A Filha do Fogo
A Filha do Fogo
Por: HD Alves
Cinzas das Chamas

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Na formação do Reino Lunar, ano 201

O cheiro de sangue e carne pútrida me faz torcer o nariz, e franzir a testa logo em seguida quando dor percorre meu rosto inteiro com o movimento.

Mas nada se compara com a dor desta visão.

O resultado que a Guerra nos deixou não é nem um pouco agradável. Corpos e mais corpos despencados no chão - ou partes de corpos - preenchem cada centímetro do gramado que antes era puro verde mas que agora brilha em um ígneo vermelho. Sangue inimigo misturado com sangue aliado. Sangue dos meus companheiros. Sangue que eles quiseram derramar para me proteger; um príncipe que nunca foi merecedor de tudo isso e que teria sim oferecido sua vida em troca das que foram perdidas nesse campo de batalha.

Mancando fortemente em direção à maior concentração de corpos empilhados ㅡ onde a briga havia sido feia ㅡ, procuro por algum rosto conhecido ou sobreviventes. E também pela rainha, que decidiu não ficar apenas esperando na tenda e resolveu se vestir igualmente aos demais homens e se juntou à guerra. Ela não usou nada que pudesse diferenciá-la dos outros homens; uma jogada para que ninguém a impedisse quando saiu escondida de onde era designada a ficar, em um dos barracões bem longe e perto da rota de fuga para qualquer emergência. Uma estratégia também para que ninguém a encontrasse caso pensássemos no pior que poderia ter lhe acontecido.

Ela tem que estar viva. Ela tem que estar viva. Tem que estar. Eu não vou aguentar se não estiver.

Em completo transe e passando por poças e poças de sangue, olho para cima e encontro o céu azul me encarando de volta. Como pode estar assim e não nublado, principalmente em um dia como esse? Como pode o sol brilhar tanto hoje enquanto nós estamos completamente submersos nas trevas?

O último raio de sol da manhã anterior havia sumido atrás das grandes colinas ao nosso redor, dando-os visão privilegiada da guerra que acontecia. Após isso, não vimos mais seu brilho. As nuvens escuras lotaram o céu e desde então fomos castigados pela chuva, que aumentou a quantidade de lama em nosso campo de batalha e assim fez com que muitos dos nossos soldados morressem.

O cheiro da carne em decomposição é minha única certeza de que ainda estou vivo e que estivemos bem perto da derrota. Tão perto que ainda não acredito totalmente que vencemos. Tão perto que eu posso ver em minha cabeça vários flashbacks dos tempos antigos quando eu era apenas um garoto já no campo de batalha só esperando que um dos inimigos viesse por trás e me desse um golpe certeiro para me derrubar.

O brilho das espadas ao meu redor são como um soco no estômago, uma memória aterrorizante que me perseguirá até o fim dos meus dias. A batalha chegou a um ponto tão difícil que eu mal me lembro de sequer levantar o braço para atacar. A exaustão, cansaço e miséria foi o suficiente para que eu passasse a lutar totalmente no automático, não me preocupando mais sobre o que era realidade ou a imagem que minha cabeça projetava pelos dias sem dormir.

Tanto sangue. Tanta dor. Por favor, permita que ela esteja viva.

Eu não sabia com quem estava falando; meus lábios se moviam, mas eu não ouvia nada saindo. Minhas mãos tremem, mas ainda assim não há nada que elas busquem.

Uma lágrima escorre por meu rosto quando olho ao redor, a sombra vermelha marcando o chão como ferro quente na pele de animais, cicatrizando para sempre meu coração. Minhas pernas tremem pelo esforço, mas continuo me forçando a continuar caminhando e olhando para cada um que lutou ao meu lado, inclinando a cabeça em reverência para eles. Mortos. Por minha causa.

Mas para uma criatura imortal como eu, que fui forçado a ser um guerreiro desde criança ㅡ o que foi há muitos séculos ㅡ, dois anos de guerra não foram nada. Isso foi o que plantei na cabeça depois que perdi meus bens mais preciosos para as mãos inimigas. Tenho lutado, desde então, como um nada. Sem esperança de uma vida contínua e não me importando se algum inimigo quiser me matar. Na verdade, acredito que o agradeceria.

E sinto que agora perdi mais um pequeno brilho de mim.

A busca por Althaea não parece dar resultados enquanto eu me arrasto pelo gramado vermelho em direção à maior concentração de abutres sobrevoando o céu, em busca de seu almoço. Passo por vários corpos já comidos pelas aves, alguns sem olhos e outros com os membros superiores em carne viva. O medo de encontrar minha rainha sendo devorada por estas aves causa um nojo repentino na boca do meu estômago, fazendo a bile subir por minha garganta. Não posso imaginá-la morta. Seria como uma faca enfiada em meu coração.

Passo por cima de um de meus companheiros, engolindo em seco na expressão aterrorizada em seu rosto pálido e paralisado. Suas asas destruídas ao redor do corpo são uma confusão de membrana torcida e penugem; apenas um indício do que eles nos fizeram passar ao agredir nossos pontos mais fracos. Tento segurar o vômito subindo pela minha garganta, mas o esforço de não vomitar se torna tanto que eu acabo cedendo e caindo de joelhos no chão, colocando para fora apenas o ácido do estômago. A garganta queima pelo esforço de estar gritando como maluco nos últimos dois dias, juntamente ao fato de não ter ingerido nenhum alimento neste tempo. Esfrego a testa, o mesmo gesto que fazia quando criança enquanto queria espantar algum monstro de minha cabeça para não ter pesadelos. Mamãe odiava que eu a acordasse.

Minhas asas, antes flamejantes com fogo ardente e brilhante, agora pendem caídas de minhas costas e se arrastam no chão podre, soltando fumaça em cada movimento. Não tenho forças para voar e adiantar todo o processo, por isso deixo-as cair das costas. O baque delas nas minhas costas quando pulo sobre o corpo de um cavalo me causa mais dor ainda, me fazendo curvar e segurar os joelhos para tomar uma respiração mais calma. Tento não encarar para o buraco onde deveriam estar os olhos do pobre animal, e silenciosamente faço uma prece por ele.

Chega um tempo que, após tanta luta, seu poder não funciona mais da mesma forma. As asas perdem o brilho, a força, e passam a ficar cada vez mais fracas até que você é obrigado a descer se não quiser cair.

Parando ao encontrar ao longe um homem de pé, avalio sua armadura com olhos críticos. Amassada e com algumas boas partes faltando. O sangue escorrendo de sua perna me faz crer que ele deve ter um ferimento bastante feio ali. O homem está de costas para mim, mas vejo que ele segura algo. Com pressa e arrastando o pé direito pelo chão - o que foi mais danificado na batalha -, chego até onde ele está no exato momento em que o homem cai de joelhos.

ㅡ Rainha Althaea ㅡ sussurra, a voz falhando.

O peso no meu coração se intensifica, e eu paraliso por um tempo antes de engolir em seco e avançar até... ver.

O rosto de minha rainha.

Encarando o nada, seus olhos antes vibrando em um azul celeste agora estão opacos e sem vida.

Isso porque alguém tirou-a dela.

Meu último bem mais precioso... se foi.

Ela... simplesmente foi.

A dor apunhala meu coração com um golpe certeiro, agarrando cada centímetro de carne em meu corpo até tudo o que sinto é dor, dor e dor.

Minha cabeça aquece com a raiva, descendo até consumir meu peito por inteiro, o sentimento fluindo e tomando conta de cada centímetro de mim.

O urro que sai da minha boca é completamente animalesco e cheio de ódio. E promessas. Dor e medo enchem minhas veias, minha boca, meu coração. Ódio queima em minha língua, o fogo saindo de dentro de mim em pequenas brasas; o único resquício do poder que me restou depois da Guerra.

A Guerra que levou minha rainha.

A mesma que levou toda a minha família.

Caindo fortemente de joelhos ao seu lado, ignoro a dor no joelho direito que provavelmente está quebrado e em pedaços e me concentro em seu rosto. Suas feições doces e belas se foram; apenas o vazio existe ali.

Suavemente toco sua bochecha, lembrando de tempos antigos onde eu era criança e acordava com um pesadelo e corria direto para o quarto de Althaea. Ela me abraçava até que toda a dor fosse embora. Mas agora...

Meus punhos batem no chão ao lado de sua cabeça com força suficiente para fazer um buraco na terra, a tristeza e fúria me consumindo de dentro para fora e rasgando minha pele. As lágrimas que escorrem agora livremente pelo rosto são como pequenas feridas se formando em minhas bochechas, arrastando tudo de bom e deixando apenas a dor para que eu a sinta.

Apenas dor. Apenas dor.

Diga-me que isso não é verdade, por favor. Eu não posso suportar isso. Só diga-me que é mentira.

Apenas quando o homem me sacode com força percebo que estava falando em voz alta, implorando a quem quer que seja para trazê-la de volta.

Soluçando e erguendo a mão, toco seu rosto macio apenas para fechar seus olhos e inspirar o leve cheiro de jasmin que ainda emana dela. Sempre me perguntei como ela conseguia manter esse cheiro por tanto tempo, e agora entendo que Althaea queria que um último pedaço de si estivesse presente no meio de tanto desastre.

Uma flor brotando no deserto.

A luz na escuridão.

Não aguentando mais a tortura de vê-la sem vida, me ponho de pé e olho mais uma vez para o céu, em seguida para o reino muito distante; uma ilha a milhas de distância de nós. Estendo a mão para o céu e invoco o único poder que me resta quando aponto para o reino distante, um sombreado de terra e névoa despontando na longitude do mar. O reino que tirou minha pequena luz de mim.

Uma luz flui da palma de minha mão quando concentro o resto de minha magia para lançar este último feitiço sobre eles. Para lhes dar o inverno.

O frio para seu reino sempre tão quente e ensolarado. A tristeza em troca da alegria que eles me tiraram.

Quando dentro de mim não sobram mais nada além de cinzas deixadas pela dor, apenas assisto as nuvens escuras se formando sob o castelo; o pico mais alto do reino. E a neve começando a descer. Soluçando fortemente, caio de joelhos ao lado de minha rainha, vendo que o homem sentou-se ao meu lado, o rosto contorcido em sofrimento.

Encarando Althaea e depois o homem, ordeno a ele:

ㅡ Sei que consegue conservar corpos ㅡ digo, indicando sua insígnia no uniforme ㅡ, então faça isso. E depois o esconda. Faça com que todos saibam da morte dela, e quem a causou. Mas não exponha seu corpo a ninguém. Faça tudo sozinho. Eu preciso...

Eu não sei o que preciso.

De repente, me lembro.

Com dedos trêmulos, toco suavemente o ventre de minha rainha. Meus olhos despejam mais lágrimas quando sinto apenas ali um rastro de magia, mas não o que realmente deveria estar.

Então lhe dou uma ultima olhada. Para sua armadura idêntica à minha. Enxugo as lágrimas em meu rosto ao perceber que ela não ligava para o perigo ou que poderia morrer nesse campo de batalha; apenas queria lutar juntamente com os outros. Apenas queria ser uma guerreira.

E foi a mais corajosa que já vi.

Virando as costas para ela, encaro o desastre causado pela Guerra.

Tantas mortes. Tanta dor.

Então aqui, faço uma promessa.

Da mesma forma que Althaea me prometeu através de um pequeno bilhete em cima de minha cama no momento em que soube que ela não fora encontrada em nenhum lugar na tenda.

Um brilho. Foi isso que ela disse em suas poucas palavras.

Confie no brilho, Caedrus. Tenho certeza que saberá o que fazer. Apenas confie em si mesmo e não negue seus sentimentos, por mais que queira fazê-lo. E não me culpe por estar fazendo o que estou fazendo. Eu sempre quis ser livre, e finalmente tive minha chance, mesmo que ela não tenha agradado a todos vocês. Se um dia nos encontrarmos novamente, espero que seja da forma como sempre sonhou quando ainda era menino. Seja feliz, meu querido. Eu sempre estarei com você.

Dessa forma, acredito nela.

Porém o ódio por quem a matou não vai embora.

E eu tenho muito medo de que um dia ele venha a me consumir.

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