A noite estava fria, o vento forte fazia com que as folhas das árvores balançam violentamente, indicando que certamente uma chuva intensa começaria a cair a qualquer minuto.
Embora a temperatura estivesse baixa, frio era o que eu menos sentia naquele momento, haja vista que eu não parava um minuto sequer, pois me desdobrava entre colocar champagne nas luxuosas taças de cristal e arrumar os quitutes sofisticados na bandeja, a fim de que todos fossem levados dali pelos garçons e garçonetes contratados para aquele típico evento da classe alta. Olhei aquela cozinha abarrotada de pessoas que corriam de um lado para o outro, todas focadas em fazer o seu trabalho da maneira mais impecável possível, levando em conta que aquela era mais uma das tantas exímias festas da brilhante e popular família Carter, conhecida por sua tradição no ramo de advocacia, onde Kyara e Henrico Carter formavam o casal mais prestigiado nesta área.Kyara é a advogada mais influente na área de Direito de Família, onde possui muito reconhecimento atuando com divórcios litigiosos – divórcios que ocorrem de forma não amigável, ou seja, onde há conflitos na vida conjugal e isso resulta em uma ação judicial – e já recebeu diversos prêmios, sendo, também, sócia de um renomado escritório. Henrico é advogado criminalista e dono de um dos mais poderosos escritórios de advocacia do país, adquirindo reconhecimento defendendo – e ganhando – casos famosos que obtinham cobertura jornalística, portanto, sendo recorrentemente citado pela mídia. Os dois tinham um filho, John, que também decidiu seguir carreira em Direito, tendo se formado há pouco mais de três anos. Eles eram, definitivamente, louváveis neste quesito.Olhei para o lado e vi que a minha mãe passava a mão na testa e suspirava, cansada, enquanto terminava de cortar alguns tomates. Fui até ela e gentilmente peguei a faca de sua mão, recebendo um olhar confuso em resposta ao meu ato.— Deixa que eu faço isso, mãe. Senta um pouco. - Falei, já começando a cortar os tomates em pequenos cubinhos.—Não precisa, filha. Você já está ajudando muito, nem era pra você estar fazendo isso. E tome cuidado, a faca está afiada. - Ela argumentou, tentando pegar a faca da minha mão, porém, eu a impedi.— Você acha que eu sou tão desastrada a ponto de não conseguir cortar alguns tomates?- Ela me olhou com deboche, como se nem precisasse me responder.Fitei-a boquiaberta.
— Eu quero ajudar, não seja teimosa, dona Mary! - Soltei uma risadinha com a cara resignada dela, já sabendo que eu não desistiria. Observei-a sentando-se em um dos bancos espalhados pela enorme cozinha e voltei à minha tarefa anterior, tomando cuidado para não me cortar.
Minha mãe trabalhava há muito tempo como cozinheira na casa dos Carter, possuo diversas lembranças de vê-la cozinhar enquanto eu desenhava e fazia a lição sentada na mesa.
Após a morte do meu pai, passei a acompanhá-la ao seu local de trabalho diariamente. No momento em que comecei a escolinha, minha mãe me levava e, de lá, seguia para o trabalho; Já na volta, uma amiga dela me buscava e ia junto comigo até a mansão, o que se tornou desnecessário ao passo em que eu completava mais idade, adquirindo a possibilidade de ir e vir sozinha. Nesse tempo, eu via John poucas vezes andando pela casa, afinal, ele sempre tinha diversas atividades para fazer, e comumente ouvia-se a dona Kyara o apressando para a aula de natação, hipismo, violão e tudo mais o que você pode imaginar.Eu nunca consegui entender essa fixação que gente rica tem de enfiar os filhos em milhões de tarefas.Com a morte do meu pai, a nossa situação financeira foi de mal a pior, chegando ao ponto em que nós corríamos risco de sermos despejadas da nossa casa devido à falta de pagamento do aluguel. Aquela época foi horrível, eu ainda era criança, não entendia ao certo o que havia de errado, contudo, via a minha mãe constantemente desesperada e sofrendo para conseguir quitar as dívidas. Isso não era possível somente com o seu salário, então, a dona Kyara ofereceu a casa dos fundos da mansão para que nós morássemos, contanto que isso não atrapalhasse o rendimento da minha mãe no trabalho. Era um anexo, tipo uma casa de caseiro que localizava-se aos fundos da moradia principal. Ela prontamente aceitou e moramos aqui até hoje. O dinheiro que ia para o aluguel e outras despesas foi investido na minha educação junto a uma quantia que ficava em uma poupança da qual meu pai deixara para mim, exatamente para este propósito, e, com isso, no primeiro ano do ensino médio, pude entrar em um ótimo e renomado colégio. No começo eu tive bastante dificuldade para conseguir acompanhar o ritmo do ensino – que era extremamente puxado – e, outra situação bem chata se deu ao fato de ter que lidar com os meus colegas de classe e até alunos de outros períodos. A grande maioria – senão todos – os alunos do colégio usufruíram de uma excelente vida financeira e viviam confortavelmente, e quando me questionavam a respeito da ocupação dos meus pais, eu ficava insegura em dizer-lhes que eu era bem diferente deles neste aspecto, afinal, as pessoas não sabiam lidar com desigualdades sociais e isso originava piadinhas e comentários maldosos. Mesmo assim, eu decidi falar, pois jamais tive vergonha da minha mãe ou de sua profissão.Quando eu estava no primeiro ano do ensino médio John havia acabado de entrar na faculdade, optando por não se mudar para estudar em outro lugar, haja vista que, nessa época, a dona Kyara desenvolveu sérios problemas de saúde e, como o senhor Henrico viaja constantemente para fora do país, não quis deixar a mãe sozinha. John passou em Direito em uma ótima faculdade – uma das melhores do país e que se localizava na cidade –, sendo, coincidentemente, a faculdade da qual eu sempre quis fazer parte. Tendo isso em mente, estudei muito, atormentei meus professores, fiquei dia e noite focada nos livros – muitas vezes levando bronca da minha mãe pela minha falta de descanso – e, finalmente, consegui a minha tão sonhada vaga. Agora eu me encontrava caminhando para o fim do curso de Psicologia, ansiando cada vez mais pelo dia em que eu concluiria a faculdade e, claro, pelo dia da minha tão sonhada formatura.Eu terminei de cortar o último tomate no momento em que o bendito escorregou, fazendo a faca ir de encontro ao meu dedo indicador, formando um corte um tanto quanto feio. Soltei um murmúrio de dor, vendo que o sangue saía descontroladamente do corte ao mesmo tempo em que sentia uma ardência latejante nele.
— Helena, o que foi que eu te disse? - Minha mãe brotou ao meu lado, olhando minuciosamente o meu dedo machucado.
— O tomate escorregou! - Choraminguei fazendo uma careta de dor, indo para a pia a fim de lavar o sangue.— Toma, coloca esse papel pra controlar o sangramento! - Ela me entregou o papel e eu o enrolei no dedo. — Vou procurar um band-aid e merthiolate. — Mary , será que você poderia me ajudar aqui? - Uma moça pediu, apontando para um amontoado de panelas.— Tudo bem, mãe. Deixa que eu vou procurar. - Saí da cozinha e segui para o pequeno banheiro que ficava perto da área de serviço.Abri os armários e busquei por todos os lugares, não encontrando nem o band-aid, tampouco o merthiolate. Bufei, segurando o papel mais firmemente em meu dedo e fui para a despensa onde ficavam os medicamentos e produtos para banheiro.
Abri a porta e entrei no local, iniciando novamente a minha busca, sentindo o meu dedo latejar cada vez mais. Estava distraída mexendo nas prateleiras até que percebi uma movimentação no lugar. Virei-me e dei um pulinho idiota de susto ao ver que alguém havia entrado.John estava parado perto da porta, me olhando com a maior cara de interrogação possível.Ele vestia uma blusa social justa da cor branca e as mangas estavam dobradas nos cotovelos; a gravata e a calça jeans eram pretas e, o sapato social, marrom escuro. Seu cabelo continha uma mistura de charme e rebeldia. Estava bonito e...Opa, espera aí.Mas o quê...?É, eu estava o analisando demais.Franzi o cenho com a minha atitude e saí do mundo da lua, voltando à realidade.Percebi que o seu olhar encontrava-se direcionado para algo, segui a sua observação e vi que ele encarava o meu dedo machucado onde o papel estava amassado e manchado de sangue. Por instinto, eu recolhi a mão e lancei-lhe um sorriso sem graça quando ele voltou a me encarar com a sua costumeira expressão séria. Virei-me novamente para a prateleira, agradecendo aos céus por finalmente encontrar o band-aid e o merthiolate. Peguei ambos e John ainda estava parado perto da porta, passando os olhos pelas prateleiras, parecendo perdido ao procurar por algo enquanto me esperava sair, já que o lugar não era grande o suficiente para nós dois.— Eu posso ajudar? - Perguntei sutilmente a ele, que desviou os olhos da despensa e voltou a me fitar.
— Não, pode ir! - sua voz grossa sutilmente rouca fez-se presente. Assenti e saí, querendo fazer o curativo o mais rápido possível. —Tá tudo bem? - a voz grave soou novamente. Parei de andar e olhei pra trás, confusa. Ele permanecia parado perto da porta, porém, agora, suas mãos estavam no bolso de sua calça e o seu semblante permanecia sério. Percebendo que eu não entendia sobre o que ele estava falando, John apontou com a cabeça para o meu dedo machucado.— Ah, sim. Tudo bem. É só um cortezinho. - respondi acenando com a mão como se aquilo não fosse nada. Percebendo o seu silêncio, sorri em despedida, pronta para, definitivamente, sair de lá. Ele retribuiu com um aceno de cabeça e eu voltei a andar, apressada para cuidar do corte e tornar a ajudar a minha mãe.
Eu morava aqui há muitos anos, e, em todo esse tempo, o máximo que John e eu falávamos um para o outro era “bom dia”, “boa tarde” e “boa noite”. Bom... Às vezes ele também me perguntava se eu sabia onde estava algo.De vez em quando eu tinha a impressão de que ele não ia muito com a minha cara, e a ideia de incomodá-lo me deixava incomodada.John passava o dia inteiro no escritório e eu, na faculdade. Aos sábados, eu trabalhava meio período em uma loja de discos, chegando à tarde, e dificilmente via o carro de John na garagem. Terminei de colocar o band-aid no meu dedo e parei com os devaneios, voltando para a cozinha e encontrando todos da mesma forma: trabalhando.“Pensei que tivesse se perdido pelos cômodos.” minha mãe comentou em um tom brincalhão.“Fiquei procurando as coisas, tive que ir até a despensa” respondi “O que eu faço agora?” indaguei olhando em volta.“Por enquanto nada, filha. Pode descansar. Se eu precisar de algo, te chamo” ela preparava alguns quitutes que pareciam maravilhosos. Eu peguei um e recebi um olhar repreendedor. Ri e olhei pela janela, percebendo que, como previsto, uma chuva tórrida começava a cair.De longe, ouvia-se a melodia suave de alguma canção. Fui à sala de jantar e me aproximei cuidadosamente da porta que dava para a enorme sala de estar, onde a festa acontecia. Tentei ficar o mais escondida possível, dado que não desejava parecer curiosa ou intrometida. Eu apenas gostava de apreciar o ambiente e as sempre lindas decorações que eram criadas. Diversas pessoas encontravam-se distribuídas por ali, todas em seus trajes luxuosos, rindo e conversando, como no mais perfeito comercial de leite em pó. Os garçons c
O domingo amanheceu ensolarado, embora a temperatura não estivesse alta. O céu estava limpo e extremamente azul, nem parecendo que uma forte chuva caíra na noite anterior. Eu brincava com Bento no gramado descampado há horas, já me sentia cansada e com dor nas pernas – sedentarismo mandou olá, Helena – não vendo um mísero sinal de exaustão no pastor alemão, que procurava a bolinha que eu acabara de jogar. A casa estava vazia, pois, mais cedo, todos foram tomar café da manhã fora e acompanhar o senhor Henrico ao aeroporto, pois ele viajaria dali a poucas horas.— Não, Bento! Na lama não. - corri para tentar alcançá-lo e impedi-lo de ir para o jardim, caso contrário, o estrago seria muito feio. —BENTO, VOCÊ QUER ME VER MORTA? VOLTA AQ… - ia terminar de gritar pelo cão que corria feliz em direção ao seu destino proibido, até que tropecei nos meus pés, caindo igual abacate cai do pé. Como em um passo mágica, Bento parou imediatamente de correr e olhou para trás, e acredite, se cachorr
John’s POV— Esse relatório está incompleto, Thompson! - Chamei a atenção de um dos advogados do escritório pela milésima vez. Meu pai deixava os documentos de diversos casos sob minha responsabilidade sempre que ele viajava, o que eu sabia que gerava inúmeros comentários sobre eu ter preferência ou abusar do poder, já que era filho do dono. Não me importava com isso, afinal, eu era realmente muito bom no que fazia, e, conhecendo o meu pai – que venerava seu trabalho como um bom workaholic* – ele não me deixaria no comando de nada caso soubesse que eu não possuía competência para tal. Eu também tinha consciência de que todos – senão a maioria – das pessoas me denegriram pelas minhas costas por eu repreendê-los. Bom, se você percebe que algo está errado, ou extremamente longe do seu melhor, você toma as devidas providências, não é mesmo? O mais interessante de tudo é que essas mesmas pessoas que me criticam em minha ausência, puxem meu saco quando estou presente. Incoerente? Eu sei
John’s POVEu elaborava a tese de defesa do meu cliente estudando minuciosamente todos os argumentos que poderiam ser utilizados a fim de conseguir sua absolvição. Este seria o meu primeiro caso com cobertura da mídia, e isso estava me deixando um tanto quanto nervoso, afinal, a acusação leva uma vantagem muito grande, visto que é mais fácil acusar do que defender. Lee Feldmann era empresário e havia sido acusado de assassinar o banqueiro Mason Zummack, mas estava bem nítido que por trás disso havia alguém querendo incriminá-lo por meio de uma falsa acusação, e eu não permitiria que uma condenação injusta levasse um inocente para a cadeia. Eu havia conseguido uma revogação da sua prisão preventiva, porém, ele ficaria em prisão domiciliar até o dia do julgamento. Larguei os papéis sob a mesa por alguns segundos e apoiei os cotovelos nela. Massageei as têmporas e soltei um suspiro cansado, repassando tudo o que me fora dito a respeito do dia do assassinato de Mason.O crime ocorreu em u
— Oi, mãe. - depositei um beijo em seu rosto e sentei-me no sofá a sua frente.— Oi, filho. Chegou agora? - perguntou, me observando por cima do livro.— Agora a pouco. - respondi, jogando a cabeça no encosto do sofá e afrouxando a gravata que parecia querer me sufocar. — e você? Chegou do escritório há muito tempo?—Sim, cheguei há algumas horas.— Não está se esforçando demais, certo? O doutor deu ordens claras para você se cansar o mínimo possível.- a adverti me referindo aos seus desmaios recorrentes. — Eu estou bem, filho. Ficaria pior estando em casa sem fazer nada. Agora me responda... O que você estava falando com a filha da Mary?- levantei a cabeça e a olhei sem entender. Como ela havia visto? Eu não me importava que ela visse, não tinha nada a esconder, porém, chamar a minha atenção por algo tão banal me parecia bem incoerente.— Fui buscar o Bento que estava com ela. - continuei a encarando curioso e meio incerto sobre a sua pergunta repentina.— Hm. Desde quando vocês co
Direcionei-me à minha casa extremamente desanimada e frustrada, amaldiçoando Bryan por ter acabado com o meu bom humor, além de ter criado todo esse drama desnecessário quando tudo o que ele deveria fazer era fingir que eu não existo, tal como já havia feito tantas outras vezes. Joguei a minha bolsa em um canto da sala e pulei no sofá, fechando os olhos e sentindo o meu corpo relaxar, apesar da minha cabeça me torturar com uma dor desagradável. De repente me recordei do dia em que Bryan falara comigo pela primeira vez.FLASHBACKEncarava esgotada a terceira página de exercícios de matemática, sentindo o meu pulso doer de tanto escrever, anotar e apagar. Estava sentada em uma pequena mesinha que eu havia colocado na varanda para que estudar nos dias quentes ficasse mais agradável. Havia passado a tarde toda estudando, o último ano do colégio estava extremamente puxado e eu fazia o máximo para conseguir absorver todas as matérias, haja vista que tudo o que eu desejava era entrar na facu
John’s POVEu me sentia extremamente sem paciência.O que era para ser um dia agradável na companhia dos meus amigos acabou se transformando em um stress que poderia – e deveria – ser evitado, se não fosse Bryan e a sua infantilidade. Falar daquela forma com a Helena foi desprezível, ela havia ficado desestruturada e eu me incomodei com o pesar em suas feições enquanto ouvira as provocações do meu amigo, por isso, decidi intervir, embora tenha sido tarde demais levando em conta o tapa que a garota deu nele. Para ser sincero, fiquei admirado com a sua coragem em falar daquela forma tão confiante.Geralmente eu presenciava as provocações de Bryan direcionadas a ela, que sempre rebatia dignamente, e tudo o que eu fazia era observar o seu posicionamento diante do comportamento imaturo do meu amigo – comportamento este que eu reprovava plenamente – Eu já pensei em repreendê-lo diversas vezes, entretanto, Helena habitualmente tomava as rédeas da situação e se defendia muito bem, era interes
Cassie praticamente fingia que não me conhecia e me ignorava todas as vezes em que eu tentava falar com ela. Era surreal. Ela tinha o direito de ficar brava, eu não podia mudar isso, entretanto, aquela atitude birrenta excedia todos os limites. Estava encostado na sacada de vidro e imaginei que a minha expressão não era das melhores, pois o Paolo vinha me perguntar se estava tudo bem de cinco em cinco minutos, mesmo eu afirmando em todas elas. Avistei Cassie chegando perto de mim e a acompanhei com o olhar conforme ela se aproximava.- Vou embora com a Suzi e dormirei na casa dela – avisou como se não fosse nada demais me lançando um sorriso petulante.Dei uma risada de escárnio e a olhei incrédulo.- Você não está falando sério.- Pode apostar que eu estou – retrucou com o sorriso perdurando em seu rosto.- Mas que caralho, Cassie! Para com essa merda, já deu. Olha só o que você está fazendo – disse, tentando controlar o tom de voz, embora soubesse que a minha expressão esbanjava irr