Capítulo 2 - Parte 2

Hwaseong, Coreia do Sul. Castelo de CheonSung, 28-11-2018.

     Hyun Shik, tentando ao máximo conter sua fúria, foi aos seus aposentos e entrou abruptamente, fechando a porta com uma forte batida, rosnando e ecoando em alto som naquele corredor vazio. 

     — Ya! Ya! Ya! — Hae Ri chamou. — Pare de dar esporro em tudo! Você não é assim!

     Ele foi até sua cama e colocou seu rosto no travesseiro, gritando com todas as suas forças, ao imaginar que não podia sequer descontrolar-se sem por ela em perigo. 

     Minutos após seu acesso de raiva, respirou fundo e deixou seu corpo cair sentado no chão, ao lado da cama, encostando a cabeça no colchão, erguendo-a para cima com seus olhos fechados. 

     — Ei, Hyun Shik... — chamou mais uma vez.

     — O que? — respondeu em tom cansado, arrastando o final com um suspiro.

     — Você não é um trai...

     — Não... termine a frase. Pelo amor que você tem em Hae Tae, apenas... — ele hesitou, vendo que tinha gritado. — Desculpe.

     — Está tudo bem? 

     — Pergunta idiota... — constou em uma risada. — Não é como se você não sentisse o que eu sinto.

     — Ya! Por que os celestiais são assim? — soou dentro da mente dele, indignada. — Desde sempre eles agiram como se você fosse impuro, uma praga de Dalnim.

     — Já conversamos sobre isso. Não esquenta, cão. E teoricamente, sou uma praga de Dalnim — ele deu uma risadinha, suspirando e se levantando do chão.

     Começou a retirar suas vestes, se dirigindo à suíte do seu quarto. 

     — Não fale isso de si mesmo... eu não gosto — resmungou com um bico. — E não se preocupe com o que os outros falam de mim também. Deixe Young Soo bostelhar o quanto ele quiser — ela murmurou, mansa, e Hyun Shik assentiu.

     Já completamente sem roupas, pegou uma caixinha que estava sobre o mármore da pia e, com certa facilidade, puxou as lentes de contato de seus olhos, piscando algumas vezes antes de entrar debaixo de uma forte corrente de água morna que, ao tocar sua pele, era como se lavasse seus pensamentos. 

     — Você é muito tolerante com isso...

     — Young Soo está certo, Hae Ri. Como todos sempre disseram, e ele acabou de me lembrar, se eu não era, agora sou um traidor — essa fala foi o suficiente para o silêncio voltar e ele se concentrou no seu banho.

     Apresentava um bom porte físico, apesar de que sua falta de cuidado já mostrava sinais. Sua pele branca levemente bronzeada e brilhante estava repleta de cicatrizes. Algumas mais superficiais e finas, alguma outras tão profundas como se ainda fosse possível sentir a dor do ferimento. E, em seus pulsos, havia um fio intrincado num vermelho claro, com a marca de Hae Tae nos dorsos de suas mãos, a face com grandes chifres e presas de um leão, com uma juba bem penteada.

     A água escorria pelos seus cabelos negros e lisos, fazendo-os brilhar à luz artificial da lâmpada do banheiro, seus tristes olhos azuis brilhavam e ele olhava para baixo, apenas sentindo sua raiva ser lavada. 

     Ele levou sua mão até a lateral esquerda do seu rosto, colocando-a na grande cicatriz ao lado do seu olho. A marca daquele dia. A marca que nunca o deixaria esquecer dos seus erros, do dia que perdeu tudo.

     Não apenas aquela cicatriz o lembrava daquele dia. Lembrava claramente da dor agonizante que sentiu quando teve aquela lança cravada em si, e, como se estivesse sentindo-a, colocou a mão sobre a grande marca pouco ao lado do seu umbigo.

     Mas, sem dúvidas, a marca que o fazia ser quebrado em vários pedaços, era uma que não podia ser vista, deixada por Min Sun, marcada com as palavras de "traidor", que nunca imaginou que sairiam da boca dela daquela forma.

     As palavras de Young Soo o fizeram lembrar daquele inferno. Reviver aquele inferno do dia que morreu, mas continuou vivo. Vivo apenas para pagar pelo que fez.

     Após um demorado banho, vestiu uma bermuda qualquer e, com sua toalha, enxugava seu cabelo com seu busto ainda úmido e nu.

     Hyun Shik terminou de se enxugar, vestiu um moletom cinza, e logo deitou-se na sua cama, deixando suas asas brancas com poucos lampejos pretos, quase imperceptíveis, a mostra, onde pequenas penas subiam por suas costas, substituindo a marca de Palk, uma pequena marca com asas saindo de um orbe central, onde mostrava o tipo de sua magia.

     — Vai dormir? — mais uma vez, a voz soou e Hyun Shik abriu os olhos, se deparando com os cabelos arroxeados gradualmente tornando ao azul claro pelo comprimento, junto aos chifres da cabeça de Hae Ri, vendo-a estender um pequeno potinho branco para ele.

     — Já disse para não sair assumindo uma forma material descuidadamente... — ele resmungou sonolento, com o olho esquerdo fechado — Você pode acabar sumindo e é cansativo...

     — Eu não sumiria por algo assim, seu idiota. Meu contrato não permitiria — xingou, insistindo que ele pegasse o pote, virando a cabeça para trás e o encarando com seus olhos, também arroxeados, inexpressivos, mostrando sua presa sobressalente. — Eu cumpri minha missão ao encontrar o príncipe do tempo, meu contrato valerá até o dia que você morrer. Ou quando quisermos dar um fim a ele.

     — Quero dar um fim a ele... você não me deixa dormir — ele fez beicinho, pegando o recipiente, o abrindo e pegando um dos comprimidos azulados, engolindo com uma longa golada de água, e virando, se enrolando entre as plumas, e ela gargalhou. — Tantos celestiais no Reino da Luz, e logo eu me tornei o “príncipe do tempo”... se eu soubesse que uma Haichi tagarela vinha junto do contrato eu nunca teria aceitado...

     — Não é algo tão simples e você sabe disso. O sangue de um...

     — Pelo destino do outro, eu sei. Obrigado pelo seu sacrifício... — ele se virou, ficando de lado e a encarando. — Porque não ficou em Yeon Deung Hoe¹

     — Por que eu ficaria? Minha missão era encontrar e servir o príncipe do tempo. Eu sou a sua guardiã, Hyun Shik — ela explicou com um sorriso. — Alguém precisa negociar as coisas contigo.

     — Não sente saudades? — insistiu. — As festas lá eram esplêndidas — relembrou em tom irônico por, claramente, não gostar de festas ou coisas que envolvam multidões.

     — Apenas me leve para as festividades que os humanos realizam — ela falou animada, arrancando uma risadinha dele. — A Yeon Deung Hoe daqui também é legal.

     — Porque não vai dormir, cão? — ele levou a mão até os cabelos dela.

     — Eu durmo o dia todo... — fez beicinho.

     — Não é culpa minha se você não consegue ficar alerta tanto tempo — bocejou e deu de ombros, se enrolando até o pescoço. — Deve ser algo das dimensões...

     — Sabe, Hyun Shik — ela sorriu fracamente. — O sangue de um pelo destino do outro... Não se ache responsável pelo meu sangue. No dia que escolhi lhe dar ele para que pudesse alterar o destino, apenas estava cumprindo minha missão com Hae Tae.

     — Pela milésima vez, Hae Ri. Obrigado pelo seu sacrifício — sorriu, fechando os olhos. — Podemos dormir agora? — ela sorriu, tornando às cinzas lentamente e envolvendo o corpo de Hyun Shik, que brilhou em brasas e logo voltou ao normal, tomando Hae Ri de volta.

     — Boa noite, Hyun Shik.

     — Boa noite, cão.

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Vocabulário:

 O Festival das Lanternas de Lótus¹ (Yeon Deung Hoe) é tradicionalmente celebrado na semana do oitavo dia do quarto mês do calendário lunar, quando é comemorado o nascimento de Buda. Trata-se da dinastia de Hae Tae, lar dos Haichi, onde sempre há festas e comemorações à divindade do tempo.

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