Capítulo 2

   O quarto era fresco e confortável. A luz se filtrava através de cristais brilhantes como joias em tons lápis-lazúli, vermelho e esmeralda. A Lucy pareceu que se encontrava em uma gruta no fundo do mar, em uma cama muito confortável.

Voltou a dormir e, quando despertou de novo, a luz era mais brilhante e as cores ainda estavam ali. Embora logo que podia abrir os olhos, distinguiu as lentejoulas de faiscantes cores sobre o lençol branco.

Embora formoso, era estranho, e Lucy tentou sentar-se na cama para olhar a seu redor. Mas um golpe de dor em todo o corpo, embora mais intenso em uma mão e no ombro, deixou-a imobilizada. E foi então quando ouviu a voz que já lhe era familiar.

— Não se mova, Lucy Forrester. Aqui está a salvo.

A salvo? O que tinha ocorrido? Onde estava?

Lucy se esforçou por levantar a cabeça e olhar a alta figura inclinada sobre ela, mas um olho se negou a abrir de todo e o colarinho que levava em torno do pescoço lhe impediu de fazer o menor movimento. Entretanto, embora não podia vê-lo completamente, recordou ao homem com a faca na mão que lhe ordenava que não se movesse. Então sentiu a boca seca, como se tivesse tragado areia.

— Lembra-se do acidente?

— Lembro de você.

— Muito bem.

A pesar do keffiyeh que lhe cobria a metade do rosto, Lucy soube que esse rosto de ferozes olhos escuros, maçãs do rosto altas e nariz aquilino era o do homem que aparecia tão vividamente em seus sonhos. Também observou que levava os abundantes cabelos escuros atados na nuca e que só sua voz era suave. Seu instinto de mulher vulnerável lhe advertiu que o homem que se encarregou de limpá-la quando jazia suja e ensanguentada no leito do hospital podia ser bastante perigoso.

— Você é Hanif Al-Khatib. Salvou-me a vida e me tirou do hospital.

— Isso mesmo, vejo que começa a recordar. Sente-se melhor?

— A verdade é que não me sinto bem. Onde estou? — Perguntou com a voz enrouquecida por causa da secura na garganta.

Hanif encheu um copo de água e, pondo um braço nas costas da jovem, ajudou-a a levantar-se lentamente; logo aproximou o copo aos lábios inchados. Lucy bebeu um pequeno gole, mas o resto se derramou pelo queixo e caiu dentro do colarinho.

Hanif secou seu rosto e o pescoço com uma pequena toalha.

— É necessário o colarinho? — Perguntou nervosa ao tempo que se tocava a garganta.

— Por experiência posso lhe dizer que não, não ajuda muito, mas o médico recomendou que ficasse com ele até que estivesse totalmente acordada.

— Experiência? É que também se acidentou com seu carro?

— Não, mas alguns cavalos me atiraram ao chão enquanto jogava pólio.

— Onde estou? Quem é você?

— Quando vivia na Inglaterra meus amigos me chamavam Hanif.

— E seus inimigos? — Disparou com uma aspereza produzida pela ansiedade. E se arrependeu imediatamente.

— Hanif bin Jamal bin Khatib Al-Khatib — respondeu em tom inexpressivo —. E se meus inimigos forem prudentes, nunca o esquecerão.

Steve lhe tinha explicado aquilo da longa cadeia de nomes.

— Bin significa «filho de»? — Perguntou, e Hanif assentiu —. Assim que você é filho de Jamal, que a sua vez é filho de Khatib…

— Da casa de Khatib.

— E esta é sua casa? — Perguntou. Consciente da deliciosa decoração da estadia.

— Você é minha convidada, senhorita Forrester. Estará mais confortável aqui que no hospital. A menos que tenha amigos em Ramal Hamrah e prefira estar com eles. Posso me comunicar com alguém? Tentamos fazê-lo com sua casa da Inglaterra.

— Chamaram?

— Sim, mas infelizmente ninguém atendeu ao telefone. Pode ligar você mesma, se assim o desejar — sugeriu ao tempo que indicava o aparelho posto na mesinha de noite.

— Não — se apressou a responder em um tom muito abrupto —. Ali não há ninguém. Não há ninguém em nenhuma parte. Agora vivo sozinha. Sinto muito lhe causar tantos problemas — disse antes de examinar as contusões dos braços e os pequenos cortes.

— Não se alarme, em uma ou duas semanas a mais tudo isso terá desaparecido. Gostaria de comer algo?

— Não quero lhe causar mais problemas. Vou me vestir e se a gentileza de chamar um táxi…

— Um táxi? — Perguntou com o cenho franzido.

— Sim, para ir ao aeroporto.

— Não o aconselho. Deveria repousar mais alguns dias.

— Não posso ficar aqui.

— Advirto-lhe que demorarão um tempo em lhe entregar um passaporte novo e trocar sua passagem. Lamento lhe dizer que quase todos seus pertences ficaram destruídos junto com o veículo. Por favor, peço-lhe que o deixe nas mãos de meu ajudante. Ele se encarregará de tudo. Quando seus documentos estiverem preparados, você já se recuperou dos ferimentos, Insha’Allah.

— A que devo tanta amabilidade?

Hanif a olhou surpreso.

— É estrangeira. Precisa de ajuda e eu fui o eleito para providenciar essa ajuda.

— Eleito? Você me resgatou de um veículo a ponto de explodir. Para muitas pessoas isso teria sido o suficiente — replicou e imediatamente se deu conta de que podia parecer ingrata —. Sei que lhe devo a vida.

Suas palavras provocaram outra inclinação de cabeça.

— Está em boas mãos.

— Não estou em mãos de ninguém — rebateu imediatamente.

Possivelmente lhe devia a vida, mas tinha aprendido com muita dor a não confiar em ninguém. Nem sequer nos que tivesse tido direito a confiar. Quanto ao conceito religioso…

— Todos estamos nas mãos de Deus — replicou Hanif, sem se mostrar ofendido.

— Sinto muito. Você é muito amável e minhas palavras podem lhe haver parecido ingratas.

— Ninguém está em seu melhor momento quando sofreu uma experiência como a sua — repôs com gravidade —. Precisa comer algo para recuperar as forças. Aconselho que não tente se mover até uns dias a mais — acrescentou ao ver que se esforçava por negar com a cabeça —. O que posso lhe oferecer?

O que Lucy desejava era mais água, mas não queria voltar a derramá-la como uma idiota.

Como se lhe tivesse lido o pensamento, Hanif se sentou na beirada da cama, ofereceu-lhe o braço para que se elevasse e com a outra mão lhe aproximou o copo aos lábios.

— Posso levantar sozinha — disse Lucy enquanto se levantava apoiada em um cotovelo, mas a pontada de dor foi tão intensa que desabou.

O ombro e o peito do Hanif a impediram de cair sobre os travesseiros e sustentou com o braço todo o peso de seu corpo.

—Tudo a seu tempo — lhe rogou enquanto lhe aproximava o copo aos lábios.

Ela se concentrou no copo, evitando seu olhar. Não estava acostumada a essa proximidade física, muito íntima.

— É o suficiente? — Perguntou ao ver que o copo ficava vazio.

Ela elevou a vista e seus olhares se encontraram. Lucy experimentou a incômoda sensação de que os olhos de Hanif bin Jamal bin Khatib Al-Khatib podiam ler até o mais profundo de sua alma. Hanif voltou a acomodá-la nos travesseiros e o ligeiro peso da jovem lhe fez recordar a fragilidade de outra mulher cujos olhos escuros lhe imploravam que a deixasse partir. Eram lembranças que ele tinha tentado inutilmente sepultar em sua memória.

Sob o aroma de hospital e a pó do deserto, do corpo da jovem se desprendia um suave e quente aroma feminino.

«Esta mulher é diferente», pensou Hanif com certo assombro.

E era certo. Noor tinha os olhos escuros, uma pele dourada e era suave e doce como o mel. Lucy Forrester não se parecia em nada com ela. Sua esposa tinha sido forte, estável, uma rocha em um mundo que se desintegrava. Em troca a estrangeira se mostrava nervosa, inquieta, preocupada e sempre à defensiva, e ele intuía que necessitava dele como Noor nunca o tinha feito.

— Tenho certeza de que gostaria de tomar chá, e talvez alguma comida ligeira.

— Na realidade neste momento a única coisa que preciso é tomar banho e lavar o cabelo.

— Parece-me muito excessivo agora. Talvez se trouxer uma bacia com água….

— Não estou inválida. Só tenho uns machucados. Você verá, sei que tenta me ajudar, me mostre onde está o banheiro que poderei arrumar isso sozinha.

— Aqui não há mulheres que possam ajudá-la. Se acreditar que pode fazê-lo sozinha… — comentou ligeiramente irritado diante a obstinação da jovem.

— É obvio que posso. Estou segura de que não permitiria que um homem estranho se encarregasse de lavar a sua mulher. Talvez nem sequer um enfermeiro.

— Sim, eu teria permitido que inclusive um marciano se ocupasse de cuidar de minha mulher se isso a tivesse ajudado em algo.

Lucy se perguntou por que ele falava no passado.

— Olhe, agradeço a sua ajuda, mas acredite que me sentirei bem assim que levante da cama — declarou, mas ao notar a dúvida no rosto do homem, acrescentou —: Falo sério. Além disso, não só preciso me lavar, você compreende.

— É uma mulher muito decidida, Lucy Forrester. Se cair e se machucar mais pode ser tenha que voltar para hospital outra vez.

— Se isso acontecer, dou-lhe permissão para me dizer que me advertiu sobre isso.

— Muito bem. Espere um pouco — disse antes de sair do quarto.

Lucy jogou o lençol para trás e teve que admitir que talvez se precipitou.

Uma ironia. Toda sua vida mordeu a língua para manter a paz e evitar problemas, mas assim que se havia visto livre fez o que sua avó lhe advertia constantemente: tornou-se como sua mãe. Impulsiva, impetuosa, sempre envolta em dificuldades.

Sim, sempre em dificuldades.

Se Hanif e todos seus sobrenomes não tivessem estado perto, teria se queimado dentro desse veículo.

O dinheiro.

Sempre tinha estado na ruína; mas quando o teve não soube o que fazer com ele. Durante umas semanas Steve tinha feito acreditar que era uma mulher amada e desejada. Tinha sido uma fraude, um embusteiro, um estelionatário, mas lhe tinha ensinado o valor do dinheiro. Tudo foi bem até que conseguiu mover as pernas até a beirada da cama e logo tentou ficar de pé. E foi então quando descobriu o que era uma dor insuportável. Mas não gritou quando se viu no chão.

Minutos depois, de volta ao quarto, Hanif deixou cair o que trazia nas mãos, correu para ela e a elevou murmurando suaves palavras que Lucy não compreendeu.

— Não pôde ter esperado uns minutos, Lucy?

— Acreditei que podia me dirigir sozinha ao banheiro. O que está acontecendo? —Perguntou com a cabeça apoiada no ombro de Hanif.

— Uma entorse no tornozelo. Isso é tudo.

— Tudo?

— Sei que é muito doloroso — disse em tom compassivo.

Quando tentava levantá-la, Lucy sofreu um acesso de vômitos, embora não tinha nada no estômago para colocar para fora salva água. Quando o estômago se acalmou, Lucy transpirava tremendo de debilidade. Sem deixar de sustentá-la, Hanif lhe ofereceu água e logo brandamente lhe enxugou a frente e lhe limpou a boca.

— Fez muito bem — murmurou ela quando pôde falar —. Tem certeza de que não é enfermeiro?

— Tenho certeza, embora tivesse que cuidar de minha esposa quando estava morrendo — disse inexpressivamente.

Mas Lucy não se enganou. Ela também tinha aprendido a ocultar seus sentimentos durante anos até que Steve apareceu em sua vida.

— Sinto muito… Hanif.

— Não me surpreende que tenha sofrido náuseas. Nestes casos é normal — comentou com frieza —. No hospital não disseram o que tinha?

— Tentaram explicar isso, mas entendi muito pouco.

— Fizeram-lhe uns exames para descartar uma lesão cerebral. Felizmente não havia nada. O mais sério é o do tornozelo.

— Sério? Não haverá mais surpresas desagradáveis? Alguma costela quebrada?

— Só contundida, pequenos cortes e lacerações que sararão muito em breve. Mas terá que apoiar-se em umas muletas ao menos umas duas semanas. Tive que deixá-la só para ir buscá-las.

— Não sabia.

— É obvio que não. Devia ter dito. O que acontece é que estou acostumado que me obedeçam sem fazer perguntas — disse com um sorriso.

— Verdade? Odeio lhe dizer isto, Hanif, mas as mulheres ocidentais já não estão a acostumadas a obedecer.

— Não? Queria tomar banho, verdade?

— Por favor.

— Então tem que fazer o que ordeno.

— O que? — Exclamou entre risadas —. Sim, senhor!

— Apoie-se em mim.

Lucy se apoiou em seus ombros e ele a deixou sentada na beirada da cama. Suas mãos eram fortes, feitas para a segurança de uma mulher. Então ela pensou que Hanif era tudo o que Steve não era. Uma rocha. Em troca o homem com o que se casou tão precipitadamente era como as areias movediças.

Hanif lhe entregou as muletas e Lucy ficou de pé.

— Não vou cair. Posso fazê-lo sozinha — protestou tremendo pelo esforço de sentir suas mãos nas costas.

Mas ele não se moveu. Estúpido. Essa mulher não significava nada para ele. Era um homem insensível. Entretanto, desde que tinha descoberto o veículo derrubado no deserto, seu mundo se converteu em uma corrente de emoções. Irritação, ira, preocupação. E se negava a reconhecer algo mais profundo.

— Faremos à minha maneira ou não se fará — replicou em tom cortante.

Sem dizer uma palavra, Lucy deu um passo adiante encostada ao corpo de Hanif; suas coxas roçavam o tecido escuro e suave da roupagem daquele homem.

— Acreditei que isto ia ser mais fácil — comentou com a frente apoiada no rosto dele.

— Porque não está acostumada às muletas — respondeu ao mesmo tempo em que lhe colocava uma mecha de cabelo atrás da orelha.

— Obrigado — disse Lucy —. Normalmente o tenho recolhido na nuca. Quando chegar a casa o cortarei.

— Por quê? — Perguntou horrorizado —. Seus cabelos são muito bonitos.

— Meu cabelo é um estorvo. Quis cortá-lo antes de…

— Antes de?

Lucy se encolheu de ombros.

— Antes de vir a Ramal Hamrah. Bom, agora já posso sozinha.

Contra sua vontade, Haniz deu um passo atrás, embora sem soltá-la de todo.

Passo a passo cruzaram o quarto até que chegaram ao banheiro.

— Aqui está a banheira, já pode deixar as muletas. Eu a sustento, não cairá.

Lucy sentiu todo o corpo em agonia. Seus dedos estavam tão agarrados às muletas que era incapaz do soltar.

— Não posso.

Hanif murmurou algo com impaciência, rodeou-lhe a cintura, encostou-a em seu corpo e lhe tirou as muletas das mãos.

— Já tem feito bastante por hoje.

— Não sairei daqui sem haver tomado banho.

— Você é uma mulher muito tenaz — comentou sorrindo a seu pesar.

— Nunca me acusaram que ter deixado algo sem terminar. Olhe, a banheira tem um assento. Se abrir as torneiras e me passar as muletas, poderei me dirigir sozinha.

Depois de comprovar a temperatura da água e certificar-se de que tinha tudo ao alcance da mão, Hanif saiu do banheiro.

— Se precisar gritarei. De acordo?

— De acordo.

Com a perna entalada fora da água, Lucy conseguiu tomar banho com grande esforço e força de vontade, mas teve que renunciar a lavar o cabelo porque era mais do que podia fazer. Quando ao fim colocou o penhoar que Hanif lhe tinha deixado, estava ao limite de suas forças.

— Hanif?

Hanif abriu a porta em um segundo.

— Obrigado, não podia abri-la com as mãos ocupadas — disse desfalecida.

— É incorrigível, Lucy Forrester. Agora tomará uma xícara de chá, comerá algo e logo poderá descansar.

   Hanif saiu para passear pelos atalhos do jardim ao redor do pavilhão onde repousava Lucy Forrester.

Estava rodeado por altos e grossos muros que o protegiam da invasão da areia do deserto e dos animais selvagens. Um manancial natural regava a terra das hortas e do jardim, que tinha sido desenhado fazia séculos como um reflexo terrestre do paraíso.

Hanif estava acostumado a passear entre as sebes de flores com a esperança de encontrar certa paz para seu espírito. Uma paz que procurava fazia três anos, sem êxito. Entretanto, esse dia o sentimento de culpa por seu egoísmo não era a causa de sua perturbação.

Quando se encontrava contemplando a água cristalina de um lago, Zahir se aproximou muito agitado.

— Senhor! O escritório do emir anunciou uma visita.

Durante meses ninguém se aproximou dali, assim não era uma coincidência. Algo tinha que ver com Lucy Forrester.

— Quem vem?

— A princesa Ameerah, senhor.

— Ao que parece acreditam que devo ter uma dama de companhia para não estar a sós com a estrangeira. Faltou tempo para informar a meu pai do ocorrido, verdade, Zahir?

— Senhor, eu não… — protestou imediatamente, logo acrescentou —: Para falar a verdade, seu pai está preocupado com você. Compreende sua dor, mas precisa de você, Hanif.

— Tem outros dois filhos. Pode passar sem mim.

— Poderia jurar que não lhe reconheceram no hospital, mas o fato de que seu pessoal tenha tirado dali à senhorita Forrester provocou muitos comentários. Estava claro que as notícias não demorariam em chegar aos ouvidos de seu pai.

Hanif concluiu que o emir pensava que se podia levar a sua casa a uma desconhecida e cuidar dela, bem podia lhe dedicar um tempo a sua própria filha. — Se encarregue de que tenham tudo preparado para receber à princesa — disse antes de se afastar.

— Já o fiz, senhor — respondeu Zahir elevando a voz para fazer-se ouvir sobre o ruído do helicóptero que se aproximava—. Irá recebê-la?

— Agora não. A viagem a terá fatigado. Talvez amanhã.

«Talvez amanhã», frase que se repetia desde fazia três anos. Portanto, um dia mais não teria muita importância.

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