II

CLINT ACORDOU AINDA ENVOLTO PELA ESCURIDÃO. Fora a melhor noite de sua vida. Tateou pela cama em desespero até encontrar o corpo ao seu lado. A mão deslizou por aquela pele como se tocasse em veludo. As coxas, as curvas, o sexo, tudo parecia esculpido em uma perfeição digna dos grandes escultores. “Deus existe.”, Clint sorriu. Levou a mão ao rosto da mulher e, como o combinado, ela ainda estava com a máscara. Resistiu à tentação de a arrancar e dar-lhe um beijo. Pensou em ligar a luz para ver aquele corpo deitado ao lado e chegou mesmo a sentar na cama pronto para se levantar, quando um choque o atingiu.

Não podia fazer isso.

            Se dissesse não ter pensado em Rita naquela noite estaria mentindo. Porém, diferente do previsto, a imagem da esposa surgiu mais como um símbolo de culpa. A tentativa de transformar aquela mulher em uma réplica do seu casamento não dera certo.

A primeira tentativa é sempre frustrante.”, consolou-se Clint.

            Sentiu a cama mexer. Até para se mover, ela tinha delicadeza. Parecia competir consigo mesma para ver se conseguia produzir o mínimo de ruído. Como se tocasse em um objeto de cristal, afastou a mão dele e levantou-se. Mesmo após algumas horas, os poros dela ainda secretavam aquele cheiro adocicado. Ouviu a porta do banheiro se abrir e em seguida o som do chuveiro.

Ele esfregou as pálpebras por um instante, pensativo. Talvez fosse impressão, mas, Clint ponderou, ela o estava provocando, convidando-o a quebrar a promessa e correr até lá. Um convite para retirar a máscara, olhar bem aquele rosto e beijá-la como nunca fizera com nenhuma mulher.

Será que ela também não tem curiosidade de ver como eu sou? Não é possível ser assim tão profissional...”, concluiu já excitado. Um para o outro, eram apenas vulto e penumbra. Dois amantes sem rostos, sem formas, sem humanidade.

Pensou em Rita mais uma vez, desculpou-se e correu para o banheiro.

Depois de tanto tempo no escuro, a luz fluorescente no branco dos azulejos quase o cegou. Havia algumas toalhas jogadas por sobre o armário. Conseguiu divisar o box embaçado. Sem hesitação, correu a porta de vidro e levou as mãos à frente pronto para abraçá-la. Sentiu a água nos dedos e mais nada. Não havia ninguém.

Ele estava só.

            Voltou para quarto e acendeu as luzes. O único vestígio de algo ocorrido ali eram os preservativos jogados no lixo. Cheirou os lençóis e o cheiro dela havia sumido. Não poderia ter sonhado com aquilo. Fora real, palpável, carnal. Tinha certeza.

Vestiu-se de qualquer jeito e saiu a toda do quarto. Correu para o elevador. Tocou o interfone e, antes mesmo do atendente falar, perguntou.

            — Onde está a garota que dormiu comigo?

            — Desculpe, senhor…?

            — Tenner. Clint Tenner.

            — Sim, sr. Tenner. Bom dia. Pode repetir a sua pergunta, por favor?

            — A garota que dormiu comigo. A que horas ela saiu?

            — A empresa não fornece esse tipo de registro aos clientes, sr. Tenner.

            — Ora, vocês não têm câmeras de segurança, credenciais, listas? Eu preciso saber para onde ela foi!

            — Sr. Tenner, o senhor sabe muito bem que é política da empresa não revelar dados sobre outros clientes ou sobre os funcionários. O senhor sabe: para a privacidade de todos os envolvidos. O senhor deve ter lido no contrato, não leu?

            Clint esmurrou o interfone e viu uma rachadura surgir no painel. A página de acompanhantes do motel oferecia diversas garantias: desde um tipo de “cartão fidelidade para trair a esposa”, com acesso irrestrito ao elevador e garantia de privacidade, até a escolha ilimitada das acompanhantes e os melhores quartos. Com certeza, em letras miúdas, deveria ter alguma cláusula do tipo “… o(a) cliente fica proibido(a) de ter acesso aos dados pessoais das(os) acompanhantes…”.

Era ridículo.

Por que não fazia como qualquer pessoa e entrava em um motel qualquer? Ou, então, saia pelas ruas, parava em algum lugar e pegava uma prostituta como sempre fizera? Agora, por culpa da esposa, estava ali, feito idiota, em pleno amanhecer.

***

            CHEGOU EM CASA MEIO ATORDOADO. Não esperava passar a noite no motel. Enquanto punha a chave na fechadura, agradeceu por ser sábado. Rita estaria no asilo e ele teria paz para apagar vestígios. Entrou, foi direto para a lavanderia, despiu-se e jogou tudo dentro da máquina de lavar. Vestiu um calção e virou-se. O coração quase saiu pela boca.

A esposa estava parada à porta.

            — Por que você está lavando roupa? – ela perguntou em uma mescla de curiosidade e de desconfiança. Clint notou que a voz continuava a mesma de antes. Há muito tempo não tinham conversas cordiais. O susto de vê-lo ali com a roupa na máquina, algo que ele nunca fizera, pareceu dissipar os conflitos por um breve instante.

            — E-E-Eu… Eu fiquei até tarde no escritório. Muito trabalho. Então.... como não tive tempo de levar para lavar ontem e hoje a lavanderia não abre, decidi fazer eu mesmo. – Clint engoliu em seco. Era uma péssima mentira e não tinha outra na manga. Não teve nem tempo para pensar em algo. Encarou a esposa e emendou. — Eu gosto muito desse terno.

            Rita olhou nos olhos dele durante algum tempo. Não parecia irritada ou furiosa. Na verdade, era o tipo de pessoa paciente, conciliadora. Jamais a veriam descontrolada, aos gritos, capaz de espetáculos em público. Contudo, naquela manhã o olhar tinha algo de diferente. Balbuciou um “ok” e fez menção de sair, mas pareceu pensar melhor e deu meia volta.

            — As meninas ligaram ontem. Elas estão bem. Devem vir passar parte das férias com a gente. Estão radiantes.

            — Ah, que bom! Estou com saudades. Faz tanto tempo… Moramos a apenas duas horas delas e raramente nos encontramos, não é? É esquisito...

            — É, é uma pena... Falando nisso, elas estavam tão felizes que ligaram pra todo mundo. Mamãe até chorou de tanta emoção. – Rita sorriu, pensativa. Os olhos brilharam ao voltar a fitar o marido. — Sabe o que também é estranho, Clint? Elas disseram que ligaram para o escritório ainda de tarde e a secretária falou que o expediente acabou bem mais cedo ontem e que você saiu antes das dezessete horas. Não é esquisito?

            Voltou a sorrir e saiu.

Clint ficou com a língua engessada.

***

            RITA PASSOU O FINAL DE SEMANA NO ASILO. Apesar de não emitir opinião alguma, a atitude deixava claro o nível de aborrecimento. Desta vez, o marido ultrapassara algum dos limites abstratos até então erguidos em torno do casamento. Quando ela ligou para a mãe e combinaram de almoçar juntas, então, Clint teve certeza da situação em que estava. As duas não tinham uma relação muito dada a afagos. De fato, Rita e a mãe pareciam viver em uma disputa, mais como irmãs em rixa. No entanto, se os maridos faziam algo de errado, logo esqueciam das diferenças e viravam confidentes prontas para o combate. E nessa guerra, Clint sabia, ele era o inimigo a ser abatido.

Como sempre ocorria nesses momentos, a palavra “divórcio” flutuou entre as suas ideias. Junto a ela, porém, brotaram os termos “processo”, “pensão”, “advogados”, “dores de cabeça”, “burburinho”, “comentários”, “vizinhança”. Não. Era mais fácil e barato tentar reconquistar a esposa. “Muito mais barato.”, concluiu. E ainda tinha a vantagem de ela não desconfiar de nada, ou, mesmo se desconfiasse, não ter provas contra ele.

Enquanto almoçava na solidão da mesa, as paredes e o lustre como companhias, Clint começou a analisar a primeira dose do tratamento ao qual se propusera. Não fora tão ruim. Diferente das outras vezes, ele não estava com o rosto da acompanhante na cabeça ou ficara apegado a alguma característica mais chamativa da moça, como sinais, formato dos seios ou a cor do cabelo. Tudo parecia um sonho, quase um devaneio.

Sim, esse era o objetivo.

Mas falta alguma coisa…”, avaliou.

O lustre deu uma balançada. Até aquele emaranhado de cristais, cuja quantidade de brilho beirava a indecência, esfregava em seu rosto a necessidade de mudança. Rita insistira em comprar a luminária um mês depois de terem reformado a casa. Disse que seria uma forma de dar mais aconchego ao lar. Clint enviesou o canto da boca. O brilho daquele lustre nunca presenciou família alguma reunida naquela mesa.

Falta alguma coisa...”, tornou a refletir.

A luminária fora uma tentativa de dar à situação da casa algo extraordinário, tão fora da curva de normalidade ao ponto de fazer o casal esquecer das diferenças e focar a atenção naquele brilho. Uma compensação vulgar contra o vazio da casa. Algo banal em troca de um  “bem maior”.

Os cristais encontraram o olhar de Clint. Acima de uma terapia, aquilo tudo ainda era uma despedida. O lustre era uma despedida, sim. As mulheres, também. Portanto, merecia algo de fato inesquecível, não? Um prêmio diante de tamanho esforço.

Como se os talheres estivessem eletrificados, ele os jogou no prato e correu para o quarto. O suor escorria pela testa e os pés balançavam, inquietos. Abriu o notebook, fez algumas buscas e foi certeiro para as antigas companhias, colegas de velhos tempos. Passou a mão para enxugar o suor escorrido pelo rosto. Conhecia cada centímetro daqueles corpos, cada gosto, cada toque. Poderia escolher qualquer uma delas e realizar as maiores fantasias. Poderia mesmo contratar um grupo para o seu gran finale. E então, os pensamentos começaram a girar, Clint ofegou e os dedos deslizaram sozinhos pelo teclado. Ao se dar conta, estava na página do Columbia.

Parou por um instante e caminhou até a janela. O carro de Rita não estava na garagem. O vizinho da frente varria as folhas da calçada. Fechou as persianas, trancou a porta e mergulhou no escuro. Procurou um pouco e achou. “Typhany”, Clint leu na descrição. Diferente do escritório, a privacidade de casa lhe dava a oportunidade para investigar os atributos daquela mulher. Mas se decepcionou. Seguindo o conceito de amor às escondidas, as fotos eram, em sua maioria, apenas da silhueta ou de um close de partes específicas como o umbigo, os mamilos ou a boca.

Era inacreditável e ao mesmo tempo tentador.

Perdido naquelas fotos, Clint só voltou a si ao ouvir o som de passos no andar de baixo. Rita não entraria no quarto. Ele sabia disso. Contudo, a simples presença dela na casa o deixava incomodado. Não tinha tempo para pensar. Clicou no ícone “CONTRATAR” e quando a tela de chat abriu digitou apenas “Cliente às escuras da sexta. Encontro terça-feira. Mesmo horário e mesmo quarto?”.

Segundos depois, Clint se arrepiou ao ouvir o som do recebimento de mensagem e ver a resposta: “Ok.

Desligou tudo e ficou quieto. A esposa caminhava pela casa. Ao entrar na sala de jantar, ele conseguiu imaginar, Rita pararia à porta e olharia para o prato deixado sobre a mesa. Ergueria a cabeça e observaria o lustre. Talvez, apenas talvez, o olhar dela pudesse ver através do teto e ambos agora se encaravam, ele na escuridão daquele quarto, ela sob o brilho de cristais.

Clint desviou o olhar.

*

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