1. Mudança de Rotina

Eu sempre precisei de mais tempo para qualquer coisa do que os meus irmãos. Aqueles dois patetas! Banho, cabelo, me arrumar, comer… até para escrever eu era mais lerda do que eles. E eu detestava o fato de sempre ser a última. Já não bastava ser a última a nascer? Mas graças aos céus os dois estavam se mudando naquela tarde. Não que isso fosse mudar muita coisa, mas já era algo.

Antônio Montês Filho, o Toni, era o mais velho dos três filhos da dona Michele Montês e sempre foi o queridinho da casa. Seu rosto beirando a perfeição era uma cópia masculina do rosto da mamãe, além do talento para esportes que também foi herança da dona Michele. Porém seus belos olhos verdes, cabelos castanhos dourados e o físico sempre em forma eram 100% made in papai, Senhor Antônio Montês.  

Já meu outro irmão, Patrick Montês, era exatamente oposto. Olhos cor de mel e cabelos pretos bem escuros, como os da mamãe e os meus, um sorriso avassalador e um tamanho tido como “pouco favorável” para um homem. Mas tocava guitarra como ninguém.

Os dois estavam se mudando no mesmo dia, mas por motivos opostos. Toni estava prestes a abrir um escritório de advocacia fora do estado com um colega de faculdade. Já Patrick iria sair em turnê com a sua banda de heavy metal, a Alta Voltagem. E eu estava comemorando como nunca. A casa finalmente seria só minha.

– Patrick, Alice e Michele! – berrou meu pai da escada – Querem fazer o favor de se apressarem.

– Já estou pronto, papai – ouvi Patrick gritando, enquanto descia as escadas correndo. Toni, como sempre, já estava na porta.

– Alice e Michele, vocês ainda não estão prontas? papai continuava.

– Já estou pronta, amor. desta vez minha mãe quem descia as escadas. Droga, eu era a única que ainda não estava pronta.

Fui obrigada a descer de qualquer jeito. Mal consegui arrumar meu cabelo. Tive que prendê-lo em um rabo de cavalo comum que fazia minha testa ficar maior do que já era.

Minha pele branca estava rosada devido à maquiagem feita às pressas. Meu um metro e sessenta e cinco de altura estava devidamente tapado com meu jeans básico, minha blusa amarela e meu tênis preto surrado. Resultado de tudo: estava me achando feia e não podia fazer nada para modificar isto.

Entramos no carro. Eu, como sempre, tive que ficar no meio. No maldito meio. Todos que me conhecem sabem que eu gosto de ficar na janela, imersa em meus pensamentos, mas quando os dois estão juntos sempre sobra para minha pessoa ter que ficar na porcaria do meio. Ainda bem que aquela era a última vez.

Nós não tínhamos nem saído do carro ainda quando minha mãe abriu o berreiro. Apenas revirei os olhos e evitei fazer qualquer comentário. Não queria estragar o momento. A choradeira foi assim até o portão de embarque.

– Mamãe, não precisa chorar! Toni passava a mão no cabelo dela – Eu vou aparecer sempre para te ver e você também pode ir para lá quando quiser.

– Mas não vai ser a mesma coisa! mamãe enxugava as lágrimas.

– Meninos, já está na hora de vocês. papai cortou o clima.

– Eu desejo muita sorte para os dois! – dizia, ou melhor, choramingava a mamãe.

– Juízo na cabeça de vocês. Principalmente você, Patrick! – completava o papai enquanto entregava uma das malas ao Toni.

– Você não vai dizer nada para seus irmãos, Alice? – mamãe perguntou fingindo que tinha parado de chorar.

– Já vão tarde! – respondi.

– Alice! – berrou minha mãe.

– Deixa, mamãe. Sabemos que ela sentirá muita falta da gente, não é Patrick? – Toni deu uma piscadela nada discreta para Patrick.

– Ela só não quer é dar o braço a torcer! Patrick completou cutucando o irmão com o cotovelo.

Não respondi, apenas mostrei a língua para os dois e virei de costas. Eu sabia que estava agindo feito uma garota de 6 anos de idade ao invés de agir feito uma de 16 que sou. Mas sabia também que o que eles diziam era a mais pura verdade. Apesar de ter aquela implicância natural que todos os irmãos têm uns pelos outros, eu sentiria muita falta daqueles dois patetas dentro de casa.

No carro o silêncio foi predominante e estava quase certa de que continuaria assim até que chegássemos em casa.

Durante toda a silenciosa viajem de volta eu fiquei distraída em meus pensamentos. Encostei a cabeça no vidro da janela e fiquei observando cada árvore passando por mim e sumindo em questão de segundos. O sol estava bem forte e por alguns momentos o reflexo dele no vidro me cegava, mas – ainda assim – eu continuava olhando. A rua em movimento me hipnotizava. Era como se o mundo estivesse acelerando, correndo mais rápido do que deveria.

De repente as árvores e postes começaram a diminuir a velocidade. A rua começava a ser bem familiar. Estávamos chegando. Voltávamos para aquela velha casa de sempre, agora com dois moradores a menos.

– Esta casa já parece mais parada sem os dois aqui! – mamãe continuava choramingando.

– Acho que continua a mesma coisa! – ainda estava agindo feito uma criança.

– Bem, meninas, eu vou subir e tomar um banho. Vou aproveitar que tirei o dia de folga hoje e descansar.

Papai sempre foi um homem de negócios. Engenheiro formado, estava sempre em sua firma trabalhando. Hoje ele tinha tirado o dia de folga especialmente para levar meus irmãos ao aeroporto. Não era todo dia que ele fazia isso, por tanto, me senti um pouco enciumada de não ter tido esse tipo de consideração até hoje.

Depois que se passaram algumas horas comecei a sentir falta da bagunça que era a casa quando os dois estavam aqui. Comecei a sentir falta da mamãe gritando com Patrick por ter deixado o prato sujo em cima da mesa, do Toni reclamando da barulheira que o Patrick fazia enquanto ensaiava com a banda na garagem. Sentia falta até da reclamação dos dois com o papai sobre minhas demoras no banheiro. A saudade estava batendo mais rápido do que eu esperava.

Liguei a TV do meu quarto, mas a programação não tinha nada de interessante. Nenhuma notícia nova sobre nenhum dos meus artistas favoritos, nenhum filme interessante, nenhum episódio novo de nenhuma série. Parecia até uma conspiração para me prender junto ao tédio que aquele dia estava se tornando. Eram as minhas férias e estavam sendo bem chatas.

Por alguns minutos fiquei observando o meu quarto. Não que tivesse algo de novo para observar, mas eu não estava fazendo nada mesmo. Pensei seriamente em arruma-lo. Levantei e comecei a guardar os CDs que estavam espalhados pela mesa de computador. Mas o tédio cansa, então parei.

Não sei quanto tempo fiquei contemplando o vazio, mas sei que quando dei por mim novamente, já estava anoitecendo.

Eu nunca lidei muito bem com mudanças muito radicais em minha vida. E meu problema com ansiedade não ajudava muito. E por mais que eu gostasse da ideia, a mudança dos meus irmãos parecia ter sido um baque forte demais. E isto era muito estranho.

Estava iniciando em mim uma súbita e frenética vontade de gritar. E não era um gritinho qualquer. Era um berro bem alto e agudo. Daqueles para soltar tudo o que estiver engasgado. Mas meu senso de ridículo não me permitiu cometer tal insanidade. Tive que sufocar este grito usando o travesseiro para abafar o som. Não era a mesma coisa, mas ajudava.

Depois do grito abafado, respirei fundo e tentei ler um livro. Eu sabia que não iria conseguir me concentrar, mas eu precisava tentar. Pelo menos fingir que estava funcionando. Mas estava difícil. E eu sabia que nada iria ajudar a fazer esta sensação ruim passar. Fechei os olhos e respirei fundo.

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