Amor de Família
Amor de Família
Por: Sandro Souza
Capítulo 1

Solidão, para uns pode ser uma fonte de inspiração, para outros um castigo, ainda outros podem considerá-la como um refúgio enquanto que uns outros preferem vê-la como um algoz cruel; para mim acho que ela é um misto de tudo, minha eterna companheira, minha cruel carcereira.

A vida toda fui sozinho, quando pequeno, ainda com apenas dois anos de idade me perdi dos meus pais não me lembro muito de minha vida com eles, mas acho que meu pai era músico, pois ainda me lembro dele tocando piano e esse dom que hereditariamente passou pra mim me prova que essa imagem não é apenas um simples devaneio mas uma lembrança distante de uma vida que poderia ter sido minha mas que por casualidade do destino me abandonou à própria sorte.

Hoje tenho vinte anos, moro sozinho e sou bem mais feliz do que no lar de minha família adotiva, tenho meu próprio emprego, o qual me permite ganhar meu pão de cada dia e pagar minhas contas sem sair de casa, as vezes eu preciso ir até o escritório da empresa prestar contas e apresentar alguns relatórios de serviços executados (mas tenho amigos que sempre me ajudam também nessa tarefa e o trabalho acaba sendo mais do que prazeroso, até divertido eu diria).

Um desses amigos é o Arthur, não sai da minha casa, as vezes até preciso expulsá-lo em outras passo mais de uma semana suplicando pra que ele venha, os pais dele dizem que aqui é a segunda casa dele, até decoraram o número do meu telefone. Mas, tirando o Arthur, acho que tenho alguns poucos amigos (não tão íntimos assim) na orquestra da igreja que frequento aos finais de semana (eu iria nos dias de semana também se as aulas na universidade não me impedissem, mas logo me formarei e então terei mais tempo livre.

Um dos lugares que mais gosto de estar quando não estou em casa trabalhando ou ocupado com alguma coisa é na igreja, é lá que sei as respostas de Deus para as complicações da minha vida, é lá que Ele tranquiliza minha solidão. É lá também que gosto de trocar ideias com meus amigos. Já cansei de convidar o Arthur pra fazer-nos uma visita mas ele é do tipo avesso a religião (espero que um dia ele mude sua maneira de pensar).

Foi na igreja também que me encontrei com o pior martírio da vida de um homem, lá eu encontrei um algoz pior do que a solidão, ou eu deveria dizer “uma” algoz, pois a simples menção do meu nome já é suficiente pra apagar de seu rosto o sorriso mais belo, não sei que motivos lhe dei para que ela me odeie tanto assim, não sei também por que motivos seu olhar penetrante e seu sorriso doce me cativam tanto, embora nunca tenham sido endereçados à mim; mas de uma coisa tenho certeza, não consigo dormir um só dia sem antes ver uma de suas fotos ou assistir algum vídeo que ela tenha postado na internet. Preciso vê-la todos os dias, preciso “falar” com ela todos os dias, senão me falta o ar.

É incrível como a tendência mais natural do ser humano é gostar de quem não gosta da gente, as vezes até acho que seja melhor assim, me pego reprovando a mim mesmo por causa disso, penso até que tenho medo de ser feliz, por causa dos problemas que toda felicidade traz junto a si. Mas não tinha como conhecer a Daniela sem se sentir extasiado por aqueles olhos claros, dois terços de todos os rapazes que conheço ou ouvi falar literalmente até param de respirar ante a simples presença dela e por que eu, um mísero programador, praticamente órfão, ganhando o suficiente para se manter teria o privilégio de ter uma garota como ela? Acho até que olhar tanto pra foto dela me faz pensar como ela, que na verdade não passo de um garoto como outro qualquer.

Mas tudo o que eu mais queria nessa vida, era saber o que foi que fiz a ela pra lhe causar tanta repulsa? Quando ela passou por mim pela primeira vez, no corredor que dá acesso ao estacionamento da igreja, não pude evitar olhar para aquela deusa, e percebi que também fui olhado, mas antes que eu pudesse sonhar qualquer coisa seus olhos faiscantes me revelavam que aquele olhar não era de boas-vindas, pareciam me dizer que se eu me atrevesse chegar mais perto poderia me arrepender.

Não sei se esse foi o dia mais feliz da minha vida ou se foi o pior de todos eles, pois à partir desse instante ela passou a habitar minhas noites insones. Depois dela ter passado por mim no corredor, eu só tornei a vê-la uma semana depois e dessa vez o Eduardo estava do meu lado e teve de chamar minha atenção pois mesmo após ter quebrado uma corda do meu violino eu não parava de olhar pra ela:

– Ei cara, acorda – me deu um cutucão forte na costela.

– Hã, desculpe, eu ‘tava...

– Eu sei, você ‘tava olhando pra ela.

– Quem é ela?

– Desiste cara, ela não é pra gente “como nós.”

– Como assim, “gente como nós”?

– Cara, olha pra ela, olha nos olhos dela, essa garota é um anjo, acha que garotas assim deixam qualquer um chegar perto delas?

– Ela é mesmo um anjo, só a presença dela já deixa a gente extasiado. – eu falava com ele sonhando acordado, como que olhando pro nada.

– O nome dela é Daniela, é uma das patricinhas daqui, namora com o filho do pastor Ruan.

– Qual deles, o Daniel?

– O próprio

– Aquele cara não presta.

– Ela não pensa assim.

– Cara, quando olhei nos olhos dela, parecia que... sei lá, que ela me odeia, tanto que eu fiquei ate perdido, sabe, fique até perturbado.

– Acho que ela deve ter visto você estacionar sua moto lá nos fundo, quando ela não vem de táxi o pai dela ou a irmã à trazem num Audi, o carro da família. Leonardo, você não vai ser o primeiro nem o último a sonhar com aquele belo corpinho, ela é filhinha de papai, só namora com caras que “ela” mesma escolhe, é linda, tem tudo o que o dinheiro possa comprar ou que os pais possam dar, namora com um dos filhos do pastor e só é amiga de quem tem dinheiro, acha que ela vai namorar com um programadorzinho que mora de aluguel? Além do mais você só a viu duas vezes não acho que ela “te odeie”, talvez apenas não foi com a sua cara, ela só anda com quem tem dinheiro e isso todo mundo sabe que você não tem.

A noite não pude deixar de ficar pensar no “programadorzinho que mora de aluguel” meus próprios colegas às vezes me decepcionavam, ele não precisava me ofender daquela forma, me lembrei imediatamente do meu pai adotivo, de quantas vezes ele me chamava de imprestável, de vagabundo que não faz nada na vida.

Mas aqueles olhos. Ah! minha nossa, aqueles olhos não me saiam da cabeça, fechei meus olhos deitado na cama, olhando o teto e sonhando com aqueles olhos azuis, lindos como o céu, aquela boquinha pequena enfeitando um queixo fino e delicado, nariz fininho e naturalmente empinado sem necessidade alguma de qualquer plástica, cabelos liso ondulados e naturalmente castanho claros, quase louros mas com algumas mechas acobreadas aqui e ali que fazia todo mundo pensar que era ela quem as tinha colocado lá, corpo magrinho, cintura bem fina que me deixava louco de vontade de abraçá-la por trás e beijar seu pescoço delicadamente e aqueles olhos. Ah! Aqueles olhos, em meio a visão daquele anjo em meus pensamentos ainda podia ouvir uma voz gritando em meus ouvidos: “programadorzinho que mora de aluguel, imprestável, programadorzinho de aluguel, imprestável de aluguel, programadorzinho imprestável” ... Gritei num acesso de raiva tão grande que estilhacei na parede o controle remoto do aparelho de som.

“Eu juro que vou fazer ele engolir essas palavras, ah se vou, cada um deles, eu juro, eu juro, eu juro, eu JURO, eu... Daniela, Danny, minha Danny, minha...”

Não sei por quanto tempo chorei ali sozinho chamando-a de “minha” Danny, mas acordei na pior quinta-feira da minha vida, havia dormido no chão, em meio ao que havia sobrado do meu controle remoto, o copo de suco que eu havia trago pro quarto derramou e o chão estava cheio de formigas, depois de limpar tudo decidi não trabalhar naquele dia, liguei pro Arthur e depois de conseguir convencê-lo a enforcar a faculdade, o traste do meu único amigo estudava de manhã, pedi que trouxesse suas poucas “bagunças” de eletrônica da casa dele, transistores, ferro de solda, placas de circuitos e coisas assim, depois de algumas horas havíamos transformado o que um dia foi um controle remoto de aparelho de som num controle de computador, era por isso que a gente se dava tão bem pois enquanto ele  estudava hardware na faculdade eu entendia alguma coisa de software, que tinha aprendido no trabalho e agora eu poderia controlar meu player de músicas do computador com o controle do som, a gente não precisou alterar nada na aparência externa dele, mas de tarde eu estava novamente sozinho e pra não entrar novamente no meu “pânico emocional” desci as escadas em caracol que tinha na porta da sala, e fui bater papo na casa da dona Fátima.

Era uma senhora de óculos que era dona do apartamento que eu morava, ela morava numa casa grande de uns cinco ou seis cômodos apenas com os dois filhos: Felipe e Adriel, o Felipe eu raramente via, ele trabalhava muito, já o Adriel as vezes sozinho, as vezes com um ou dois amigos. O marido da dona Fátima, seu Otávio havia morrido de ataque cardíaco a alguns anos, ele era um engenheiro aposentado que passava o tempo cuidando de um comércio no mesmo quintal onde ficava sua casa, em cima do comércio ficava um depósito velho onde guardavam tudo o que fazia parte desse comercio, desde móveis e prateleiras velhas até produtos de reposição no míni mercado da família.

Depois da morte do seu Otávio, o comercio fechou as portas e ela resolveu alugar o espaço, transferiu todas as coisas do depósito para onde funcionava o comercio, instalou uma escada caracol bem na frente, dividiu o espaço em cômodos, transformou tudo num apartamento pequeno com direito até a uma varandinha de um metro de largura que se estendia pela largura toda do pequeno sobrado, mais ou menos uns cinco ou seis metros, de um lado eu estendia minha roupas molhadas que eu tirava da máquina, do outro eu havia colocado uma cadeira de balanço onde as vezes eu me  sentava aos finais de tarde pra ver o movimento de carros da avenida principal mais longe, minha rua era praticamente morta, só não completamente por causa de uns carros que passavam a cada vinte ou trinta minutos.

Foi muito bom conversar e me distrair com a simpatia daquela velhinha de óculos e com as piadas do Adriel, me desliguei tanto da realidade que saí às pressas ao perceber que já estava escurecendo, eu odiava chegar atrasado na faculdade, e naquele dia não tinha jeito, culpa da Daniela pensei, ela bem que poderia ter nascido um pouquinho mais feia, assim eu não estaria tão deprimido daquele jeito.

Um mês depois eu já estava mais acostumado ante a presença daquele “anjo” recém chegado que passava por mim na igreja, é bem verdade que estava também muito mais fascinado e nunca deixava de olhá-la a exemplo de todos os outros rapazes, mas eu era o único com quem ela realmente se importava, e agora ao invés de um simples olhar de sobrecenho franzido e uma virada brusca para o lado contrário eu recebia através de meus amigos palavras de ofensas e reprovações dela própria.

Um dia não tive como evitar quando vi que iria passar por mim e pelo Eduardo parei imediatamente o que estava fazendo me virei na direção dela e fiquei olhando só pra ver no que ia dar, ela como de costume, virou-se para o outro lado, ainda de costas, alguns segundos depois ela resolve olhar, apenas pra constatar que eu ainda estava ali.

– Para de provocar Léo, você vai arrumar confusão.

– Ela tem que saber que eu não tenho medo dela.

– Acha que ela se preocupa com isso? Ela não gosta de ser encarada desse jeito.

– Tô nem aí, ela é a garota mais linda que eu já conheci Edu, não tem como não olhar uma deusa dessas, só a presença dela já hipnotiza a gente.

– Leonardo, eu...

Ele teve de se calar pois a própria Daniela vinha em nossa direção:

– Quem é você?

– Como assim, quem...

– Seu nome ora essa, não sabe nem o seu nome?

– Leonardo e o seu?

– Não te interessa, escuta uma coisa, já estou de saco cheio de você me olhando desse jeito, eu tenho cara de que?

– É que...

– Não quero saber – ela era pouca coisa mais baixa que eu e de salto ficava quase da minha altura, apenas uns centímetros mais baixa e naquele dia estava com tanta raiva que a respiração estava rápida e os olhos faiscavam de ódio, a voz saía alta quase gritada, não tinha como qualquer um que estivesse ali na sala não ouvir – ponha-se no seu lugar, você não se enxerga não?

– Daniela se acalme, ele...

– Eduardo não se meta onde não é chamado, cale sua boca – disse ela olhando pra mim, mas com a mão direita estendida pra ele num gesto que dizia claramente: “fica na sua” – e quanto a você – ainda me olhando nos olhos com raiva – se eu pegar você outra vez com essa cara de idiota eu juro que...

Não conseguiu terminar a frase, saiu dali batendo os pés, desceu as escadas com raiva e não a vi mais pelo resto do dia.

– Rapaz, eu achava que ela não ia com a sua cara, mas acho que eu me enganei.

Olhei pro Edu sem perguntar nada, nem foi preciso, ele mesmo completou:

– Cara ela te odeia, que foi que você fez pra ela?

– Eu sei lá, foi a primeira vez que eu falei com ela.

– Que houve com a Daniela, Edu?

– Sei lá, o Leonardo só estava olhando pra ela, de repente baixou o santo nela.

Ária era mais uma das garotas de nossa igreja, já tinha sido namorada de Eduardo, mas depois do fim do namoro continuaram apenas como amigos, ela tinha a mesma idade que eu cabelos castanhos liso ondulados, pele morena clara e era baixa, trabalhava como Assistente Social numa empresa conhecida de nossa cidade e também era uma grande amiga para quem sabia como enfrentar sua timidez quase exagerada.

– Leonardo, você é tão inteligente, como ainda não aprendeu que não se olha uma serpente nos olhos.

– Mas eu nunca fiz nada pra ela, não entendo como ela me odeia tanto, eu a conheço a pouco mais de um mês e no entanto essa foi a primeira vez que conversei com ela, e vocês viram como foi, eu juro que nunca fiz nada pra ela.

– Eu sei Léo, aliás a gente sabe, só que a Ária está certa, você não precisa provocar uma serpente pra ela te picar, as vezes basta apenas olhar pra ela.

Só que se essa serpente a quem eles se referiam era a Daniela, a “minha Danny”, como eu dizia para as fotos dela, e eu já estava envenenado, não sou nenhum masoquista mas quanto mais ela me odiava, mais eu enlouquecia de tanto pensar nela, e nesse dia quando cheguei em casa tive uma ideia, eu havia guardado em meu computador umas fotos dela que eu tirei da internet, escolhi uma das músicas que eu gostava de ouvir nos meus momentos de depressão e criei um slide show, cheio de efeitos de transição e com fotos escolhidas, realmente uma “obra de arte”, pensava eu em minha “modesta opinião.

Depois de repeti-lo por umas quatro ou cinco vezes eu já começava a me sentir melhor, misteriosamente o que era pra piorar ainda mais minha depressão, acabava por me aliviar dela. E foi assim que dormi tranquilamente naquele dia.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >
capítulo anteriorpróximo capítulo

Capítulos relacionados

Último capítulo