Capítulo 3

Lucy rejeitou os calmantes que lhe ofereceu. Apesar da negativa, Hanif pôs na mesinha duas cápsulas junto a um copo de água se por acaso mudasse de ideia. Antes de retirar-se do quarto deixou uma campainha para que chamasse em caso de necessidade.

   Lucy teve que admitir que estava exausta e não só por causa de seu estado físico.

Sofria de insônia desde que lhe tinha chegado as contas do segundo cartão de crédito. Quando lhe chegou o do primeiro cartão imaginou que se tratava de um engano, enviou um correio eletrônico para Steve e lhe assegurou que se encarregaria de esclarecer o problema. Mas o segundo cartão, dois dias mais tarde, terminou por convencer de que o engano só tinha sido dele.

Precisava pensar, decidir o que ia fazer e quanto devia contar a Hanif Al-Khatib. Não queria lhe causar problemas, mas tampouco gostava de comparecer perante as autoridades, porque o teria que fazer quando ele se inteirasse da verdade.

Através de Internet se informou que Ramal Hamrah era um estado moderno que respeitava os direitos humanos, embora ignorasse até que ponto respeitaria os seus quando a acusasse do roubo de um veículo. Nesse momento lhe custava convencer-se a si mesmo de que o que tinha feito tinha justificativa.

A única certeza com que contava em sua vida atual era que se comportou como uma idiota. Se tivesse ido à polícia em lugar de ir atrás de Steve como uma cobra vingativa, não se veria envolta em tantos problemas.

Talvez um bom advogado pudesse alegar que tinha atuado impulsionada por um desequilíbrio mental transitivo e culpar a Steve de todo o ocorrido. Mas o que tiraria com isso? Inclusive se pudesse contratar um advogado Steve não poderia lhe devolver o dinheiro no caso de que o enviassem para a prisão. Pelo resto, já não se tratava do dinheiro. Quando partiu no jipe em busca de seu marido não pensava em si mesma. Tudo o que queria era que ele arrumasse as coisas.

Incapaz de pensar com claridade e com o corpo dolorido, decidiu tomar um calmante. Quando levantava a mão para alcançar as cápsulas se deu conta de que não estava sozinha.

— Olá — Lucy tentou sorrir apesar de seu rosto inchado.

A garotinha, envolta em brilhantes e exóticas sedas, não se moveu nem falou, meio escondida atrás da porta.

— Como se chama? — Perguntou-lhe Lucy.

Assustada, a pequena deixou escapar um grito e fugiu com toda pressa fazendo soar os pequenos braceletes de ouro.

Imediatamente apareceu uma figura coberta com um amplo e ligeiro abbeyah negro sobre o vestido e fez uma breve pausa junto à porta.

— Sinto muito. — Quase sem fôlego antes de desaparecer rapidamente.

«É que tão mau meu aspecto? », pensou Lucy com ansiedade.

No banheiro tinha que haver um espelho. Sempre havia um sobre o lavabo, inclusive na casa de sua avó onde a vaidade se considerava um pecado.

Depois de comprovar com os dedos que a cara estava muito inflamada, decidiu enfrentar-se no espelho.

Hanif tinha deixado as muletas no outro extremo do quarto, mas não importava; tinha que inteirar-se do pior por si mesma.

Lucy se sentou na beirada da cama e tentou ficar de pé apoiando-se na mesinha. Todo seu corpo se queixou de dor e instintivamente se agarrou à mesinha com todo seu peso. O pequeno móvel se cambaleou e os calmantes, o copo de água, a campainha e o telefone foram parar no chão.

Lucy ficou olhando a ofensa e tudo o que pôde fazer foi sujeitar-se à cama com força e rezar. Quando se acalmou, foi até a porta do banheiro saltando penosamente com a perna boa e apoiando-se nas paredes com os dentes apertados.

Finalmente abriu a porta e se deu conta da inutilidade de seus esforços. A julgar pelas manchas ainda sujeitas à parede que havia sobre o lavabo, o espelho tinha sido retirado.

Tão mau era seu aspecto como para que tivessem tido que tirá-lo?

De repente e sem aviso, as pernas lhe falharam e se viu no chão sem forças para mover-se. Ainda tentava ajoelhar-se quando Hanif irrompeu junto a ela.

— Não posso deixá-la só nem um minuto, Lucy Forrester?

Ela fez uma careta que tentava ser um sorriso.

— A força da gravidade pôde comigo.

— Acreditei que tínhamos combinado que se precisasse de algo usaria a campainha.

— Disse que tinha que fazê-lo, mas não recordo ter aceitado a ordem — disse sem explicar que, como ex-escrava de sua avó, tinha tomado aversão às campainhas—. Olha, uma garotinha apareceu por aqui e se assustou comigo, assim quis me olhar no espelho. Quando falei com escapou correndo.

— Ameerah? Esteve aqui?

— Esse é seu nome? A pobrezinha parecia verdadeiramente assustada.

— De pobrezinha não tem nada. Escapou porque a surpreenderam onde não devia estar. Vamos, a levarei para a cama — disse ao tempo que lhe estendia as mãos.

— Quero ver minha aparência. Devo estar tão feia que você decidiu tirar o espelho.

— Não! Não tem nada que ver com você. Esse espelho se rompeu faz muito tempo. Seu aspecto…

— É muito mau?

Hanif negou com a cabeça.

— Têm alguns hematomas, isso é tudo. Em geral seu aspecto não é bom, mas é só a aparência, porque os danos não foram graves.

— Tenho um olho arroxeado?

— Não exatamente — repôs depois de um instante de vacilação.

— Não exatamente arroxeado?

— Não exatamente — admitiu com um sorriso irônico —. Há uns cortes pequenos que não deixarão cicatrizes. O lábio inferior está inflamado e tem um ponto aqui — disse ao tempo que lhe tocava uma maçã do rosto com o dedo —. Lucy, espero havê-la convencido de que em seu corpo não ficarão rastros do acidente, mas farei que voltem a colocar o espelho.

— Não há pressa — repôs ela ao mesmo tempo em que se agarrava à mão que Hanif lhe estendia.

Ele a levantou colocando um braço em torno da cintura.

Quando a deixou acomodada na cama, Lucy notou que alguém tinha recolhido as coisas do chão, limpado o fino tapete e que tudo tinha voltado para seu lugar.

— Hanif — murmurou. Tinha que lhe contar sobre o jipe. Tinha que saber que tinha dado asilo a uma delinquente —. Há algo que devo lhe dizer.

— Tome os calmantes, Lucy — disse ao tempo que, inclinado sobre ela, acomodando-a nos almofadões. Seu rosto estava tão próximo do seu, que ela pôde sentir o calor de sua pele —. Precisa repousar, dê a seu corpo a oportunidade de recuperar-se. Não há nada que tenha que me dizer que não possa esperar até manhã.

Talvez tivesse razão. Hanif teria querido saber por que tinha roubado o jipe e por que viajava sozinha através do deserto. Contar significaria trair Steve, talvez com consequências que não poderia controlar. Não, primeiro precisava pensar com claridade. Então tomou os calmantes.

— Tem razão.

— Se precisar de algo, por favor, use a campainha. Sempre há alguém por perto. Ao que parece, as cápsulas eram algo mais que um calmante porque, em uns minutos, começou a afundar-se no sonho. Entretanto, em sua mente ainda rondavam umas perguntas. Quem era essa garotinha? Por que Hanif havia dito que não havia mulheres na casa?

Hanif a viu perder-se em um profundo sonho. Sabia que algo a afligia, mas fosse o que fosse, podia esperar até o dia seguinte. Logo abriu as portas que davam para o terraço e se sentou a fim de contemplar o entardecer. Logo que o céu começou a escurecer, apareceram as primeiras estrelas e Hanif aspirou ao doce aroma do jasmim que impregnava o ar. Uma magra lua crescente o acompanhou durante horas até que desapareceu na abóbada do céu. Lentamente a escuridão da noite deu passo aos delicados matizes de cor cinza e malva que anunciavam o amanhecer.

Quando Lucy Forrester chamou do quarto, Hanif se levantou do assento com os membros rígidos de frio.

— Como se sente? — Perguntou quando chegou junto a ela.

— Muito melhor, obrigado — disse ao mesmo tempo em que contemplava a delicada luz, precursora da alvorada —. Pensei que tinha dormido muito mais.

— E assim foi. Essa não é a luz do crepúsculo, Lucy; começa a amanhecer - comentou sem deixar de observar que as largas horas de sonho tinham melhorado bastante o aspecto da jovem. Parecia mais animada, movia-se com maior facilidade e inclusive o rosto tinha uma cor mais saudável.

— Quer me acompanhar a tomar o café da manhã no terraço? O convite surgiu espontaneamente de seu interior. Refeições compartilhadas com Noor nesse mesmo terraço tinham sido momentos preciosos e, por isso, inesquecíveis. Entretanto, fazia tempo que o café da manhã tinha perdido todo seu encanto para ele e, embora arrependido, já não podia retirar o convite. Por outro lado, o ar fresco faria bem a sua hóspede e, enquanto estivessem tomando o café da manhã, poderia lhe contar seus pesares.

— Trarei as muletas.

— De acordo — disse ela com um pequeno sorriso —. Obediência total, não é assim?

Hanif devia lhe devolver o sorriso. Tinha aprendido a arte de sorrir nos joelhos de seu pai. Mas quando foi a última vez que o tinha feito com sinceridade? Recordava o dia e o momento exato sem a menor dificuldade.

Entretanto, Lucy não merecia um sorriso diplomático.

— Ao contrário, Lucy Forrester. Eu é que estou as suas ordens. Diga-me o que gostaria de comer. Por favor, fale — acrescentou ao vê-la vacilar.

— Suco de laranja?

— De acordo. Chá? Café?

— Chá, por favor.

— E para comer?

— Algo — respondeu com acanhamento.

Lucy foi para o banheiro e mais tarde, envolta na bata de seda que lhe tinham deixado, reuniu-se a Hanif no amplo terraço, sombreado por um teto de fina madeira decorada. A seus pés se estendia um amplo jardim dividido a intervalos regulares por riachos sussurrantes que se convertiam em lagos rodeados de lilás. Também havia amendoeiras em flor e esbeltos ciprestes.

Quando Lucy olhou para o horizonte, tudo o que pôde distinguir além das árvores foram as escuras montanhas, que nesse momento luziam uma formosa cor dourada a causa do sol que nascia depois dos altos picos.

— Que bonito! — Exclamou enquanto Hanif lhe retirava as muletas para acomodá-la em uma poltrona de vime de respaldo alto —. Que lugar é este? Parece um paraíso.

— Você conhece como Rawdah Al-Arusah, que significa o jardim da noiva — explicou ao mesmo tempo em que lhe tendia um copo de suco de laranja e logo abrangia o edifício onde se encontravam com um amplo gesto —. Um de meus antepassados mandou construir o pavilhão original e desenhou este jardim para sua noiva persa, doente de nostalgia pelo jardim que tinha tido que abandonar.

— Tudo isto foi feito para uma mulher? Deve ter sido um grande amor.

— Está surpresa?

— Sim… bom, não — murmurou confusa —. Tinha entendido que os matrimônios entre os capitalistas eram simplesmente alianças arranjadas entre as famílias. Como acontecia na Inglaterra.

— É obvio. Normalmente os matrimônios se pactuam a fim de fortalecer os laços entre famílias aliadas e para unir os que uma vez foram inimigos.

— E ainda se mantém o costume?

— Assuntos de tanta importância não se devem deixar ao acaso — declarou. Ao ver que ela bebia uns goles do suco sem fazer comentários, acrescentou — Acredito que pensa que é algo frio, carente de paixão.

— Mas bem me parece uma transação comercial.

— Quando um homem e uma mulher fazem uma aliança com honra e sabendo de que seu futuro foi escrito para benefício da família e do Estado, o amor e o dever se convertem em uma só coisa.

O amor e o dever.

Lucy pensou que até algumas semanas atrás sua vida inteira se consagrou ao dever. Tinha posto muito pouco amor nela. E logo, tudo tinha se tornado em um instante. Olhou os dedos da mão esquerda. Fazia muito pouco tempo que um deles tinha uma banda brilhante de ouro.

— Assim tão fácil? — Perguntou ao dar-se conta de que ele a observava com o cenho ligeiramente franzido.

— Nada que tenha algum valor é fácil, Lucy. Para que o casal funcione se requer compreensão, esforço e compromisso.

— Não conta a atração inicial? Conheceu sua esposa antes da assinatura do contrato?

— Não, e, entretanto, a amava. Duvida que duas pessoas unidas desse modo possam alcançar a felicidade?

— Para ouvi-lo falar dessa maneira, acredito que teria sido melhor se tivesse havido um pacto claramente entendido por ambas as partes.

— Esteve casada? — Perguntou surpreso.

— Ainda estou — respondeu com pesar —. Casei faz seis semanas.

— Seis semanas? — Exclamou atônito —. E seu marido como pode suportar encontrar-se longe de você? Em tão pouco tempo?

Estava claro que a mentalidade de Hanif não concebia algo semelhante. O tom de sua voz tinha deixado entrever seu desdém por um homem que se preocupava tão pouco em cuidar do que era dele. Ou talvez para uma mulher incapaz de manter o marido junto a ela.

Lucy pensou que haveria se sentido mais afortunada do que tinha direito a esperar um casamento à moda antiga, apoiada em um contrato que tivesse outorgado a segurança do matrimônio e o encanto de ser a esposa de um homem como Steve Mason em troca de uma herança que nunca tinha esperado. Entretanto, Steve a tinha enganado. Tinha tomado tudo e não tinha dado nada em troca. Por essa razão tinha arrojado a uma boca-de-lobo de Ramal Hamrah o anel que lhe tinha posto no dedo. E nesse momento teve que apelar a seu orgulho, o único que tinha lhe restado.

— Meu marido teve que viajar para atender uns negócios urgentes.

Isso era o que lhe havia dito de recém-casados, talvez a única coisa certa em toda aquela história.

— Tão urgentes que você decidiu não o importunar com o acidente?

De repente Lucy pensou que Hanif poderia considerar que se aproveitava de sua generosidade quando tinha um marido cujo dever era velar por ela. Ou talvez o pusesse em um compromisso por ser a esposa de outro homem?

— Sinto muito. Devia ter dito antes. Minha presença pode ser um problema para você, assim partirei imediatamente — declarou com decisão. Hanif tomou a mão quando a estendia para alcançar as muletas —. Como pode ver, encontro-me muito melhor.

— Não, Lucy Forrester. Necessita de tempo para recuperar suas forças. Considere-se bem-vinda em minha casa durante todo o tempo que precise de um refúgio.

— Um refúgio? — Repetiu com o olhar fixo na mão de dedos largos e fortes que cobria a sua com suavidade, como teria feito com um pássaro ferido.

— Utilizei mal a palavra?

— Não, é só que o termo se usa normalmente para descrever um lugar seguro para alguém que foge de um perigo ou que inclusive teme por sua vida.

— Todos fugimos de algo, Lucy, inclusive se os demônios que nos perseguem não são nada mais que sombras.

— Em meu caso não são sombras exatamente — murmurou. Não podia enganar a Hanif. Merecia a verdade —. Tem direito de saber que o veículo que conduzia não era meu.

Hanif, que punha iogurte em um prato, deteve-se para olhá-la com fixamente.

— Tinha alugado? Ou tinha emprestado?

— Nem alugado nem emprestado. Steve me disse que era o dono da empresa Bouheira Tours, embora possa ser que tenha mentido, porque mentiu em tudo. Se o fez, então roubei esse veículo.

Hanif lhe estendeu o prato de iogurte.

— Está muito bom. É feito com o leite de nossas cabras. Quer prová-lo com fruta ou com mel?

— Não entendeu o que acabo de lhe dizer?

— Sim, você levou o jipe da Bouheira Tours sem permissão.

— Uma diferença de termos muito sutil, embora imagine que não impressionaria em um tribunal.

— Provavelmente não — Ao mesmo tempo em que punha umas tâmaras em seu iogurte. — Vi o logotipo da empresa no veículo e entrei em contato com eles, pensando que você trabalhava na agência ou era uma cliente.

— Então sabia de tudo. E o que disseram? Acusaram-me de apropriação indevida?

— Talvez lhe interesse saber que Bouheira Tours não só negou conhecer alguém com o nome de Lucy Forrester, mas também negaram que faltasse um veículo.

— Mas eu o tirei do estacionamento da empresa. As chaves estavam postas. Você mesmo o viu, Hanif. O nome da agência estava escrito nas portas.

— Se insistirem em que não falta um veículo, duvido que armem um escândalo por seu desaparecimento. E se por acaso derem conta de seu engano, tenha certeza que nem suas sombras poderão penetrar através dos muros de minha casa.

— Estamos no deserto, não é isso? É aqui onde se derrubou o veículo? Minutos antes do acidente recordo ter visto vegetação. Pensei que era uma miragem. Tudo isto se encontra por trás dessas altas muralhas, em meio de um nada, não é assim? —Perguntou sem afastar o olhar dele.

— As muralhas são necessárias para proteger as fontes de irrigado e o jardim dos animais selvagens. Prefere estar na cidade de Rumaillah?

— Não, não.

— Porque posso solucioná-lo. Minha casa da cidade está fechada. Mas a minha mãe ou as minhas irmãs se agradariam em acolhê-la como convidada.

— Não, em alguns de dias estarei bem e uma vez que recupere meu passaporte e as passagens, partirei imediatamente. Não irei incomodar a ninguém mais.

— Tome todo o tempo que precisar para recuperar forças antes de enfrentar aquilo que a preocupa.

— Por que insiste em que estou preocupada?

— Ninguém que esteja em paz consigo mesmo rouba um veículo nem arrisca sua vida como você o tem feito. Prove os figos. Recolheram-nos especialmente para você.

Lucy deixou escapar uma exclamação abafada quando sentiu a doçura do fruto púrpura na boca.

— É surpreendente! Nunca tinha provado um fruto como este. É muito diferente dos outros — disse entre risadas ao mesmo tempo em que limpava o suco que escorria pelo queixo.

Ele também riu aparentemente deleitado.

E repentinamente, como se o som de sua própria risada o horrorizasse, levantou-se da cadeira e se afastou com passos largos para o outro extremo do terraço. Logo, com as mãos agarradas no corrimão de madeira, ficou ensimesmado contemplando a paisagem.

Parecia tão solitário que Lucy sentiu a arrasadora necessidade de segui-lo, abraçá-lo em um simples gesto de consolo e lhe assegurar que fazia bem em seguir vivendo, que sua risada não era uma traição.

Incapaz de fazer nada útil para ajudá-lo e convencida que ele preferiria que ignorasse a perda do controle sobre si mesmo, obrigou-se a emprestar atenção ao café da manhã.

Por educação, Lucy evitou olhar a figura de seu anfitrião que imóvel, contemplava as longínquas montanhas.

Enquanto tomava seu iogurte com mel, descobriu que era difícil ignorá-lo e levantou a vista para ele.

Não tinha se movido. O ar quente parecia vibrar com sua presença e compreendeu que uma mulher bem poderia se apaixonar por ele ao olhá-lo pela primeira vez. Cada linha de seu corpo estava carregada de poder, força e graça. Seus olhos eram ferozes e seu perfil esculpido em granito, embora não duvidava que quando tomou a mão de Noor pela primeira vez o tinha feito com suavidade e ternura. E que ela não tinha poderia evitar apaixonar-se por ele.

Com um nó na garganta se perguntou se Steve também teria sido tão terno. Se não tivesse tido que partir por uma emergência teria feito sentir-se como uma rainha? Uma recompensa por ter sido tão ingênua, tão crédula?

Lucy tentou levantar o pesado bule de prata.

— Deixe-me fazer isso — disse Hanif junto à mesa. Logo encheu duas taças e se sentou junto a ela —. Lamento ter deixado você sozinha. Às vezes me assaltam as lembranças e me sinto deprimido. Não sou boa companhia para ninguém, nem sequer para um animal.

O desconhecimento dessa cultura tão diferente à sua obrigava Lucy a atuar com prudência. Entretanto, Hanif passava por um momento de dor e talvez precisasse falar com alguém. E ela devia isso a ele.

— Faz quanto tempo perdeu a sua esposa? — Perguntou com muito tato.

Hanif se reclinou no assento de vime e fechou os olhos.

— Noor faleceu faz três anos — respondeu depois de uma longa pausa.

— Já ouvi antes esse nome.

— O puseram por causa da esposa americana do desaparecido rei da Jordânia. Mas quando nos casamos a conheciam como Umm Jamal. A mãe de Jamal.

— O nome do filho foi eleito antes das bodas? — Perguntou ela.

—Eu sou o filho de Jamal. E serei o pai de Jamal, Insha’Allah.

— Compreendo — disse ao tempo que bebia um gole de chá.

Produziu-se outro longo silêncio.

— Minha esposa morreu de leucemia — disse finalmente.

— Leucemia? Pensava que…

— Pensava que muitas pessoas se recuperam dessa enfermidade, não é assim? Tem razão, Lucy. Com um bom tratamento muitos se recuperam, mas Noor estava grávida quando a diagnosticaram. Negou-se a aceitar o tratamento que a salvaria para não machucar o seu bebê — murmurou com certa aspereza. Lucy sentiu um nó na garganta —. Disse-lhe que teríamos mais filhos, e que se não chegassem tampouco importava, que sempre seria Umm Jamal. Mas nada lhe fez mudar a decisão de não lutar por salvar sua vida. Nem sequer eu.

— E Jamal?

— Sua menina nasceu sã e forte.

Por fim Lucy compreendeu. Não tinha sido um filho, e sim uma filha. A pequena que se assustou ao ver seu rosto.

— Ameerah. A pequena deve ter sido um consolo para você.

Hanif franziu o cenho, como se não a tivesse entendido.

— Consolo?

— Foi o presente de Noor, uma parte dela mesma. Uma filha preciosa.

— Ela sabia. Não deixava de me dizer que se sacrificava por Jamal, embora sabia que seu bebê era uma menina.

— Era uma mãe que protegia a seu filho.

— Mentiu para mim!

Lucy se sobressaltou ante a violência de sua resposta e deixou escapar um grito involuntário ao sentir um intenso golpe de dor em todo o corpo.

— Lucy, sinto muito — disse Hanif ao tempo que se inclinava sobre ela.

— Estou bem — replicou imediatamente afastando o braço antes que ele pudesse tocá-la.

Como se atrevia a falar de amor e de honra?

A ira do Hanif não era dirigida à enfermidade que tinha matado a sua esposa, a não ser à mulher que o tinha desafiado para proteger ao filho que levava em seu ventre. Se tivesse sido um menino, teria celebrado e honrado à mãe. Mas sua ira era uma prova evidente de que uma menina não compensava a perda de sua esposa.

Lucy tinha acreditado que era um homem compassivo, alguém com quem se podia falar em termos de igualdade. Fora aquelas maneiras de grande senhor se escondia um cacique tribal para quem as mulheres não eram mais que uma matriz substituta, destinadas a prover à tribo de filhos varões.

Hanif não sofria pela esposa perdida, mas sim pelo filho que lhe tinha prometido.

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