Capítulo dois

Capítulo dois

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Mas eu sei que alguma coisa aconteceu

Está tudo, assim, tão diferente...”

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11 de dezembro      

            Se o primeiro dia ali já fora difícil, sabia que a partir do segundo a coisa só iria piorar, já que minha tia já estaria de volta para São Paulo logo depois do almoço. Tinha ido até ali apenas para me levar e me abandonar sozinha em um casarão antigo perdido no meio do nada e habitado por funcionários formais e uma senhora que mal me dirigia a palavra ou sequer conseguia me olhar por mais de um ou dois segundos.

            Depois de almoçarmos – em uma verdadeira sessão de um silêncio constrangedor ao redor da mesa – minha tia pegou suas coisas e eu não quis acompanhá-la até o carro. Fiquei da janela do quarto, no segundo andar, olhando-a enquanto ela entrava no veículo e ia embora, parecendo não sentir nem uma mísera gota de remorso por me deixar para trás. Ela retornaria em alguns dias para o Natal e só depois disso eu iria enfim embora.

            Teria catorze longos dias até lá.

            Trezentas e trinta e seis longas horas. Isso dava mais de vinte mil minutos. Eu nem queria calcular os segundos, para não sofrer ainda mais. Esse tempo iria se arrastar, eu sabia.

            Deitei na cama e mexi um pouco no celular, embora não tivesse muito o que fazer. Naquele fim de mundo não existia sinal de telefonia, muito menos wi-fi. Havia uma linha de telefone fixo, e com ela eu poderia fazer algumas ligações “com moderação”. Pretendia, mais tarde, ligar para a Duda, minha melhor amiga. Lamentava não ter nada de interessante para contar, só a lamentar.

            Tinha levado vários pacotes de biscoitos e salgadinhos na mala, por isso não precisei descer para jantar. Fiquei tentando fazer alguns desenhos no caderno que usava para rasurar modelos de roupas, mas nada ficava muito bom. Até o sono vir e, então, desliguei a lâmpada do abajur ao lado da cama e só nesse momento reparei que as estrelas presas ao teto brilhavam com a ausência de luz. Sorri levemente, pensando que aquilo só podia mesmo ser coisa da minha mãe.

            Desde que chegara àquela casa, era a primeira vez que começava a tentar imaginar a minha mãe com a mesma idade que eu, dezesseis anos, vivendo ali, dormindo na mesma cama onde eu estava agora. Pensei que as paredes descascadas antigamente deveriam acolher pôsteres de suas bandas e seus atores preferidos. Imaginei a velha TV de tubo, de 14 polegadas, que ficava diante da cama, sendo usada por ela para assistir a programas de clipes musicais ou suas novelas favoritas. Perguntei-me se as estrelas brilhantes do teto acalentavam um pouco da sua solidão quando a irmã mais velha saiu de casa para morar em outra cidade. Ou mesmo se, aos dezesseis, ela ainda teria medo do escuro.

            Nunca tive medo do escuro. Mas, desde que a minha mãe se foi, passei a sentir-me agoniada nele. Era sempre no escuro que a solidão e a saudade batiam mais fortes.

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12 de dezembro

            Tinha planejado ter uma longa noite de sono. Apagar por umas... sei lá... dez, doze horas. Quanto mais tempo passasse dormindo, menos tempo passaria acordada, o que talvez me fizesse sentir mais rápidos os dias em que precisaria ficar por ali. No entanto, meu plano foi frustrado.

De forma nada agradável, fui acordada na manhã seguinte com a luz solar batendo subitamente contra o meu rosto. Abri as palmas das mãos diante das pálpebras ainda fechadas, tentando me proteger da claridade súbita.

— Ai, foi mal! Não queria te acordar!

Com dificuldade, consegui abrir os olhos, visualizando a dona daquela voz que só podia estar praticando o mais puro e completo sarcasmo. Como ela entrava no meu quarto e abria a cortina deixando o sol vir direto em mim, e ainda tinha a cara de pau de dizer que não pretendia que isso me acordasse?

Ela sorriu e, observando-a um pouco melhor, percebi que era uma garota que devia ter em torno da minha idade. Provavelmente esta seria só uma impressão, porque queria acreditar que, por mais idiota e exploradora que minha avó pudesse ser, ela não contrataria alguém menor de idade para trabalhar na sua casa.

Porém, não sabia se dava para esperar respeito a leis trabalhistas de alguém que não nutria muito respeito nem pela própria família.

— É que já passou das oito da manhã e está um dia lindo lá fora! — ela completou, ainda sorrindo.

Tive vontade de retrucar com algum xingamento. Contudo, reparei que o sorriso e a empolgação dela pareciam bem sinceros. Ela continuou me olhando com seus grandes olhos azuis, visivelmente aguardando que eu concordasse com sua sugestão, ao mesmo tempo em que puxava para trás os cabelos que pareciam terem naturalmente uma cor clara, intensificada por mechas loiras em todo o seu comprimento.

— Quem é você? — perguntei, enfim. Apresentar-se, antes de qualquer coisa, teria sido educado da parte dela. Ainda mais depois de me acordar daquele jeito.

— Meus amigos me chamam de Bia, pode me chamar assim também.

Quis dizer que não ficaria naquela casa tempo suficiente para que nos tornássemos amigas, mas decidi que seria um tanto grosseiro da minha parte. E eu não era uma pessoa grossa. Estava apenas terrivelmente mal-humorada, por motivos bem óbvios.

Sentei-me na cama e esfreguei as pálpebras, ainda tentando me acostumar à claridade. O sol parecia bem forte, o que era típico para um mês de dezembro.

Enquanto isso, ouvia os barulhos que aquela garota fazia enquanto aparentemente limpava o quarto.

— Você trabalha aqui? — indaguei, por fim.

Ela riu, como se meu questionamento tivesse algo de engraçado.

— Não. Só estou dando uma ajuda. Quem cuida da limpeza da casa é a Carmem, conhece?

Movimentei a cabeça em uma afirmação. Carmem era a moça que recebera minha tia com um abraço logo que chegamos. Dos funcionários dali, era a que vinha sendo mais agradável comigo, isso eu não poderia negar.

— Você é parente dela ou coisa do tipo? — perguntei.

— “Coisa do tipo”. — Ela soltou uma risadinha. — Anda, sai desse quarto e vai respirar um pouco. Não pode continuar como uma ave trancafiada.

Deixando o meu mau humor de lado, a ideia não era de todo ruim. Afinal, minha tia me levara para lá com a intenção de que eu conhecesse um pouco do ambiente em que minha mãe crescera. Claro, isso com base em um sonho estúpido, ignorando completamente a minha opinião e minha vontade a respeito. Mas, já que estava ali... E que meu plano de dormir até meio-dia tinha sido boicotado... Talvez caminhar um pouco fosse bem mais agradável do que passar os próximos treze dias – longas trezentas e doze horas – trancada em um quarto.

A pergunta era: para onde, exatamente, eu iria?

Olhei para cima, pensativa, observando as estrelas que, com a claridade ambiente, eram apenas objetos transparentes colados ao teto, sem qualquer brilho. Lembrei-me de como ficavam lindas à noite, com as luzes apagadas, e isso me fez mais uma vez pensar na minha mãe. Ela costumava dizer que tinha sido uma criança e uma adolescente caçadora de aventuras. Talvez, naqueles dias em que estivesse ali, eu pudesse procurar por algumas também.

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Depois de tomar um banho e me trocar, desci as escadas de forma apressada, já pretendendo simplesmente sair sem ter que me deparar com a minha avó. Já chegava a porta quando alguém me chamou e eu parei, sobressaltando com o susto. Voltei-me em direção à porta que ia para a cozinha e vi Carmem, que sorria para mim.

— Bom dia, querida. Não vai tomar café da manhã?

Ela realmente era bem mais simpática do que qualquer outra pessoa naquela casa. Claro, com exceção da menina que no momento arrumava o meu quarto.

— Não. Vou sair para caminhar um pouco. Provavelmente também não volto para o almoço.

— Isso é ótimo, você não veio para cá para ficar trancada no quarto. Mas não pode sair sem comer. Venha, preparo algo rápido para você.

Ela veio até mim e, sem qualquer cerimônia, segurou a minha mão e começou a me puxar. Travei, externando minha preocupação:

— Dona Sandra... digo, a minha avó... não fica muito à vontade durante as refeições com a minha presença.

Ela olhou rapidamente para os dois lados, aproximou um pouco mais o rosto do meu e sussurrou:

— Ela está no quarto. Anda empenhada em fazer sapatinhos de crochê para serem distribuídos com outras doações durante a festa de Natal da igreja. Ela está bem apressada para conseguir terminar todos a tempo, acho que só deve descer na hora de preparar o almoço.

Suspirei e, vencida, acabei concordando. Carmem me acompanhou até a cozinha e sentei-me, servindo-me de torradas e geleia. Comecei a comer com uma certa pressa. Queria sair o mais rápido possível daquela casa.

— Fico mesmo muito feliz que tenha decidido andar um pouco — Carmem falou e me entregou um copo de achocolatado, puxando uma cadeira e se sentando ao meu lado.

Ela parecia realmente preocupada comigo. E eu já podia prever o motivo.

— Minha tia te pediu para cuidar de mim, não é?

— É. Mas eu cuidaria de qualquer forma. Comecei a trabalhar aqui ainda muito nova, e conheci sua mãe quando ela ainda era uma criança. Sei que ela também ia querer que eu cuidasse de você. Além do mais, tenho uma filha da sua idade.

Ah, claro. A menina do quarto. Ia comentar algo a respeito dela, mas o telefone tocou na sala e ela se levantou e correu para atender. Apressei-me em engolir o restante da torrada e virei goela abaixo o leite com chocolate. Então saí, apressada. Acenei para Carmem quando passei por ela na sala e ela acenou de volta, ainda falando ao telefone.

A vida rural nada tinha a ver com a rotina de uma cidade grande e, por mais que eu não fosse alienada o suficiente para desconhecer isso, ainda assim estar ali era um choque para mim. Enquanto caminhava, olhava para o chão de terra, para os insetos diferentes que vez ou outra passavam pelo meu caminho e para tudo de diferente pelo meu trajeto. Apesar de ser uma estrada, poucos carros passavam por ali, mas vez ou outra vinham homens e mulheres em carroças sendo puxadas por cavalos. Em uma delas, vi um grupo de crianças que pareciam ir para uma escola. De comércios, tudo o que vi foi uma mercearia, onde pensei em passar na volta para renovar meu estoque de guloseimas para comer durante minhas noites e não precisar descer para jantar com a minha avó. Aliás, esperava também encontrar algum lugar para almoçar, para que neste dia sequer precisasse voltar para casa antes de começar a anoitecer.

Avistei ainda de longe o famoso lago do qual minha mãe tanto falava e mudei o trajeto que seguia, indo para lá. Parei na beira, olhando para as águas tão tranquilas. Minha mãe me contara muitas histórias daquele lugar. Ia muito lá quando criança, acompanhada dos amigos, especialmente nos meses de verão. Fechei os olhos, sentindo uma leve brisa que tocava meu rosto e balançava suavemente os meus cabelos, e podia jurar que era capaz de ouvir os risos de crianças correndo ao meu redor, mergulhando e nadando nas águas tranquilas. Tentava imaginar que rosto minha mãe teria na infância. Entretanto, isso era tão difícil para mim. Quando foi expulsa da casa dos pais, ela não levara nenhuma fotografia com ela. Lembro que às vezes ela dizia sobre ter mudado muito com a gravidez, a maturidade e, claro, a doença. Queria muito ter lembranças dela saudável, mas não tinha. Nenhuma.

— Ei, você pode me ajudar? — Uma voz que não era infantil se sobressaiu a todas as outras. — Ei, você!

Logo compreendi que tal chamado, ao contrário do som da alegria infantil, não era coisa da minha cabeça. Olhei ao redor. Não vi ninguém.

— Tô ficando meio doida... — resmunguei, quase convencida daquilo.

No entanto, a voz mostrou ser real ao insistir:

— Aqui embaixo!

Voltei a olhar para o lago e fui seguindo os olhos até uma parte em que o terreno se elevava, ao mesmo tempo em que as águas mantinham o mesmo nível. Havia uma descida de barranco bem íngreme e ali estava um garoto. Um adolescente como eu.

Segui pela margem indo em direção a ele, intrigada sobre como ele tinha ido parar ali. Compreendi quando cheguei mais perto e vi que ele trazia algo em mãos: um pássaro, que parecia ferido. Ele não precisou dizer nada para que eu compreendesse que ele precisava de ajuda para subir. Seria uma tarefa difícil sem poder usar as duas mãos.

Parei por um momento, pensando no melhor jeito de conseguir ajudá-lo. Avistei uma árvore bem próxima da margem e tive uma ideia. Tirei o cinto que adornava a bermuda jeans que eu usava e com ele contornei o caule da árvore. Com uma das mãos, segurei firme as duas pontas. Abaixei-me o máximo que pude e estiquei a outra mão para baixo, em direção ao garoto. Com certo esforço, ele conseguiu alcançá-la e a segurou firme, usando-a de apoio para conseguir subir. Quando ele chegou à margem, a força que eu fazia para sustentar o peso dele fez com que eu caísse para trás, sentada no chão de terra. Não tive muito tempo para lamentar as roupas sujas, pois estava preocupada com o pequeno animalzinho ferido.

— Ele está bem? — indaguei enquanto me levantava.

O garoto também não parecia muito preocupado comigo. Apenas olhava para o pássaro, que piava muito.

— Parece que machucou a asa. Não posso deixá-lo aqui, tem predadores.

Confesso que a palavra “predadores” logo me remeteu a onças ou lobos e isso me deixou um tanto assustada. Mas logo usei meu lado racional para imaginar que ele certamente falava de algum animal bem menor. Oras, era apenas um pássaro, até mesmo um filhote de gato seria um predador para ele.

— Podemos levá-lo ao veterinário — sugeri.

Ele balançou a cabeça, parecendo saber exatamente o que fazer. Virou as costas para mim e começou a se afastar. Parou alguns passos à frente, virando o pescoço para trás e voltando a me olhar.

— Você não vem?

Fiquei confusa sobre se deveria mesmo ir atrás, mas, por fim, acabei concordando. Ele voltou para a estrada principal e caminhou em frente até entrar em um portão de madeira. Continuei a segui-lo pelo quintal, até que ele parou na varanda da casa e virou-se para mim, estendendo em minha direção as duas mãos unidas em forma de concha, onde trazia o pássaro. Quando entendi o que e queria que eu fizesse, entrei em um leve estado de pânico.

— Quer que eu o segure? Não sei fazer isso.

As sobrancelhas dele se ergueram em uma expressão de assombro.

— Não sabe segurar algo?

— É que... posso acabar machucando-o, ou... ele pode ficar agitado e me machucar.

— Você só o machucará se tiver essa intenção. E... Olha o tamanho dele. Não te machucaria nem se quisesse.

Reparei que ele parecia meio aflito, embora ao mesmo tempo mantivesse uma postura de quem sabia exatamente o que fazia. Assim, acabei confiando e estendi minhas mãos. O bichinho veio para mim sem qualquer resistência. Continuava a piar, como se tomado por dor e medo, e, apesar do nervoso que eu ainda sentia ao segurá-lo, percebi o quanto tinha sido ridícula por sequer cogitar que ele pudesse me fazer algum mal. Era tão pequeno e indefeso que, lógico, era eu que me mostrava como uma ameaça para ele e não o contrário. O corpinho dele estava frio e reparei que as penas se encontravam meio úmidas e ele tremia.

— Calma, vai ficar tudo bem... — sussurrei, ao mesmo tempo em que me sentia meio boba. Não acreditava que aves silvestres compreendessem palavras humanas.

Levou alguns minutos até que o garoto voltasse trazendo uma caixa de papelão toda forrada com jornais. Em um canto, havia um pedaço de pano simulando uma espécie de ninho. Ali ele colocou uma bolsa de água quente, ajeitando-a por baixo do pano. Então, sinalizou com um olhar que eu deveria colocar o pássaro ali dentro. Soltei-o dentro da caixa e ele imediatamente se aninhou sobre o espaço quentinho e fechou os olhos. Percebi, ali, que ele ficaria bem.

O garoto voltou a entrar em casa, retornando em mais alguns minutos, trazendo um pote pequeno e uma pinça.

— O que é isso? — perguntei, me referindo ao conteúdo do pote.

Ele usou a pinça para pegar um pedacinho minúsculo do conteúdo.

— Ração de cachorro umedecida.

Franzi a testa, duvidando se aquele seria mesmo o alimento certo para o bichinho. Para a minha surpresa, logo que a ponta da pinça se aproximou, ele abriu bem o bico, aceitando a comida. Sorri, encantada. Porém, ainda restava uma dúvida:

— E sobre a asa ferida?

— Nisso não posso mexer, senão posso acabar piorando o estado dele. Mas vou ligar para a minha irmã, ela vai me ajudar a resolver. Ela está no penúltimo ano da faculdade de Veterinária.

— Você vai ficar com ele?

— Só até ele melhorar. Daí poderei soltá-lo de novo. Aves não devem ser trancafiadas.

Lembrei que a Bia usara aquela mesma expressão comigo pela manhã. “Ave trancafiada”. Vivera como uma nos últimos dois dias e a experiência não tinha mesmo sido nada boa.

            Quem sabe pelos próximos treze dias que eu ficaria por ali, pudesse me dar ao luxo de voar um pouco?

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