Paz. Meu celular finalmente estava silencioso e eu podia simplesmente navegar pelas redes sociais e jogar meus jogos bobos em paz, sem e-mails e mensagens desesperadas do escritório.
Será que dá para devolver um diploma? Porque, sinceramente, eu desejava não precisar mais usar o meu.
Mamãe passou por mim com a expressão de desgosto enquanto eu fuçava um aplicativo de fotos. Estava sentada no sofá da sala fazendo uma lista de compras e me perdi nas fotos de várias tortas. Já fazia uma semana desde que tinha voltado para casa, e passei de filha prodígio para tragédia em um segundo quando contei que havia largado meu emprego no escritório de advocacia.
Poderia ter recomeçado em Massan, onde tudo era muito agitado e repleto de novas oportunidades, mas o sentimento lá era diferente. Eu queria conseguir me reencontrar, então retornei para o lugar onde nasci.
Ninguém aceitou nada muito bem. Por que uma moça tão bem sucedida largaria tudo e voltaria desempregada para a casa dos pais? Pois é, hesitei o quanto deu, mas já não suportava mais nada daquilo. A vontade de viver e ser feliz foi se esvaindo sem que eu percebesse, e quando me sentei em frente ao psicólogo ele perguntou: por que você está fazendo isso afinal de contas? Não soube responder. Era conveniente, parecia confortável financeiramente, era ok dizer que eu era advogada e tinha um bom emprego, meus pais tinham orgulho disso... Mas não era mais o que eu queria para mim.
As indagações ficaram cada vez mais perturbadoras, o emprego cada dia mais insuportável, acordar era angustiante e eu esqueci. Esqueci de mim.
Depois de vários suspiros da mamãe eu saí. Coloquei a lista de compras na bolsa e comecei a dirigir entre as ruas de Chaves.
— Wendy? — olhei para trás assim que saí do carro no estacionamento do supermercado. Franzi as sobrancelhas vendo uma mulher grávida e abri a boca em reconhecer a Sara. Ela sorriu e se aproximou já me abraçando.
— Não acredito nisso! — correspondi o abraço. — Que barriga é essa? Me diga apenas que engordou! — ela riu me balançando de um lado para outro.
— Sua idiota! — reclamou me causando uma risada. — Como é que você está aqui e não me contou?
— Eu ia contar! Cheguei ontem! — segurei seus ombros quando ela se afastou. — Mas sério, e essa barriga?
— Vou ter um bebê! — sorriu e gargalhou da minha careta.
— Mas já?
— Wendy, logo teremos 30 anos — coloquei o dedo em sua boca.
— Shh! Quietinha!
Suspirei olhando a Sara. Ela parecia feliz e a vários passos em minha frente. Eu não concretizei nenhum caso romântico em Massan, e acabei deixando tudo para trás, mesmo que nem fosse muita coisa.
Minha amiga ainda parecia a garota de anos atrás, ela não abria mão dos cabelos compridos e da franja de testa, o que a deixava parecendo uma adolescente grávida. Sara tinha um temperamento difícil, mas quem a visse de longe a acharia meiga e gentil.
— Está de férias? — perguntou parecendo curiosa.
— Bem... — olhei em volta. — Saí do meu emprego — sua expressão mudou imediatamente. — Hey! Fique feliz por mim!
Ela demorou um tempo para processar e aceitar a nova informação, mas como boa amiga apenas ficou do meu lado. Sara era minha amiga do ensino médio e mesmo com a distância e o tempo, percebi naquele momento que nada havia mudado entre nós.
— Me conte tudo! — falei empurrando o carrinho de compras. Ela havia voltado ao supermercado para poder passar mais tempo comigo. — Você casou com o Jacob ano passado e já vai ter um filho?
— É — deu de ombros. — Estamos felizes! — concordei com a cabeça olhando o preço da farinha de trigo. — E você está namorando?
— Não estou — joguei alguns sacos no carrinho. — Deixei tudo em Massan, e não sinto falta de nada.
Sara sorriu parecendo interessada na informação e ajeitou suas feições quando a encarei.
— Você não vai perguntar sobre ele? — perguntou e levantei a sobrancelha. — Eu sei que já faz 5 anos, mas...
Sorri um pouco e continuei empurrando o carrinho. Eu já tinha deixado muita coisa no passado e quando resolvi voltar para casa não tinha nada a ver com conseguir tudo de volta.
— Ele está solteiro — Sara me seguiu e olhei para ela a canto de olho. — Sério, Wendy? Não está nem um pouquinho curiosa?
— Será que eles vendem cacau em pó aqui? — fingi estar concentrada na lista de compras.
— Tudo bem, não vou mais tocar no assunto — levantei o olhar. — Vou fazer um chá de bebê nesse final de semana, espero que como minha amiga desempregada e desocupada, você apareça! — cruzou os braços.
— Ok! — confirmei divertida com seu drama.
✴✴✴
No final de semana eu me tornei dona da cozinha e meus pais nem passaram perto, o desgosto ainda era muito grande. De certa forma tinha pensado em procurar um apartamento para privá-los de continuarem me vendo. Meu sonho de abrir uma confeitaria parecia rasgar minha família em mil pedacinhos.
Abri a boca quando meu celular vibrou e na tela de bloqueio apareceu uma mensagem da Sara. Havia esquecido completamente do chá. Comecei a arrumar as coisas apressadamente e coloquei o bolo na geladeira.
Passei maquiagem no caminho, quando encontrava um sinal vermelho. Como passei de alguém extremamente responsável para esquecida em tão pouco tempo?
A casa da Sara era muito bonita e tive que andar um pouco pela sala até conseguir a oportunidade de falar com ela. Pensei que Sara estivesse tramando algo, mas a reunião tinha apenas mulheres, e depois me senti patética por ter vagado meu olhar pelo ambiente como uma coruja.
— Achei que não viesse! — Sara me abraçou. Ela estava fofa usando um vestido rosa, que realçava seus seios de grávida, e a fazia parecer uma gordinha simpática.
— Eu esqueci o presente — contei a fazendo rir. — Mas trarei depois!
— Não se incomode! Eu só queria que você viesse.
O chá foi legal, foi bom ver como minha amiga estava feliz e que tudo estava dando certo, pelo menos para alguém.
Quando tudo acabou, acabei ficando para ajudá-la a arrumar as coisas, já que suas amigas da faculdade e colegas de trabalho se foram levando os docinhos que sobraram. Mas ficar me fez alvo da mãe dela, a qual me fez tantas indagações que passou a sentir o desgosto dos meus pais e me senti aliviada quando ela foi embora.
— Sentia falta da minha melhor amiga! — Sara disse sentada no sofá, quando desistiu de organizar as coisas por estar cansada. — Agora que você está aqui, percebo como esses anos foram difíceis sem você.
— Acho que a gravidez está te deixando muito emotiva — brinquei a fazendo jogar uma almofada em mim, numa cena misturada com risadas.
O clima mudou completamente quando Jacob chegou em casa, e ele não estava só. Lancei um olhar para Sara e ela sorriu como se não tivesse culpa.
Senti meu peito pinicar quando Kevin apareceu assim que Jacob lhe deu espaço para passar. Encará-lo foi mais estranho do que esperei ser. Kevin estava mais bonito, tinha mudado o corte de cabelo, e agora seus fios castanhos e lisos estavam mais curtos, a sobrancelha falhava continuava ali como se fosse um detalhe proposital em seu rosto. Ele manteve os lábios pálidos fechados enquanto me encarava sério.
— Não fiquem se encarando como se fossem estranhos! — Sara disse se aproximando dele. — É a Wendy! — cutucou o homem, animada.
— Oi — ele me saudou sorrindo um pouco. Aquele sorriso que o deixava parecendo um gatinho — Como vai, Wendy?
— Oi, Kevin — respondi sem graça. — Bem! E você?
— Bem — respondeu virando o rosto para o Jacob. — Eu só vim acompanhar o Jacob até em casa. Já estou indo!
— Ah, Kevin, e o jantar? — Sara segurou seu braço parecendo desapontada.
— Eu tenho um compromisso agora — ele tocou sua testa depois de travar os dentes e acabei rindo em silêncio.
— Não deveria irritar uma mulher grávida! — deu um tapa em sua mão.
Kevin e Sara viviam discutindo por qualquer coisa, enquanto eu e Jacob saíamos para ficar de fora. Parecia que eu estava revivendo uma cena do passado. Quando ri de forma audível todos me olharam de repente.
— Foi bom te ver! — Kevin acenou já se afastando. — Estou saindo — disse já no caminho para a porta.
Foi bom me ver? Jura? Porque vê-lo só me fazia lembrar que ele teve razão todo o tempo e eu errei. Saí de Massan não tendo que dar satisfações a ninguém, mas e ele? Devia dar aquela a oportunidade de ele me dizer "eu te avisei"? Mas ele não perguntou e eu já não sabia mais nada sobre ele.
Acabei não ficando para o jantar e quando cheguei em casa apenas me sentei no sofá assistindo o mesmo filme que meus pais.
— Como foi com a Sara? — mamãe perguntou olhando para a TV. — Ela disse o que sobre sua nova decisão de vida?
— Ela me apoiou — respondi divertida por ver mamãe contrariada. Papai me observou e apenas pressionou os lábios.
— É... Mas logo vai perceber que só você ficou para trás — ela riu. Mamãe odiava se sentir perdedora de uma discussão e não media as palavras para alcançar seus objetivos. — A cozinha está uma bagunça!
— E vou arrumar tudo agora!
Lavando as formas e os utensílios, comecei a me sentir nostálgica. Quando inventava de fazer tortas, a Sara estava lá me contando de como era apaixonada pelo Jacob e não tinha coragem de se confessar. Naqueles momentos Kevin aparecia para me ajudar com a bagunça e me dar alguns beijos sem que meus pais vissem.
— Se anime, Wendy! — falei para mim mesma, concentrada em lavar. — Finalmente pode fazer o que quer.
Me senti bem quando terminei de enfeitar minha torta de morango, mesmo que tenha comido sozinha e tenha lembrado de alguns beijos que troquei naquela cozinha.
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(Lembrança)
— Wendy, como estaremos daqui 10 anos? — Kevin perguntou segurando minhas mãos na frente da casa dos meus pais. De vez em quando ele levava minha mão a sua boca e me enganava mordendo-a em vez de beijá-la, que era o que eu esperava.
— Viva, eu espero — respondi tentando me soltar e ele torceu o nariz me segurando. Acabei rindo.
— E comigo? — me encarou sorrindo. Sua franja já estava crescendo de novo e eu gostava quando ele partia o cabelo ao meio.
— Você quer isso?
— Você não pode apenas responder o quanto quer ficar comigo? — soltou minha mão e fez uma careta.
Soltei um sorriso debochado. Era engraçado como Kevin era orgulhoso e mesmo assim esperava grandes declarações.
— Quero estar com você, tá bom? — cruzei os braços. — Meu elfo favorito!
Ganhei o sorriso e um beijo. Estava vivendo meu sonho de universitária com um namorado legal. Bom, pelo menos tê-lo em meus dias me dava força para continuar o curso e motivos para sorrir.
— Eu também! Vou sempre voltar para você — murmurou logo depois de se afastar, sem me dar tempo para abrir os olhos.
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Mas não foi assim, e era tudo culpa minha.