(2) Decisão

OBA! — BYRN ESTICA A MÃO para pegar minha suculenta maçã.

Em pé na minha frente, fazendo sombra no sol, Lyek ergue a fruta sobre seus cabelos negros, desviando-se dos dedos longos de Byrn, mecânico e um dos meus amigos mais antigos aqui dentro.

Não seja impertinente, Byrn! É para Jaylee. A mãe dela está precisando. — Sua voz suave arranha meus ouvidos e faz meu coração acelerar.

Obrigada. Nem sei como agradecer. — Estendo as mãos com as palmas para cima e ele oferece-me a maçã. Minhas bochechas pegam fogo.

Oh, eu posso pensar em muitas maneiras. — Byrn debocha me dando duas cotoveladas de leve.

Não precisa agradecer, só não deixe ninguém ver. Tirei da cozinha, enquanto minha mãe estava ocupada. — Lyek se joga na grama, apoiando o corpo pelo cotovelo.

Ele é um rapaz bonito, alto e forte. Sei que não sou a única garota da colônia que repara em sua beleza, e também já o conheço o suficiente para saber que não há um interesse por trás da maçã, caso você esteja imaginando isso. Lyek simplesmente ajuda todo mundo que pode, é um rapaz de bom coração e uma das poucas pessoas a nos fazer acreditar na esperança de um futuro justo novamente.

Obrigada. — Fito a maçã e dou graças a Deus por ter conseguido mais alguma coisa hoje. Posso ficar sem jantar, mas minha mãe e meu irmão precisam ter o que comer.

Nytacha ataca o seu frango com voracidade e Lyek destampa sua marmita. O cheiro de frango atiça minha fome, mas me contenho. Enquanto meus amigos terminam de comer, guardo a maçã no meu sutiã, como um terceiro peito. Se nos pegam roubando comida, seremos açoitados.

Amanhã à noite haverá um baile, muitos nobres virão de outros castelos. — Lyek avisa. Ele é sempre informado, pois acaba tendo que fazer turno à noite para guardar os carros.

Mas que droga! E eu doei sangue ontem! — Byrn bate a mão na testa.

Minha mãe também. O desespero se abate sobre mim. Ela se cobra demais por não poder dar a mim e a meu irmão uma vida mais decente. Eu a ouvirei reclamar de suas escolhas, por mais uma chance desperdiçada. Se ao menos eu pudesse participar do festival como doadora...

Como faz para doar sangue? — pergunto.

Você tá pensando em doar? — Os olhos verdes de Nytacha recaem sobre mim e eu fico roxa.

Talvez eu não tenha outra escolha e preciso de dinheiro. — Abaixo a cabeça e encolho, abraçando as pernas e repousando a testa nos joelhos.

Por que não tenta uma vaga em outro lugar antes? — Lyek segura em minha mão.

Ergo um pouco a cabeça, olhando-o. Seus olhos castanhos me fitam com intensidade em todas as suas nuances e acabo fixando o olhar em uma mancha de graxa em seu queixo protuberante.

Onde tem vaga? — Carregada de interesse, a voz de Ederlon soa mais fina. Estamos sempre interessados em ganhar mais. — Tá sabendo de algo?

Não.

Todos murcham pela falta de uma vaga melhor que a lavanderia.

Só queria dizer que Jaylee pode tentar outra opção antes de pensar em doar sangue. — Ele acrescenta com a voz entristecida, os olhos voltados para a marmita.

Fica um silêncio esquisito depois disso. Todos nós sabemos que Lyek não está se referindo exatamente a mim, mas a sua irmã Elenore, que não resistiu ao primeiro ano de doação. É muito comum jovens adoecerem ou descobrirem algum tipo de doença… só espero que esse não seja o meu destino, ou não terá adiantado de nada.

Fico observando como Lyek segura o garfo de um jeito errado, suas mãos grandes e pesadas estão sujas, o extremo oposto das minhas.

Não existe a opção de não doar — Ederlon corta o silêncio, de repente —, é assim que é a Lei. Se ninguém da família puder doar, terá que ser você, Jay.

Eu sei — suspiro.

Tenho pensado nisso ultimamente e já estou bem exausta de ver mamãe pálida e quase morrendo por tentar nos salvar da miséria. Sou quase adulta e devia fazer algo para ajudar minha família.

Mais uma vez o sino soa e é hora de voltarmos para o trabalho. Nytacha rói o osso rapidamente, Lyek engole o arroz. Fico em pé, bato a terra de minhas roupas e confiro se as comidas estão bem escondidas. Nytacha é a primeira a encaminhar-se de volta para a lavanderia, Byrn é a segunda.

Até amanhã! — Ederlon acena, se afastando.

Até. — Faço menção de segui-lo.

Espere, Jay. — Lyek segura em meu no braço.

O que foi? — Giro e o encaro, seu rosto parece sério, preocupado.

Estava guardando para levar para casa, mas acho que você precisa mais que eu. — Com um sorriso, ele remexe no bolso de trás da calça e retira uma cenoura.

Tem certeza? Não quero abusar e você já fez bastante por mim hoje.

Guarde na perna. — Ele pega minha mão e coloca a cenoura na palma, envolvendo meus dedos nela, insistindo para que fique comigo.

Não é uma cenoura grande e já está sem as folhas, mas, acredite, não vemos cenouras sempre e, na minha atual situação, qualquer comida a mais é bom. A ajuda de amigos nos momentos difíceis é uma benção, e os meus são meus anjos da guarda.

Obrigada! — Tenho vontade de chorar. A fome me deixa emotiva, acho. Lyek limpa com os dedos a lágrima que teima em rolar pela minha bochecha, segura o meu rosto e me dá um beijo na testa.

Cuide-se, Jay.

Você também. — Por fim, viro e caminho até Byrn, que ainda espera na metade do jardim.

Eu não sei, acho que Lyek gosta de você. — Byrn cruza os braços e estreita bem os olhos, analisando.

Por cima do ombro vejo Lyek correr até as escadas que dão para a garagem do prédio, onde fica a oficina e todos os carros dos nobres. Ele acena com um sorriso encantador para uma garota da cozinha e desce.

Somos como irmãos — nego.

Tantas meninas mais bonitas e melhores de vida por aí, ele não se interessaria por mim, o que Lyek tem é pena. Abaixo para guardar a cenoura dentro da meia, na minha canela. Fico em pé e remexo os pés, torcendo para que ela fique bem segura.

Sei não. — Byrn balança os cabelos curtinhos de um lado para o outro em um grande “não”. — Você não o acha um pedaço de mau caminho?

Lyek é um gato, mas ele olha para mim como a irmãzinha faminta que ele precisa salvar. Você sabe, transferindo o trauma de Elenore para mim. — Começo a caminhar de volta para a lavanderia.

Talvez ele pense em te pedir em casamento! Seria uma forma de te salvar da fome e da doação de sangue. — Ela vem atrás animada com suas teorias malucas.

Eu teria que abandonar minha mãe e meu irmão à própria sorte. Você realmente acha que eu faria algo assim? — Cruzo os braços ofendida.

Byrn resfolega, coloca a mão comprida em meu ombro esquerdo e lança seus olhos castanhos com firmeza em cima de mim:

Escute aqui, nem pense que você está sozinha, ok? Se quiser, vou com você até a seção de doação e ajudo a preencher o formulário. Até seguro sua mão quando você for levar a injeção para a coleta de sangue.

Coleta? — Viro para ela em susto.

Os exames iniciais — Byrn explica pacientemente. — Para saber se você é saudável o suficiente para doar, essas coisas. Sem isso você não consegue o certificado.

Tudo bem — concordo. — Depois do jantar, me encontre na Ala B.

Combinado.

●●●

Na hora de estender as roupas que lavei no grande varal do último andar, uma fumaça negra saindo da chaminé principal do prédio chama minha atenção. Paro com um pregador na boca, segurando um vestido azul turquesa na mão, já pensando que os ataques alienígenas alcançaram a fronteira de Bawarrod.

Morreu alguém. — Ederlon olha para o mesmo lugar que eu. — Quem você acha que foi dessa vez?

Felix. — explica Sarah, uma garota, também da lavanderia, bem magrinha, que tem cabelos ruivos e olheiras pesadas. — Era meu vizinho. Os médicos deram a morte dele hoje pela manhã.

Não era escravo do Glutão? — Nytacha se estica por entre um lençol.

Ele mesmo.

Quanto tempo ele durou? — Ederlon pergunta.

Um ano, talvez um pouco mais. Deixou uma fortuna para a família. — Sarah balança a cabeça afirmativamente. — O Glutão paga muito bem.

Mas a que preço? Não vale a pena perder a vida por dinheiro. — Nytacha não se conforma.

Eu não digo nada e continuo estendendo o vestido, mas a verdade é que já penso diferente. Se você está sem saída, fadado a morte de um jeito ou de outro, é grandioso se sacrificar para salvar aqueles que você ama. Pensando nisso, faço uma silenciosa oração para que a alma de Felix descanse em paz.

●●●

Entro em casa e as coisas estão um caos. Johin está chorando de fome e o silêncio com a coxa de frango. O aperto no meu coração dá ainda mais certeza de que preciso me inscrever na seção de doação.

Não deve ser tão ruim assim, o Glutão é mesmo um cara problemático, mas acho que apenas os desesperados correm até ele, pois há também os guardas do rei, as damas de companhia da rainha, os artistas e os novos hóspedes, especialmente, que pagam bem para “jantar fora”. Com um certificado de doação, posso oferecer meu sangue do lado de fora da festa.

Cozinho a cenoura com um pouco de água, coloco no prato com um pouco de arroz que tia Lilane trouxe e entrego junto com a maçã para minha mãe, que está sentada na cama observando Johin brincar com um dos poucos brinquedos que não vendemos. Volto para a cozinha, bebo a água em que cozinhei a cenoura ainda quente e retorno para a sala. Agora, Johin ganha garfadas do jantar da minha mãe.

Sem dizer nada, caminho novamente até a porta. É nesse momento que escuto a fraca voz de minha mãe romper o silêncio do apartamento:

Espere, aonde você vai? Acabou de chegar.

Com a mão na maçaneta, permaneço de costas.

Vou encontrar Byrn na Ala B antes que anoiteça. Vou até a Seção de Doação preencher um formulário.

Não, Jaylee! — Mamãe protesta.

Como não, mãe? — Viro para ela, cruzando os braços. — Você está péssima e não vou esperar a situação se agravar. Você ainda tem que criar Johin.

Vem aqui, minha filha, vamos conversar antes de tomar uma decisão precipitada dessas. — Vejo-a enfraquecida, sem conseguir se levantar, a mão erguida.

Conversar o quê? Já vendemos tudo o que tínhamos... O que sobrou?

Podemos deixar o apartamento para outra família, alguns pagam bem pela oportunidade. — Ela comprime os lábios ressecados e posso ver as saliências de seu rosto como crateras na lua, a magreza acabou com sua beleza.

E para onde vamos? — Dramática, coloco as mãos para cima.

Você e Johin iriam para casa de sua tia e eu arrumaria alguém.

Ninguém se interessaria por uma mulher moribunda, que não pode ajudar e é apenas mais uma boca para ser alimentada, não faz sentido. A impressão que tenho é que ela vai morrer e está se preparando para isso. No que depender de mim, isso não acontecerá tão cedo.

Amanhã os nobres de outros castelos virão. — Solto a informação em um fôlego só. Os olhos dela se enchem de lágrimas, percebendo que desperdiçou sua doação ontem. Isso parte o coração. — Você já fez demais, mãe. Agora é a minha vez.

Jaylee! — Ela chama e viro as costas, abrindo a porta.

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