CAPÍTULO 1: A VOLTA DE TUDO.

Quatro anos depois.

Achei que depois de dois anos fora dessa cidade às coisas iriam realmente melhora, que iam ter uma grande e magnifica mudança. Afinal já se fizera dois anos desde que o Troy faleceu, eu já deveria ter passado por todos os estágios de luto conhecido pela humanidade e ter seguido em frente, como forme os planos que eu tinha.

Mas mesmo depois desses dois anos fora, na Itália, me ocupando com tudo que era possível, estudando e me inventando em hobbies que nem sabia que poderia gostar. Até me submeter a sair com pessoas que muitas vezes, eram completamente insuportáveis. E conseguir sempre sobreviver a mais um dia sem o meu melhor amigo por perto e na manhã seguinte tentar me convencer de que aos poucos eu estava superando, seguindo em frente, até chegar ao ponto de que eu realmente iria acreditar nisso, não serviram para nada.

Voltar para Wishfells não foi como eu imaginei, parecia que eu nunca tinha partido. A cidade não mudara em nada, tudo continuava incrivelmente lindo, típico de uma cidade litorânea que eu amava, que entretanto me fazia sentir que eu não deveria ter voltado ainda.

Porém aqui estava eu, com dezenove anos de vida, querendo desesperadamente saber o que está acontecendo comigo nos últimos meses e exatamente nos últimos minutos que estou do outro lado da rua encarando a entrada da casa dos meus pais, pensando que foi uma péssima ideia ter voltado para cá, para casa.

E sem esquecer que nos últimos oito meses eu venho tendo sonhos, se é que pode chamar aquilo de sonhos, talvez pesadelos. Pesadelos de alguém me chamando desesperadamente, como se precisassem de mim e quando eu tento encontrar a pessoa, eu vejo que é o Troy vestido todo de azul. Eu corro até ele e o abraço com todas as minhas forças e digo que o amo, amo ele mais do que toda a minha vida, lembrando de que foi essa frase que lhe disse na primeira vez que nos beijamos. E por um momento sinto que estou completa de novo, até que sinto que ele me apunhala nas costelas, e quando me afasto para ver o seu rosto, não é mais o Troy. Não sei quem é a pessoa, não consigo ver seu rosto, ela fica cada vez mais alta do que eu e quando viro meu pescoço para tentar ver aonde está a face em minhas costelas ,o que eu vejo é um punhal em forma de serpente que ganha vida e começar a se enrolar em meu corpo, me apertando até que acordo.

No começo eu apenas acordava atordoada, ficava alguns minutos deitada na cama encarando o teto e repetindo mentalmente para mim mesma que nada daquilo era real. Os pesadelos não eram todas as noites e nem sempre eram iguais, algumas vezes o começo era diferente, começava com alguma lembrança que eu tinha com o Troy, e só virava pesadelo quando eu dizia “eu te amo mais que toda a minha vida”, de algum modo sempre que eu dizia essa frase, Troy me apunhalava nas costelas e depois a serpente aparecia no lugar.  Mas nessas últimas semanas eu sentia que era apunhalada no coração e era uma adaga em forma de rosa cheia de espinhos, até que em suas pétalas começavam a pingar sangue e me via em um jardim cheio de rosas vermelhas. E agora quando eu acordo, sempre estou com uma dor de cabeça e aonde quer que eu tenha sido apunhalada no sonho, há uma marca vermelha em meu corpo, uma pequena cicatriz da adaga em meus sonhos. Uma cicatriz que ninguém mais via além de mim. Definitivamente eu estou perdendo a cabeça, aos dezenove anos eu já estou virando uma louca.

Enquanto estou relembrando e pensando em tudo isso, meu pai sai pela porta de casa e vem ao me encontro correndo, animado e sorrindo, com os braços abertos. Em um piscar de olhos, já me vejo dentro de seu abraço caloroso e apertado. Matteo, meu pai, me tira do chão e me gira, igual sempre fez desde que eu era criança, me fazendo gargalhar de uma alegria esquecida nesses dois anos.

— Minha filha! Que saudades da minha belíssima Mikaella! — falou meu pai sorrindo, me colocando no chão, porém sem parar de me abraçar.

— Também senti sua falta Matt, morri de saudades de você e do resto da família — falei alegremente.

— Bem, se sentia tanta falta porque está aqui parada e não entrou em casa? — perguntou, me soltando do abraço e me olhando preocupado.

— Eu estava apenas observando a rua, lembrando dos velhos tempos— respondi sorridente. — Nada mudou, hein? Contínua do mesmo jeito que estava quando eu fui embora.

Meu pai abraçou os meus ombros e foi me conduzindo para a nossa casa enquanto falava.

— Ah, Mikaella aqui é Wishfells, a única coisa que muda aqui são as estações do ano e a Dona Elaine de marido — disse rindo. — Vem, vamos entrar. A família toda está louca para te ver.

Erámos uma família bem dinâmica, extrovertida, acolhedora e afetiva. Minha mãe, Lena, era incrivelmente amorosa, como uma mãe deve ser eu acho, sempre me apoiou em toda a minha vida e sempre esteve ao meu lado, mesmo quando eu precisei de espaço. Dizem muito que me pareço com ela, por causa do cabelo castanho escuro, a pele morena e a nossa altura mediana. Entretanto acho que me pareço mais com o meu pai, pelo menos na parte da personalidade. Nós dois gostávamos de ter um tempo sozinhos, mesmo amando as pessoas em nossa volta. Ele gostava de jogar xadrez sozinho, ler algum livro, ouvir música no rádio ou simplesmente ficar no nosso jardim olhando para a paisagem. Eu não era muito diferente dele, eu gostava e depois do Troy eu necessitava de um tempo sozinha, na qual admito que tinha virado um hábito em minha vida, de me isolar com mais frequência que o normal, eu sabia disso e não me incomodava. E parecia não incomodar minha família também, a não ser o meu irmão, Lucca.

Ele era meu irmão mais novo, tinha dezessete anos, sempre nos demos bem. Havia brigas de irmão, mesmo assim sempre contávamos um com o outro, seja para ver filmes de terror quando crianças e ficar com medo de dormir sozinhos. Quando chovia com trovões fazíamos uma cabana no quarto e brincávamos de fazer sombras com a lanterna.

Quando me mudei para Itália pareceu que isso afetou ele mais do que eu imaginava, meus pais contavam que ele começara a matar aula, chegava tarde em casa e vivia trancado no seu quarto. Lena, jurava que um dia sentiu um cheiro de maconha saindo do quarto, porém quando foi procurar alguma prova não achou nada incriminador.

Para mim ele estava sendo um típico adolescente e estava morrendo de saudades de ver meu irmãozinho de novo.

Ao entrar em casa, tive uma bela surpresa. Havia uma faixa de boas-vindas escrito:

Benvenuti a casa Mikaella”, com desenhos de corações, flores e estrelas. A sala estava decorada com balões coloridos e um bolo de chocolate com morango, meu sabor favorito, descansava na mesa de centro. Na sala estava a minha mãe, Lucca, minha melhor amiga Natasha e seu irmão Gabriel que demorei uns segundos para reconhecer.

Todos quando me viram gritaram de alegria e vieram me abraçar, minha mãe foi a primeira, vindo logo após o meu irmão e Natasha por último junto com o seu irmão.

— Mikaella, lembra do meu irmão? — disse Natasha puxando seu irmão pela camisa e ele fazendo uma cara séria, repreendendo-a por quase estragar sua camisa.

— Claro que lembro, mas ele era um pouco menor quando eu o vi pela última vez e foi bem antes da Itália — brinquei.

Natasha riu e concordou com a cabeça.

— Verdade, não parávamos em casa quando éramos nós duas e o...  —Natasha parou de falar e ficou sem graça ao recordar do nosso passado.

Gabriel logo estendeu a mão para me cumprimentar e eu fiz o mesmo, lhe dando um sorriso de canto.

— Ei, tudo bem? Bem-vinda de volta, você está incrível Mikaella — falou Gabriel.

— Obrigada, Gabriel. Você também está incrível, nem parece com aquele garotinho que eu me lembro.

— Finalmente consegui alcançar os hormônios da adolescência — brincou. — Pode me chamar de Gabe, fica mais fácil.

— Ok e você pode me chamar de Mika ou Ella, mas a maioria me chama de Mika mesmo.

— Mika será então. Se vocês me deram licença, seu irmão está me devendo uma partida no videogame — informou Gabe, logo saindo ao encontro do meu irmão.

— Eles são amigos? — perguntei a Natasha.

— Ah, está mais para melhores amigos. Já faz uns dois anos, não sabia?

— Não, o Lucca nunca me disse nada.

Natasha deu de ombros e me pegou pela mão, me levando para o sofá.

— Quem liga? Ele deve ter esquecido. Agora me conte tudo sobre a Itália, não esconda nenhum detalhe e nem se atreva a dizer que não houve nada demais — falou Natasha com entusiasmo, já me puxando para baixo e me fazendo sentar no sofá.

Revirei os olhos de brincadeira e me ajeitei melhor no sofá ao seu lado.

— Ok, ok contarei tudo o que você quiser saber.

— É disso que eu gosto, senti sua falta — sorriu ao dizer isso.

— Oh, eu também senti Nat — confessei, lhe abraçando.

— Tá bom, agora chega e conta logo. 

Quando deu dezenove horas, Natasha e Gabriel foram embora. Na nossa despedida, marcamos de nos ver no dia seguinte para que ela pudesse me contar suas próprias novidades nos últimos dois anos. Já com o Gabriel, ele e meu irmão tinham uma partida de algum jogo de praia que ocorreria amanhã, não havia prestado muito atenção no convite feito pelo Gabe para que eu fosse assistir a partida. Natasha sentiu surpresa com o convite, segundo ela, Gabe não convidava ninguém para ver seus jogos, nem mesmo ela. Para mim, ele estava apenas sendo educado, querendo me fazer sentir em casa de novo, não havia nada demais naquilo.

Depois que eles foram embora, minha família toda se espalhou pela casa. Minha mãe tinha que preparar alguma coisa sobre seu trabalho de assistente social, meu pai tinha ido para o jardim para ler algum livro novo de receitar, Lucca se enfiou para dentro do seu quarto. Pensei em entrar e conversar com ele para saber um pouco mais sobre a sua vida de delinquente que estava preocupando nossos pais de forma exagerada. Porém, havia decidido ficar um pouco na varanda e aproveitar um pouco do silêncio fornecido pela família.

Ao sair de casa, senti como se a temperatura tivesse caído uns dez graus, estando muito frio para o dia quente que tivemos, deixei isso passar e me encostei na cadeira de balanço que tínhamos na frente de casa.

Quando me acomodei na cadeira, notei um homem do outro lado da rua, parado exatamente no mesmo lugar que eu estava hoje cedo. Usava uma roupa toda preta com brilhos vermelhos e azuis que radiavam envolta dele, me fazendo cerrar os olhos. O brilho não me permitia enxergar bem o seu rosto.

Pisquei os olhos repetidas vezes, querendo que aquilo sumisse da minha frente. Porém ele continuava ali. O mundo inteiro pareceu parar, só existia nós ali naquela rua, nos encarando, eu não sabia se me movia ou não, o meu corpo se fixou na cadeira e o ar saia frio de meus pulmões. Tudo piorou quando o rapaz levantou a mão em minha direção, em seu braço uma serpente se enrolava enquanto em sua mão uma rosa vermelha surgiu, caindo em forma de sangue pelos seus dedos. Sua boca começou a se mover, mas nenhum som eu conseguia ouvir. Instantaneamente me lembrei dos meus sonhos e meu corpo inteiro congelou, por um momento que pareceu uma eternidade, meus olhos pousaram nos deles, olhos vazios e azuis ele tinha. De sua boa saia lufadas de ar gelado, como se ele estivesse em um local frio, porém continua sem conseguir ouvir sua voz.

Não sabia por quanto tempo havia ficado nesse estado de loucura. Havia voltado subitamente para a realidade quando o Gabriel surgiu aos pés da varanda, me chamando de forma cautelosa.

— Mikaella, está tudo bem?

— Ah sim, está tudo bem. Apenas achei que tinha visto alguém do outro lado da rua — comentei, fazendo Gabe olhar para trás, na direção do rapaz que não estava mais ali.

— Parece que na verdade você viu um fantasma — comentou de forma cômica.

Balancei a cabeça para afastar a sensação de loucura do meu corpo. Porque definitivamente eu poderia estar vendo fantasmas.

— Mas e você? O que faz de volta aqui, não estava indo para casa junto com a sua irmã?

—Sim, só voltei porque esqueci meu casaco na sua casa e meu celular e óculos estão dentro dos bolsos.

— Tudo bem, pode entrar e pegar. Acho que o Lucca deve estar ouvindo música com fone de ouvido e pode não te responder — lhe avisei enquanto abri a porta de casa e entrava junto com ele.

— Sem problema, acredito que deve estar na sala na verdade — informou, dando um sorriso de canto que me fez lembrar do Troy.

Logo afastei tal lembrança. Troy se foi Mikaella e ele nunca mais vai voltar, disse a mim mesma mentalmente.

— Tem certeza de que você está bem? — perguntou, me olhando com as sobrancelhas franzidas.

— Sim, foi lembrei de uma coisa — o tranquilizei.

— Ah, espero que tenha sido algo bom.

— Com certeza foi — confirmei com um suspiro de saudade.

Depois que Gabe foi embora com seu casaco, subi minhas malas para o meu quarto e comecei a desfazer elas, tentando não pensar na loucura que ocorreu comigo a quase meia hora atrás.

Meu quarto estava do jeito que eu havia deixado anos atrás. Minha cama estava encostada na parede no fundo do quarto, com o guarda-roupa do lado esquerdo, do lado da cabeceira ficava dois criados mudo, um de cada lado. O banheiro estava do lado direito perto da minha janela com parapeito e a mesa embaixo dela, de frente para a minha cama havia outra mesa com estante em cima, onde ficava meus livros e outras coisas. A cor rosa bebê ainda me deixava calma ao entrar no quarto e sorri com a nostalgia ao ver os pôsteres pendurados na parede.

Só que mesmo assim eu não conseguia parar de lembrar do que havia acontecido lá embaixo, estava ficando muito preocupada com tudo isso, tentando achar uma explicação plausível para tudo aquilo. Talvez um surto psicológico que acontece sob muito estresse que eu poderia estar tendo ou alguma coisa desse gênero, só que nada do que eu pensava que poderia ser uma explicação completamente razoável e racional me convencia.

Então por um reflexo qualquer, peguei o celular e disquei o número do Troy, esquecendo por três segundos que ele nunca iria atender. Fechei o celular e me sentei na cama, pensando que as coisas eram tão mais fáceis quando eu tinha quinze anos e o mais importante era saber se eu tinha passado na prova de química.

Quando se tem quinze anos, achamos que tudo que acontece tem uma solução, que sabemos tudo o que é necessário sabe e que todos os nossos planos para o futuro são muito fáceis de se realizar. Que se aquele garoto da escola não nos telefonar no dia seguinte, significa que nunca em nossas vidas um garoto irá gostar de nós. Bem, essa parte dos garotos eu acho que não tive que passar, eu tive a grande sorte de ter tido o melhor garoto do mundo como o grande amor da minha vida, apenas queria ter tido mesmo uma vida inteira com ele.

Lembrando dos dois incríveis anos de namoro com o meu melhor amigo Troy, fico me perguntando aonde foi que eu errei para tudo o que aconteceu ter acontecido comigo.

Eu sempre acreditei em Deus, em algo divino e que nossas vidas sempre havia um propósito, que grandes coisas acontecem com grandes pessoas. Então quando descobri que Troy tinha sofrido um acidente de moto em um feriado com a família, eu fiquei  completamente desamparada espiritualmente, me perguntando o pôr que disso tudo ter acontecido, aonde eu tinha errado para ter pedido o grande amor da minha vida e se eu não poderia ter feito alguma coisa para aquilo não ter acontecido.

Fiquei desejando que Deus me levasse também, porque sentia que eu nunca mais conseguiria viver de novo, não conseguiria sair da cama pela manhã sabendo que nunca mais veria Troy, nunca ouviria sua voz, sua risada e pensar tudo isso me matava por dentro. Nunca tinha pensado em suicídio, porém pensava muito na morte e isso por si só era algo muito preocupante, admito.

No começo disso tudo é claro que eu fiquei devastada, não queria ver ninguém, não comia e vivia deitada na cama chorando e só pegava no sono depois de passar horas chorando. Minha família tinha me dado espaço para sofrer o meu luto e Natasha também. Mas depois de quase seis meses sem qualquer melhora da minha condição, meus pais acharam melhor eu ir terminar meus estudos na Itália, porque a origem da minha família é italiana. A princípio fui contra a ideia, não queria ir embora, não queria deixar nada para trás, não queria deixar minha vida para trás, era isso que eu dizia a eles, mas no fundo era porque não queria largar a vida que eu tive com o Troy e meus pais sabiam disso também.

Então aos dezessete anos fui morar na Itália, no começo foi difícil. Além de não falar direito italiano, estar em um país estrangeiro, sem ninguém que conhecia e com o coração partido, às coisas realmente não poderiam melhorar, pensava eu.

Só que elas melhoraram, não foi uma melhora perfeita, foi uma melhora suportável, fingida, uma melhora disfarçada. Foi ficando cada vez menos difícil de se viver lá, comecei a falar fluente o italiano, saia todos os finais de semana e sempre que tinha tempo entre os estudos, conheci museus, cidades e tudo o que poderia me fazer superar a minha dor. Conheci pessoas incríveis de dores compartilhadas com a minha, mesmo eu não sendo a melhor companhia na época, isso não era um problema para eles. Então quando voltei para cá, não larguei nada que eu pudesse sentir extremamente falta, nenhum novo amor para trás. Só que estar aqui de novo me fez desejar voltar para a Itália, ainda mais depois desse evento bizarro.

Resolvi parar de sentir pena de mim mesma, afinal ficar me lamentando por coisas que não havia como mudar, não iriam me ajudar em nada. Então resolvi tomar um banho e tentar descansar um pouco depois desse longo dia de volta para casa. 

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