou a mirar a mulher nos olhos.

        Ela segurou as pontas da saia e as levantou um pouco, para evidente desconforto do capitão, e falou, ciente de que o desconforto dele era por se manter focado no que precisava:

        – Não é meu ponto forte, mas é o ponto fraco de muitos homens.

Para participar da conversa, Caramujo revelou:

        – Uma vez eu baixei as calças no meio da luta contra um cara e gritei feito uma lhama parindo. O cara ficou paralisado por um segundo, enquanto eu balançava a benga no vento e continuava a gritar. E eu usei essa paralisia dele para chutar a cara do miserável. Mas eu tinha baixado as calças e aí eu caí de fuça no chão e apanhei muito. Depois disso desisti de tentar pensar em planos e vantagens estratégicas. É tudo muito complicado.

        Ônix sacudiu a cabeça minimamente para a mulher, dizendo, em silêncio, que era melhor não comentar e ela tratou de focar no assunto que era o tamanho de sua saia que, em combate, certamente mostraria ainda mais, e disse: 

        – Qualquer babaca que tiver uma fração de segundo roubada durante uma luta, por causa do que está vendo, merece pagar o preço.

        –  Como eu provavelmente pagarei – Ônix pigarreou e admitiu. Porque embora seja pequeno, é um ponto fraco que admito ter.  

        Caramujo estava de olhos arregalados. O sorriso besta e os olhos direcionados para o quadril da mulher enfatizaram a intenção dele, declarada nas palavras:

        – E eu estou aqui apenas para ver. Sorte minha. Porque você ... – ele parou de olhar para a mulher e voltou-se para Ônix, perguntando: – Como você disse que tínhamos que falar pra não falar para uma mulher que ela é gostosa, capitão?

        Ônix torceu os lábios e olhou para a mulher que disse:

        – É, capitão, diz aí o que eles devem dizer:

        – O que eu expliquei para eles é que a tradução da palavra... dita pelo meu marujo...

        – Gostosa, né? – Caramujo perguntou.

        E o capitão apenas apontou para o marujo, que ficou satisfeito em ter uma resposta certa para algo. Depois disso, Ônix continuou:

        –  A tradução da palavra, desdobrando o sentimento de forma correta, é dizer que – o capitão falou, mirando os olhos de mulher: – Sua formosura enaltece minh’alma a ponto de eu sentir aqui dentro um deslumbre em forma de vento a me levar para além de mim mesmo, que certamente deixou de estar satisfeito em ser alguém comumente tido como suficiente para si mesmo e, por isso, peço para não se ofender com o meu olhar que tenta exasperadamente gravar em minha mente, a beleza do seu ser, corpo e espírito, tão notórios que sua presença me abala tanto quanto me dá a certeza de que e todo esse anseio essa sensação de admiração em alguma parte de mim, é para eu me lembrar, quando eu não estiver vendo seu sorriso e escutando o som dele, que o motivo de a vida ser pesada e feia, em tantos aspectos, deve ser para equilibrar com a sua existência neste mundo.

            A mulher tentou continuar olhando nos olhos do pirata que a encarava, mas acabou desviando o olhar e agradeceu em seu íntimo por Caramujo ter dito:

            – Sem chance de eu guardar essas palavras. Não é mais fácil dizer gostosa?

            E a mulher falou:

– Não é mais fácil não dizer nada?

            – É pra eu ficar calado ou responder isso? – Caramujo perguntou, de fato sem saber o que fazer.

        – Era pra ter ficado calado – a mulher falou, sem piedade. – Mas como não consegue, vou focar no seu capitão e apenas te ignorar.

        – Nossa, que triste. Que bom que pelo menos meu capitão jamais faria isso comigo. Não é capitão?

        Ônix não respondeu. Caramujo fez uma careta. Socou o ar e se encostou na parede da madeira da parte de trás da Taverna do Coelho caolho. Pelo menos veria o espetáculo. Certamente focado da linha da cintura para baixo da oponente.

        A mulher inclinou o quadril e apoiou a mão esquerda nele, dizendo a Ônix, que teve seu olhar desviado para o pequeno movimento dela por um breve instante:

        – A única coisa que me preocupa é a possibilidade de você já estar dando desculpas para quando perder.

        – Não se preocupe – o capitão garantiu. – Seja como for eu tenho absoluta certeza de que não vou perder.

        – E essa é a sua provocação?

        – Não. Assim como sua saia curta não deve ser, de fato, a sua. Por isso use sua mente para tentar me abalar meu estado de espírito.

        – E você o responderá tentando fazer o mesmo?

        Ônix riu e falou:

        – Com a diferença de que não vou apenas tentar. Então... mostre-me do que é capaz.

        A mulher estreitou os olhos. Pensou por um instante e falou:

        – Você acredita que tudo é uma grande mentira porque assim pode dizer que não perdeu de verdade.

        Uma das sobrancelhas de Ônix se ergueu, por reconhecer que era um começo. Encorajada, ela continuou:

        – E assim sendo, você nunca vai se empenhar plenamente. E se não pode encarar a possibilidade de perder, de verdade, não pode me encarar.

          Ônix sorriu e respondeu sem pestanejar:

        – Eu prefiro fingir que não sou plenamente capaz de encarar um desafio, de verdade, do que fingir que sou, como você está fazendo.

            O sorriso da mulher reduziu enquanto o de Ônix era ampliado e ele arrematou:

        – Vou enfiar sua cara no chão e depois você me diz como é estar debaixo da sola de alguém que sequer está se empenhando por completo.

        Ela ficou séria e, considerando as palavras dele, seria terrível perder. Aproveitando essa fração de insegurança da mulher, Ônix avançou a perna esquerda, girando sobre ela para lançar um chute que almejava atingir o calcanhar direito dele no rosto dela. A mulher, no entanto, tinha excelentes reflexos e segurou o pé do pirata com a mão direita. Pisou com seu pé esquerdo atrás do joelho, também canhoto dele, e sem ter escolha, o pirata caiu de joelhos.

        A mulher não largou o pé que segurava com a destra mão e enfiou um soco com a canhota atrás do joelho da perna direita dele, mantida erguida no ar. Ônix sentiu;

        A mulher flexionou as pernas enquanto se apoiava no quadril dele, tratando de apertar pontos de pressão que o deixariam paralisado por um breve instante, mas o suficiente para que ela pudesse concluir sua ação.

        E assim ela saltou sobre ele, erguendo a perna que segurava até bem alto e só a soltou quando saltava e girava feito uma estrela para cair na frente dele, do outro lado.  Mas o verdadeiro golpe veio logo em seguida.

      Mal tinha tocado o chão, a guerreira girou uma segunda vez para a frente, embora desta não tenha apoiado uma das mãos nem mesmo no chão, o que exigiu mais impulso e mais força, que foram usados para que o segundo calcanhar dela atingisse de baixo para cima o maxilar de Ônix.

        O pirata foi arremessado para trás e se estatelou no chão. A cabeça foi parar perto da espada que ele havia deixado para a mulher que, do outro lado, estava plena e confiante numa postura de combate muito intencional.     

        Ônix se colocou de pé. Limpou um filete se sangue do canto da boca e falou:

        – Já acabou?

        – Eu mal comecei. – Ela ergueu uma sobrancelha. Achou que sua postura deixava claro que tinha muito mais para mostrar, mas a cabeça do pirata devia estar afetada pelo golpe e por isso ela foi gentil, ao dizer: – Pegue sua espada, porque você vai precisar.

        Ônix olhou para a espada no chão e se abaixou para pegá-la.

        –  Que bom que não é orgulhoso a ponto de não voltar atrás.

        O pirata sacou a espada, jogando a bainha para trás e falou:

        – Orgulho é um capricho que costuma ser mortal para quem faz questão dele, coisa que nunca fiz, de fato. Enquanto uma espada na minha mão, costuma ser mortal para os outros.

        E sorrindo, a mulher disse:

–       Então... tente mantê-la em sua mão.

            A jovem mulher sacou o punhal que trazia na bainha costurada na faixa de couro amarrado à coxa, e o arremessou na direção do pirata que desviou a pequena lâmina com a lâmina longa que empunhava. 

            A mulher não ficou assistindo a isso. Avançou subindo no joelho esquerdo flexionado do pirata e girou um chute similar ao que ele tentou um pouco antes. Ônix, porém, preferiu inclinar o corpo para trás, para livrar o rosto do golpe, mas ela não tinha intenção de atingí-lo assim. Enquanto se inclinava, o pirata ergueu o braço esquerdo e a mulher laçou tal braço com a perna direita dela, apertando-o atrás de seu joelho, com a panturrilha esmagando o braço do pirata.

            Ônix não ficaria parado e para obrigar a mulher a largá-lo e saltar de cima dele, enfiou uma estocada mirando a ponta da espada no peito dela.

            A mulher se inclinou o suficiente para escapar e segurou com a mão direita a parte livre do cabo da espada. Só então forçou o corpo para frente, para rolar no chão, levando o pirata junto.

            Ônix sentiu primeiro o pé direito deixando o chão, enquanto subia e sabia que logo o eixo de equilíbrio que era sua perna esquerda, deixaria de existir e ele seria jogado pela mulher para o outro lado. A menos que soltasse a espada e isso ele não queria fazer. Aceitou o golpe.

            A mulher, no entanto, também não soltou o cabo da espada e após lançá-lo para o outro lado, ao deslocar o seu pé de apoio nele do joelho para a cintura, usou a força da queda e impulso para continuar o rolamento e caiu sentada em cima do pirata, de frente para ele.

Habilmente, ela girou o pulso, tornando impossível que Ônix continuasse a segurar o punho da espada, e a roubou dele, antes de erguer com as duas mãos a lâmina e a descer para mostrar como a cravaria no peito dele, se fosse uma luta de verdade.

            O pirata Pedra-Negra, no entanto, levantou a perna direita e travou o ataque posicionando a sola do pé nos pulsos dela. Uma vez deixando claro que não seria assim que ela o derrotaria, ele girou para o lado, fazendo a mulher tombar, enquanto ele reposicionava seu pé, que deixou o punho dela para alcançar seu rosto. E, como prometido, ele enfiava a cara dela no chão sob a sola dele.

            Quando Ônix se moveu para buscar o punho da espada e reavê-la, a mulher ergueu a perna direita dela e laçou com a parte de trás dos seu joelho, o pescoço do pirata. Foi a vez dela de fazê-lo tombar, rolando novamente, enquanto ela reassumia a posição. Desta vez, porém, ela terminou sentada de costas para ele, sentada em seu peito. Os dois braços do pirata foram imobilizados com as duas pernas dela. Dessa vez poderia ver, em tempo, se ele levantasse uma das pernas, mas tratou de erguer as mãos com a espada e descê-las rápido, parando a lâmina a milímetros das bolas do pirata, antes de encostar nelas para deixar o pirata ciente da derrota. 

            Ônix não podia ver o sorriso da mulher, já que ela estava de costas e ele olhava por baixo da parte de trás da saia curta. Mas pôde escutá-la dizer:

        – Renda-se ou uma parte de você vai precisar ser costurada, se mexer um músculo sequer.

      – Me rendo, porque a parte que está ameaçando de costura é exatamente a que está prestes a mexer. – Ele fez uma careta, mas não conseguia e não queria parar de olhar a bela visão que tinha. – Numa situação como esta, aquele meu pequeno ponto fraco se torna... grande.

        Rindo, a mulher disse:

        – Vou te poupar dessa maldade.

        Ela se levantou e Ônix também. Ele ainda mantinha uma careta, ao dizer:

        – E assim percebi que me poupar da maldade, foi uma maldade ainda maior.  

        – Não maior do que a sua derrota. – Ela riu. –  Eu disse que você perderia.

        – Mas eu ganhei! – Ônix falou, também com o semblante alegre, e explicou: – Ganhei uma maruja deveras inteligente e excelente em combate! Ou depois disso tudo, não vai aceitar fazer parte da minha tripulação?

        A mulher estreitou os olhos, avaliou e disse:

        – Se você é capaz de entender assim, deve ter o mínimo para ser um capitão. Mas antes de eu decidir, me diga: Há outras marujas a bordo ou só homens como você?

        – Pra começo de conversa: Nenhum homem é como eu – Ônix gabou-se. – O que me deixa tranquilo, porque assim meu tenho uma razão para ser. E fique tranquila, também, porque você não é a única mulher no navio.  Mas você é a primeira em muitos aspectos. Por isso não fique triste em ser a única mulher a bordo da minha tripulação, porque você não é, e se alegre por ser uma mulher única, porque você é.

        A mulher estava quase convencida, mas quis saber:

        – E vão me respeitar ou terei de chutar a fuça de muitos?

        – Ninguém no navio te obrigará a fazer algo que não queira, fora do que é considerado trabalho. Seu corpo suas regras. Usando a roupa que quiser usar ou não usando se não quiser. Não digo que não escutará besteiras, mas tem liberdade pra responder e deixar claro o que vai tolerar ou não.

        – Assim sendo, vou aceitar. E por isso é bom saber que meu nome é...

        – Lara! – Ônix a interrompeu. – Vamos te chamar de Lara, porque seu visual me lembra uma mulher assim chamada, que vivia no passado esquecido do velho e proibido tempo. Ela perdeu o pai e usou a fortuna que herdou para caçar relíquias e se reconectar com o tal pai.

        A mulher não gostou do codinome e justificou:

        – Nunca conheci meu pai e nem me importo com isso. Definitivamente não tenho fortuna alguma. Gastei o que eu tinha pagando a conta lá dentro. E não caço relíquias.

        – Agora caça, porque eu caço – Ônix revelou. – As relíquias proibidas do velho tempo são o que tem de mais lucrativo neste novo tempo e é assim que tenho juntado recursos para realizar um grande e inigualável feito, pelo qual serei lembrado por séculos. Escreverão até um livro. Na verdade, pelo que certo alguém me contou, já até escreveram, porque quem escreveu viveu no tal passado esquecido... de alguma forma ele conseguiu enxergar além do tempo dele... uma maluquice, eu sei... e na qual só acreditarei se eu encontrar o tal livro, mas, isso é sobre o passado e futuro. Vamos focar no agora. Seu codinome será Lara... e nem mais um pio.

        – Eu não vou ficar calada.

        – Então vai ser Lara Pia...

      – Lara de... Larapia?  – A mulher pensou por um instante e sorriu. – Até que é interessante para um nome pirata. Gostei. Pode ser.

        – Vai ser – Ônix disse, como se fosse óbvio.

        – Claro que vai – Lara afirmou. – Eu aprovei. 

        Ônix admirou a convicção dela, em segredo e falou:

        – E como como pirata, estará sempre arriscando tudo. Ainda assim, é melhor arriscar tudo para continuar vivendo, do que não ter tudo para arriscar, numa vida que mal pode ser chamada disso. Seja bem-vinda como minha maruja.

        – Seja bem-vindo como meu capitão.

            – Desde que execute bem as tarefas do trabalho, será bem recompensada.

        – Desde que as tarefas do trabalho, sejam apenas tarefas do trabalho – ela disse, olhando por um instante para o volume ainda perceptível na calça do pirata.

         – O meu corpo é o meu corpo. – Ônix disse, depois de ele mesmo olhar para onde ela olhou, como se fosse preciso para saber como seu corpo estava. –  Pode responder a estímulos, como você bem viu, mas se meus desejos são o mar, e são... saiba que minha mente é meu navio e eu não sou o capitão à toa. Se quiser segurar meu leme, um dia, vai precisar pedir por isso com todas as palavras necessárias. E só então pensarei no seu caso.

        – Só por curiosidade: Você diria não pra mim?

        – Aí está uma resposta que eu não posso te dar...

        E ele se virou e estalou os dedos, apontando para o caminho que voltava para a taverna; indicando aos dois marujos para acompanhá-lo.

        Enquanto Caramujo alcançava o capitão, Lara interpretava a resposta do capitão e antes de seguí-lo, sorriu.

                                               *

        – Esse exemplo serve? – pergunto à minha psicóloga.

        – Você disse que é como se você colocasse algo da realidade na fantasia para testar e ela te devolvesse esse algo mais lapidado, para você usar na realidade.

        – Sim.

        – E você usa?

        – Sim.

        Ela faz mais uma anotação e pergunta:

        – Você tem adversários na vida real?

        – Quem não tem?

        – Qual foi o seu maior adversário na sua vida?

        – A vida – digo. – Foi. É. E vai continuar sendo. O que não é ruim. No geral os oponentes são mestres que nos ensinam algo sobre quem somos além das nossas máscaras. A vida é a mestra suprema e não quer nos destruir. Alguns a chamam de Deus. Eu chamo de vida. Uma consciência suprema que sabe o que precisamos aprender.

        – E porque não pode chamar de deus?

        Eu faço uma careta e me obrigo a ser o mais sucinto possível, ao dizer:

        – Porque o conceito de Deus está muito associado a arrependa-se e o foco do que eu chamo de Vida está em compreenda-se. A diferença é imensa. E é pra isso que estou aqui. Para me compreender.

        – E vai voltar aqui para continuarmos. Eu gostaria de ver até onde posso te ajudar?

        – Se tem uma resposta que posso dar com certeza é: Vamos ver...

        E me levanto para me despedir.

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