Capítulo 3

Que linda mulher era aquela! Sentado à sua escrivaninha, com uma enorme pilha de papéis esquecida sobre o tampo polido, Connor Saint James, o conde de Hallen, não conseguia parar de pensar na mulher que contratara para cuidar de sua sobrinha e que, estranhamente, parecera-lhe familiar.

Não pudera ver-lhe os cabelos, pois ela usava uma touca de linho branco, mas o rosto era harmonioso, lembrava um coração. A pele era de um branco perolado e os olhos eram da cor do crepúsculo. Ele jamais vira beleza igual em sua vida! Mas os olhos... Vinha sonhando com olhos como os dela há muito tempo... Com efeito! Não era nisso que deveria estar pensando! Coisas mais urgentes mereciam sua atenção. Connor franziu as sobrancelhas, tentando concentrar-se em coisas mais importantes.

—No que está pensando, meu amigo?

—Para ser franco, Jesus, na governanta.

—Ela é linda, não é mesmo?

 O jovem negro sorriu e cruzou as pernas na altura dos tornozelos.

—De fato. Jamais vi beleza igual...

—Posso enxotar sua mãe do quarto da senhora de St. James Hall e começar a reformá-lo, então?

—Não seja tolo! É apenas uma acompanhante para Ethnee! Pare de rir, Jesus!

Inútil! O rapaz de ombros largos e dentes brancos gozava de sua inteira confiança e amizade e parecia não lhe dignar nenhum respeito.

—Encerremos este assunto, sim? De qualquer forma, não voltarei a pensar nela. Tenho assuntos mais urgentes a resolver.

 Ele se acomodou para dar atenção aos balancetes da companhia marítima.

Antes de voltar ao trabalho, porém, ergueu o olhar para a janela. O que foi um erro, pois viu a sobrinha e a nova babá andando pelo jardim. Elas conversavam animadas e miss Templeton segurava a mão de Ethnee, para que esta passasse pelo cascalho irregular em segurança.

Formavam uma cena bonita, as duas. Pareciam mãe e filha...

—Aonde você vai? Connor?

 Embasbacado, Jesus viu o amigo e patrão saindo pela porta da biblioteca, pela segunda vez consecutiva e em plena luz do dia.

Como tudo naquela casa, os jardins eram impressionantes. Uma profusão de rosas, lírios, urzes e arbustos muito bem aparados. Ao fundo, podiam-se ver uma pista de equitação e um estábulo, e, no centro de um jardim, que deveria ser de rosas vermelhas pois diversos botões já se apresentavam, havia uma fonte onde se via sentada, à borda circular, a estátua de uma jovem em trajes gregos tradicionais com um cervo deitado a seus pés. Ao seu lado, arco e flecha repousavam junto a uma coroa em forma de meia lua. A jovem lavava os cabelos longos na fonte, enquanto o chafariz jorrava água cristalina.

Amie perdeu o fôlego ante a beleza daquela imagem e suspirou encantada.

—Que foi? – quis saber a menina. – Não gostou?

—É claro que gostei chérie, é... de tirar o fôlego! – exclamou Amie, quando finalmente recuperou a fala.

—Mandei trazê-la da Grécia, há alguns anos.

A voz do conde assustou-a, pois ela não o ouvira chegar. Instintivamente, Amie levou a mão ao peito, enquanto se virava.

—Assustei-as, miss Templeton? – perguntou o lorde com um sorriso maroto nos lábios.

—Oh, sim, milorde! A mim, sim.

—Pois a mim, não! – exclamou a menina – Posso ouvir os passos até de uma borboleta!

O conde sorriu e virou-se para a sobrinha

—Ethnee, querida, a Sra. Fitzwaring a estava chamando; parece que há biscoitos quentinhos para você, lá na cozinha.

—Que bom! – Ethnee bateu palmas animadamente e pegou Amie pela mão. – Venha Amie, vamos comer biscoitos!

— Não, querida, vá você primeiro. Preciso falar com miss Templeton.

—Está bem, tio. Vou esperá-la na cozinha, Amie!

—Eu vou em um minuto, querida!

 Por um momento, Amie e Connor ficaram olhando Ethnee caminhar até a cozinha em silêncio e sorrindo.

—Amie?

—Um apelido que minha mãe me deu, quando eu ainda era criança.

Ficaram mais alguns minutos em silêncio, observando a fonte.

—Seu secretário disse-me que milorde era recluso...

—Ele não mentiu para você, se é o que está pensando.

—Oh, não, vossa Graça! É que...

—Esqueça isso... Miss Templeton, eu gostaria de lhe pedir desculpas. – disse simplesmente.

—Desculpas, milorde?

 Ela se sentou no banco de pedras que ele indicava e encarou-o, inquisitiva, quando o conde fez o mesmo. Imediatamente, ela sentiu seu perfume e o calor. Sua pele arrepiou-se e ela sentiu a boca seca.

—Sim, Jesus devia ter-lhe dito que Ethnee era cega, para lhe dar a chance de recusar a oferta. Talvez, cuidar de uma criança nessas condições seja algo que a senhorita não esteja disposta a fazer. Deus sabe que muitas já recusaram o cargo por esse motivo...

Mon Dieu, no! De maneira nenhuma! Ethnee é uma menina adorável, e, apesar de nunca ter cuidado de uma criança cega, sei que me sairei bem. Gosto de desafios!

 Ela sorriu confiante e viu algo nos olhos do conde, por um segundo, que lhe pareceu novamente gratidão. Mas foi rápido demais para que Amie pudesse ter certeza.

—Eu não esperava menos da senhorita, miss Templeton. Espero que saiba que estou lhe confiando a coisa mais preciosa que tenho em minha vida.

Oui, milorde, e fico muito grata pela confiança.

Um silêncio amistoso pairou sobre eles, até Amie falar.

—Como aconteceu?

—O que disse?

—Como Ethnee perdeu a visão? Se me permite saber, é claro. Foi no acidente?

O conde balançou a cabeça afirmativamente.

—Há pouco mais de dois anos – ele começou – fui até Westminster buscar minha irmã Annabel, seu marido Jonathan e Ethnee para que passassem o Natal conosco, mas sofremos um acidente de carruagem. Ethnee ficou inconsciente por vários dias e quando voltou a si, estava cega. Os médicos disseram que foi por causa de uma pancada forte na cabeça. Jonathan e Annabel morreram no mesmo dia e eu nada sofri.

—Eu sinto muito! De verdade.

—Eu lhe agradeço, miss Templeton.

Amie pensou ter visto uma lágrima correr pelo rosto forte do conde e seu coração apertou-se, inexplicavelmente.

—Com sua licença, milorde – Ela se levantou – vou ver se Ethnee precisa de mim.

Amie já estava no meio do caminho de pedras que levava à cozinha, mas parou e voltou-se para o conde.

—Milorde – Ele levantou a cabeça e a viu, parada a alguns metros, um aro de luz parecia envolvê-la e ela sorria. Seu sorriso era tão doce! – Não deve se sentir culpado!

—Eu não... – A frase ficou no ar, pois Amie já havia desaparecido em uma curva no caminho.

Connor admirava a ousadia e a franqueza daquela moça de olhos cor de sol. E, curiosamente, era a primeira vez que aquelas palavras lhe traziam conforto. Algo estava acontecendo! Algo que não deveria acontecer!

Furioso consigo mesmo, o conde marchou em direção à biblioteca com a intenção de mergulhar no trabalho para afastar os pensamentos perturbadores.

Algumas horas depois, Amie finalmente encontrou tempo para desfazer suas malas. Conhecera todo o pessoal da cozinha, mas o cozinheiro fora uma grata surpresa.

Signore Paolo trabalhara na mansão até que seu pai falecera e a casa fora confiscada. Amie ainda se lembrava de muitas receitas aprendidas com o mestre italiano. A lembrança do delicioso macarrão à Bolonhesa que o chef preparava trouxe água à boca de Amie e um sorriso a seus lábios.

As criadas pareciam orbitar em volta de signore Paolo, um homem bonito, apesar das rugas no rosto, mas eram esforçadas e competentes.

Uma batida fraca na porta interrompeu os pensamentos de Amie.

—Com licença, senhorita.

 Uma jovem criada de olhos grandes e castanhos enfiou a cabeça pelo vão da porta. A touca branca escondia-lhe os cabelos e nenhum fio estava fora do lugar. Amie sorriu e disse a ela que entrasse. A menina envergava à perfeição, o uniforme das criadas de St. James Hall, em preto e azul. Um impecável avental branco pendia da cintura delgada da moça.

—Bem... – Amie sorriu. A menina parecia estar nervosa, não devia ter mais do que quinze anos de idade. – Em que posso ajudá-la?

—Meu nome é Megan, senhorita. Serei sua criada pessoal.

Amie espantou-se com tal luxo... Era a primeira vez que tinha uma criada pessoal desde que seu pai morrera.

—Está certo. – Ela sorriu. – Pode me ajudar com as malas, então?

—Certamente, senhorita.

A garota adiantou-se pelo quarto, parecendo fazer várias coisas ao mesmo tempo.

—Trabalha na mansão há muito tempo, Megan?

—Duas semanas a mais que a senhorita. – Ela virou-se, após pendurar um vestido no guarda-roupa. – Contrataram-me especialmente para servi-la. A Sra. Fitzwaring estava me treinando há até pouco tempo. Não sabe como minha família está orgulhosa por eu ter vindo trabalhar aqui... É uma linda casa, não?

—É, sim, de fato.

Amie correu os olhos pelo quarto espaçoso. Aqueles deviam ser aposentos para hóspedes, ela presumiu. A porta de comunicação, a sala de banho e a de vestir compartilhadas sugeriam acomodações para um casal de nobres em visita.

—Gostaria de tomar um banho, senhorita? – perguntou a criada, interrompendo novamente o fluxo de pensamentos de Amie. – Na última reforma, o conde fez questão de instalar as mais modernas salas de banho. Inclusive nós, os criados, temos uma...

Inacreditável!

—Agora não Megan, obrigada. – Amie apressou-se em interromper a menina, que empolgada como estava, falaria o dia todo, se lhe permitissem - Mais tarde, talvez.

—Está bem. Vou deixá-la descansar agora.

—Nada disso! Descansar é para os ricos, não é mesmo? – Amie sorriu para a moça e saiu com ela para o corredor. – Nós, moças do povo temos de ganhar a vida.

O primeiro dia de Amie Templeton na mansão dos St. James foi bastante atarefado, mas, finalmente, ela pôde se deitar e permitir-se relaxar e pensar...

11 de maio de 1888.

Novo emprego, nova vida... Mas será que conseguirei conviver com ele sem me deixar levar? Nunca tive a pretensão de reencontrá-lo. Nunca achei que fosse possível, mas mon Dieu! É ele! Quando me olhou esta manhã, tive certeza. Apenas uma vez em minha vida vi olhos como os dele: tão negros e profundos... Mas estão diferentes agora... Cheios de uma tristeza angustiante...

E como ele está bonito! Já era bonito antes, mas agora... Ele usa os cabelos compridos, presos por uma presilha, surpreendentemente simples e fora de moda para um conde. A pele pálida não diminui sua beleza, de traços fortes e elegantes. Quando ele sorri, covinhas aparecem em suas bochechas, e fazem com que ele pareça mais jovem.

O conde de Hallen tem um charme extremamente perigoso, sinto que poderia me apaixonar por ele...

 Onde, pelos Céus, eu estava com a cabeça quando lhe disse aquilo? Não sei, sinceramente não sei, mas a angústia e a tristeza que senti em lorde Hallen... Não consegui me conter! Provavelmente ele ouviu isso dezenas de vezes já, e por experiência própria, eu sei que de nada adianta. Mas eu tinha de dizer. Ele disse que tudo aconteceu no Natal, há mais ou menos dois anos. Isso quer dizer que perdeu a irmã duas semanas depois da morte de mamãe. Uma incrível e triste coincidência.

A pequena Ethnee é adorável, tão meiga e educada! Penso que vamos nos dar muito bem. Ela está um tanto pálida, mas passeios no parque irão resolver isso, com certeza.

A condessa, no entanto, é um caso à parte. Nunca vi mulher mais amargurada! Nem sequer fala com a neta! Como pode haver tanto desprezo em um só coração? Tenho a impressão de que nem o filho, ela é capaz de amar. Será por causa do acidente?

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