Enquanto eu dormia
Enquanto eu dormia
Por: Emíliana Vaz
Capítulo 1

Notas e agradecimentos da autora

Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção: não se referem a pessoas e fatos, e não emitem opinião sobre elas. Alguns fatos estão inspirados em relatos históricos.

Sobre a doutrina espírita, sou simpatizante, e não há psicografia nesta obra. Todas as informações apresentadas durante o percurso da história foram pesquisadas em livros, O Livro dos Espíritos, e sites sobre o assunto.

Esta história, não é aconselhável para menores de 20 anos. 

     Agradeço a Gabriela Beller, historiadora, que me ajudou muito na pesquisa, processo e correção do livro.

As informações a troca de cada capítulo, foram extraídas da internet em sites de jornalismo e livros, alguns listados na última página.

A imagem da capa foi fornecida pelo Createspace.

                                                                 

A morte é uma simples mudança de veste, somos o que somos. Depois do sepulcro, não encontramos senão o paraíso ou o inferno criado por nós mesmos.

Chico Xavier

                                                Prólogo

   

    Antes da Guerra...

Ele segurou o rosto dela entre as mãos, e fitou-a nos olhos.

   ─Você tem certeza de que quer voltar? Aqui, somos livres, lá viramos escravos, da sociedade, do mundo! Fora à luta que temos que travar entre ser bom e mau, o tempo inteiro. Não precisamos mais viver àquele plano!

   ─Eu sei! – ela o abraçou com força. ─Entretanto, não consigo me sentir bem aqui, enquanto ele... Precisamos ajudá-lo! Precisamos fazer algo por ele. Tirá-lo de lá!

   ─Ele não quer ajuda... Ele sempre acaba voltando para lá! Ele nunca quis nossa ajuda! Nem nos recebe mais... 

   ─É isso que precisamos ensinar a ele, que o orgulho não o leva a lugar algum. Que só o amor pode nos salvar!

   ─E se nós falharmos; estará pronta para novas consequências? Você sabe o quanto é difícil resistir às tentações, a intensidade dos sentimentos naquele plano.

   ─Eu sei. Se eu falhar, assumirei todas elas.

   ─Você o ama a esse ponto? - ele perguntou tristemente.

   ─Ele precisa de nós! Nós o amamos! Esqueceu?

Ele respirou fundo observando o céu muito azul. O campo florido e perfumado em volta deles, a planície a sua frente muito verde. Sentiria falta daquele reino de paz. Mas o esquecimento total o ajudaria.

   ─Não vai ser fácil. Tens conhecimento de que irei primeiro, não é? Aqui, nos separamos por tempo indeterminado.

Ela assentiu entristecida, mas tinha convicção de que era a decisão correta.

          ─O que eu não faço por você?

    ─O que não fazemos por amor? -respondeu ela emocionada. ─E lembre-se: aconteça o que acontecer; de um jeito ou de outro, nós sempre voltaremos.

E um beijo apaixonado selou aquela promessa que os acompanhava a tantas vidas. A mesma que também os separavam.

       Depois da guerra dos Farrapos...

─Que lugar é este? - ele gemeu contraído pela dor, assustado e com frio.

O homem rodeado por uma linda luz que o acolheu, disse:

─Umbral.

─Me explica...

─É uma espécie de zona purgatória, onde se queima a prestações o material deteriorado das ilusões que a criatura adquiriu por atacado, menosprezando o sublime ensejo de uma existência terrena. Concentra-se, aí, tudo o que não tem finalidade para a vida superior. Exemplo: Vingança, Ódio, Inveja, Rancor, Raiva, Orgulho, Soberba, Vaidade, Ciúme etc. O espírito impregnado com esses sentimentos se encontra intoxicado, e vem para cá. Na Terra só é possível ajudar as pessoas que querem receber ajuda, que aceitam a ajuda, e para ser ajudado você precisa primeiro reconhecer o erro. Se você sofre por ter dentro de si o sentimento de vingança, só pode ser curado deste sofrimento se conseguir perceber que precisa de ajuda. Somente nesta situação é que você consegue ser ajudado a sair do Umbral.

      ─E você vai me ajudar? - ele zombou gemendo mais alto com a dor em seu peito.

─Isso vai depender de você, meu filho. Quando reconhecer o sofrimento que causou aos outros, e se perguntar como ajudar os seres humanos a sofrer menos. Quando sentir a necessidade de ensinar o próximo a se fortalecer, buscando a paz, orientando-a para não se enganar por falsas promessas, ajudando-a a não ser vítima de indivíduos, como você mesmo foi no passado.

─Ei! Espere aí! Não me deixe neste lugar sozinho! Volte aqui! Tenho dinheiro! Podemos negociar? - ele olhou em volta. A escuridão era assustadora, e de repente começou a rir. As lembranças povoavam a sua mente a cada segundo. ─Claro! Já estive aqui... Bom filho a casa retorna, não é? -gritou. ─ Vou ter muito que pensar... - suspirou exasperado encostando as costas numa rocha preta. ─ Já que dormir aqui... vai ser impossível, com essa gritaria dos infernos!

                    

                

                                                        1                           

                                                                                   

                                                                            

Impeachment de Dilma Rousseff/ Michel Temer assume interinamente/ Lula torna-se réu em cinco processos

Em 2016, a Lava-Jato teve seu recorde de fases, deflagrando 17 operações. Nessas, muitos nomes de peso da política brasileira acabaram indo parar atrás das grades. Uma das prisões de maior impacto foi a do ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, em 19 de outubro. A decisão foi do juiz Sérgio Moro no processo em que Cunha é acusado de receber propina de contrato de exploração de Petróleo no Benin, na África, e de usar contas na Suíça para lavar o dinheiro. Gim Argello, Antônio Palocci, Sérgio Cabral e Garotinho foram outros nomes importantes da política brasileira capturados pela Polícia Federal.

                              Viamão / 2016

         Diogo observava àquela construção do século XIX com uma expressão de fúria. Não queria acreditar. Viajara mais de quinze horas de São Paulo para Viamão no Rio Grande do Sul de carro. Parou algumas vezes para esticar as pernas, comer e abastecer. Estava exausto, mas preferiu assim.  Uma viagem, sozinho consigo mesmo. Passava por uma péssima fase em sua vida, e tentava, desesperadamente, evitar mais problemas que o levassem a tirar dinheiro do bolso que não tinha!

        Consegui um lugar fantástico para você ter paz e se concentrar no próximo livro, Diogo! – dissera seu editor com a maior cara de pau. ─Uma linda fazenda, antiga estância como diziam por lá, no Rio Grande do Sul! Coisa fina! Tudo que você adora! Tudo o que você precisa, tem lá!

         ─Mas que filho da puta! Quem disse que gosto de mato? - bradou Diogo no meio do nada ouvindo o eco de sua própria voz.  ─ Ah, mas se ele pensa que vou ficar aqui está muito enganado!

Pegou o celular e ligou para o seu editor.

        ─Que porra de lugar é este Rudi? Pensei que era no mínimo habitável com o conforto que eu mereço e não um mausoléu abandonado... Escuta, você esteve aqui para ver o lugar maravilhoso que você descreveu?

        ─Escute você Diogo! Já paguei mais da metade do seu quarto livro que você nem começou a escrever ainda. Já paguei todas as suas contas do mês. O que mais você quer? Que eu te sustente? Meu amigo você está vivendo uma crise muito séria! Aliás, no teu sobrenome tem “crise”. Precisa organizar sua vida e suas finanças que você mesmo detonou com esse maldito vício e com os tantos processos que vem respondendo por escrever demais sobre coisas que não lhe dizem respeito...

        ─Foi nos meus maiores momentos de embriaguez que escrevi o meu melhor, e sei também que o meu pior. Mas, não vou entrar no mérito da questão, e muito menos numa discussão sobre o nosso relacionamento e meu comportamento com você agora, Rudi... estou cansado, quero um banho, dormir um pouco, a viagem de carro foi exaustiva. Este lugar... acho que nem água encanada tem! - berrou.

Rudi riu divertido. Conhecia o temperamento quase que bipolar de Diogo. Talvez ele fosse, realmente, bipolar. Ainda tolerava certas coisas, porque Diogo era bom no que fazia, escrever, desde que não estivesse bêbado. E depois, gostava dele. No final das contas, era um bom sujeito, pensava Rudi.

       ─Se vira, deve ter um poço artesiano por aí. Você está num lugar histórico, sabia? Aproveite, pois eu sei o quanto você ama história! -ironizou. ─Desfrute o perfume das Magnólias. Estância das Magnólias! Curta a sombra, a paz, os pássaros, e escreva o meu livro de uma vez por todas! Com todo o material, que diz ter para sua próxima obra, você tem doze meses para fazer isso e, por favor, não me ligue mais para encher o saco com bobagens! - e desligou o telefone.

       Desgraçado!

Fitou o andar de cima. Uma cortina velha se movimentava numa janela aberta. Ao lado uma árvore de magnólia de altura considerável. Olhou em volta, uma tarde quente e abafada do início do mês de novembro anunciava chuva. Não tinha vento, nem menos uma brisa. Voltou o olhar para a cortina. Ela continuava balançando, suavemente, como se dançasse ao som de uma música. Ou quem sabe um ventilador estivesse ligado.

        ─Só o que faltava uma casa mal-assombrada. - riu desdenhoso. Era cético, debochado e ainda por cima ateu. Palavra religião para ele era um palavrão! Lembrou de uma frase de Alirio Rungo: “Quantas vezes a religião foi usada para mentir, matar ou para fazer guerras, é por isso que alguns dizem que se ela não existisse teria que ser criada...”

Resolveu entrar, era o jeito. Passaria a noite, mas no dia seguinte, sairia a procura de um hotel decente, já que um cinco estrelas, estava fora de cogitação e de seu orçamento. Tentou a chave na porta antiga de madeira pesada, estava emperrada, enferrujada e para ajudar a chave trancou. Deu dois pontapés e a porta se abriu rangendo de cima a baixo. Ele soltou uma gargalhada.

       ─Deve ser o portal do inferno!

Deu meia volta, foi até o carro, pegou uma maleta pequena e fechou a porta com um chute na lateral. Estava com muita raiva e precisava extravasar. Tirou uma garrafa de seu uísque preferido e caríssimo da maleta. Abriu a tampa e bebeu no gargalo.

       ─Você precisa parar de beber criatura! - ouviu a voz de Rudi numa conversa passada. Riu, parecia até uma assombração. ─Você está doente, e como se não bastasse, paga uma fortuna por esses uísques caros.

       ─Por que não me chama logo de alcoólatra? Sou mesmo! É para isso que ganho dinheiro, beber o que gosto! E do bom!

       ─Você está caindo num poço profundo, Diogo. Desde que sua mulher o deixou, e cá para nós, com toda razão, e a morte de seu irmão...

      ─Não quero falar sobre isso!

      ─Tudo bem! Fuja dos assuntos que o incomodam, meu caro, que é só o que você tem feito.  Mas e suas contas cada vez mais altas? A editora já cortou sua verba. Sabia que estou pagando suas despesas do meu bolso em nome de nossa amizade? E ainda vou arranjar um lugar para você trabalhar seu novo livro rapidamente e de graça, ou nós dois vamos chorar na rua da amargura! Assim você fica livre do aluguel. E eu também!

Diogo tomou mais um gole do uísque e entrou na casa. Breu total. Lá fora escurecia e começara a trovejar.

      ─Para um bom terror, isso aqui está melhor do que encomenda. - debochou. Avaliou o ambiente a sua volta.

Móveis antigos, alguns quebrados espalhados pela sala grande que um dia deveria ter sido habitável.

 Poeira por todo o lado, cheiro de mofo misturado a um perfume suave que ele não conseguia identificar.

    ─Que pocilga! Mas não passo dessa noite neste lugar imundo!

Arriou num velho sofá rasgado, fitou a sua frente uma lareira antiga construída no século passado. No Sul fazia muito frio no inverno, e muito calor no verão. E dava para se perceber a olhos nu, que a construção era das boas. Imaginou algumas mulheres tricotando em volta da lareira, crianças correndo pela casa, e homens sentados à mesa de madeira rústica fumando seus palheiros e tomando chimarrão, costume e bebida do gaúcho.

Bebeu mais um gole de seu uísque. Fitou a garrafa pela metade.

    ─A minha bebida preferida é esta. Quase no fim, assim como meu dinheiro... assim como eu...- deitou a cabeça no encosto do sofá e fechou os olhos.

Lá fora raios e relâmpagos anunciavam um temporal. Uma intensa ventania se erguia levantando terra, folhas e o que estivesse solto a sua frente. O vento uivava furioso!

No alto da escada, que Diogo nem percebera que existia, um vulto o observava. À medida que os clarões ficavam mais fortes, a figura ali parada, ficava mais assustadora.

     Diogo acordou de madrugada, sobressaltado com a impressão de ouvir gritos, sussurros e vultos escuros transitando em sua volta. Silêncio total, e lá fora uma chuva mansa. O pior do temporal, ele perdera, enquanto dormia. Olhou o relógio, três horas da manhã. Seu estômago roncou. Estava faminto. Ouviu ruídos estranhos, sentiu um aroma delicioso e o seguiu até uma imensa cozinha que por incrível que pareça, mesmo com o tempo, continuava muito bem conservada. Fitou o fogão feito de barro com uma chapa de ferro. Havia fogo e uma panela em cima fervia e saia fumaça, ele abriu a tampa. Espantou-se ao ver o que parecia um carreteiro, prato típico da culinária do Sul e pelo cheiro e pela aparência, deveria estar ótimo.

    ─Finalmente algo de bom neste chiqueiro... comida! - procurou um prato, encontrou um de louça gasto e arranhado.

Por hora estava mais do que suportável.

    Era conhecido por ser cheio de manias requintadas, chegando a ser metido à besta. Tinha uma ótima educação, estudara nas melhores escolas e cursara uma universidade muito bem-conceituada. Mas nem o currículo “estudantil” o livrava de bancar um idiota completo. Um perfeito Ogro! Pensando bem... ele sempre fora um idiota. E com o alcoolismo, só ficou pior! Sentou-se na cadeira revestida por um pelego velho e encardido. Estava quente, mas tudo que ele queria era saciar sua fome. Dois pratos mais tarde, satisfeito, bebeu um copo de seu uísque e acendeu um cigarro olhando em volta. Uma cozinha organizada. Alguém tomava conta daquele lugar. Já era um bom começo.

    ─Não importa quem cuide ou não desta maloca... amanhã durante o dia saio para encontrar outro lugar melhor e Rudi vai ter que pagar a conta! Afinal, já rendi muito dinheiro para ele e a editora.

De volta à sala, só então reparou na escada. Subiu com sua maleta e parou na ponta ao se deparar com um longo corredor e várias portas.

    ─É uma casa imensa! Rudi disse que é um lugar de história... Bem, quem se interessa? Eu que não!  Quero um hotel confortável, com luz e comida da boa, principalmente que tenha o meu uísque.

Uma das portas bateu. Ele foi em direção dela.

    ─Ei! Há alguém aí? Preciso de água, toalha e... - abriu a porta que se fechara e se surpreendeu. Um quarto arrumado, de cores claras, móveis antigos e velhos, mas tudo limpo e perfumado. Em cima da cama uma colcha de retalhos coloridos estendida. Ao lado, uma cadeira com uma toalha na cor rosa pronta o esperando.

    ─Tem alguém aqui que cuida da casa.

 Foi até a janela, à mesma em que ele viu a cortina se mover. Tinha uma visão de tirar o fôlego. No lado de fora galhos das árvores com flores brancas. Ele pegou uma e cheirou.

Ficou ali por alguns minutos contemplando aquela vastidão escurecida pela noite e a chuva mansa que caia. A imensa figueira centenária mais afastada da frente da casa. Os muros em volta e o portão. Um cenário espetacular e ao mesmo tempo assustador no meio do nada.

    ─É isso, estou no meio do nada. Sozinho. Absolutamente, sozinho, sem ninguém.

Um rangido no velho assoalho de madeira o fez virar-se como se alguém tivesse dado um passo adiante. Não havia ninguém.

    ─Esta casa deve estar cheia de ratos. Preciso encontrar algum tipo de luz, já que não vi interruptores... – A luz natural do ambiente era azulada escura. Algo que ele não percebeu. Fitou melhor a parede e encontrou. Tentou acender, nada, podia ser a lâmpada queimada. Não era. Saiu do quarto e desceu a escada rapidamente. Se tivesse luz havia uma caixa de energia. Encontrou-a do lado de fora, e como desconfiava, o velho disjuntor estava desligado.

 Talvez por alguma queda de luz. Ficou mais animado ao perceber a fraca luminosidade dentro da casa. Pareceu-lhe maior e com vida.

    ─Nem tudo está perdido! - ele voltou para o quarto e abriu a porta de um banheiro conjugado. Riu aliviado quando viu uma banheira de louça antiga esperando por ele. Foi um banho demorado, e surpreendentemente gostoso. Ao parar em frente ao espelho da pequena penteadeira, sem dúvida pertencente a uma mulher; tirou a toalha rosa da cintura e se analisou. Cabelos claros mal cortados, olhos azuis, barba cerrada e grande, cinco quilos mais magro, mas ainda atraente nos seus trinta e oito anos. A beleza de outrora sumira com os anos entregues ao álcool. Parecia bem mais velho.

    Três internações; entrava e saia dos grupos dos alcoólatras anônimos. Cada vez que estava perto de fechar um período sem beber, tinha uma recaída e não lutava contra. Fora a tentativa de suicídio depois da morte do irmão. Por pouco não partira dessa para melhor, ou pior. Atirou-se na cama. A colcha de retalhos era macia e tinha um suave perfume, o mesmo que vinha da janela. Magnólias... Diogo cruzou os braços atrás da cabeça e fitou o teto.

    ─Quem será a dona deste quarto? Este perfume é inebriante... e gostoso...- ele suspirou e fechou os olhos por um momento.

Na imagem do espelho, lá estava o vulto o observando aos poucos pegar num sono profundo.

“Peça clemência desgraçado! Quero ver vosmecê pedir por sua vida!”

Uma espada, uma dor lancinante e o último pensamento para ela.

   Diogo acordou sobressaltado e se sentou. Há muito tempo não tinha aquele sonho. Sacudiu a cabeça e deu um pulo da cama. Olhou no relógio, duas da tarde! Como conseguira dormir tanto? Precisava sair procurar um lugar melhor e... beber! Muito! Foi então que ele sentiu um agradável aroma de café. Vestiu uma roupa qualquer e desceu a escada ajeitando os cabelos com os dedos. Agora, finalmente, ele descobriria quem cuidava daquela casa, pensou. Nada, nem ninguém, mas na mesa da cozinha, café passado num bule de louça azul descascado.

    Quente! Fumegando! Ele se serviu e foi até a porta dos fundos. Surpreendeu-se ao ver uma mistura de árvores frutíferas, hortas abandonadas, galinheiros vazios e mais ao fundo dois galpões imensos. Numa revista rápida percebeu que um deles era de cavalos e o outro de algum tipo de produção. E um enorme pavilhão ao fundo que lembrou uma... Senzala! Seria isso mesmo? Depois de tanto tempo ainda estaria de pé um lugar de sofrimento e prisão? Sentiu vontade de examinar, mas o calor era insuportável! Deixaria para depois, pensou ele. E o mais interessante era a vastidão de terras no horizonte. Era impressionante aquele espetáculo do verde vivo contrastando com o céu ainda cinzento.

    ─Ar condicionado! Eu preciso de um urgente! Seja quem for que cuida deste lugar não me importa. Não vou ficar aqui mesmo.

Uma violenta batida na porta da cozinha o fez se virar e correr atrás de quem a batera daquele jeito. Nem rastro.

   ─Pouco me importa quem é você! Não vou ficar neste mausoléu dos infernos! E o café? - Jogou a caneca contra a parede com violência. ─É um dos piores que já tomei na minha vida!

Diogo ouviu sons de portas se abrindo e batendo com violência, como se mais de duas pessoas estivessem na casa ao mesmo tempo.

    ─Se estiver pensando que me assusta, se engana! Não sou do tipo que teme qualquer coisa! A cada minuto fico mais louco para sair deste lugar asqueroso. Era só o que me faltava, uma casa que fala e ainda por cima, temperamental! Devo estar louco, paranoico, ouvindo coisas.

     E ele foi para o carro e entrou batendo a porta saindo em disparada. Na janela do andar de cima, o vulto o observava partir.

   

      Para sua surpresa, Diogo gostou do centro de Viamão. Passeou por algumas ruas, pelo centro e deu uma olhada em um hotel, mas não se agradou do quarto. Esteve em duas lojas atrás de seu uísque precioso. Optou por uma marca nacional com preço mais em conta e pegou seus cigarros. O dinheiro estava muito curto! Em um supermercado, comprou mantimentos e passou no caixa. Imediatamente, foi reconhecido pela morena que o atendeu.

   ─Diogo Dornelles, o escritor... do meu livro preferido: Vivendo Alopradamente!

   ─O próprio! - ele riu divertido com a expressão de susto da moça. ─E eu que pensei que ia passar despercebido com essa barba...

   ─Impossível! - ela exclamou. ─A tua última aparição num programa de fofocas falando do escândalo da lava jato, já estavas de barba.

   ─Hum... - ele grunhiu lembrando-se da entrevista. Estava bêbado e falou tantas coisas que nem lembrava mais, mas estavam lá, gravadas, e teve sérios problemas por isso.  ─E você curtiu?

─Curto tudo que é teu. Amo o que tu escreves! Pena que tua página no F******k foi excluída por ordem judicial! - ela riu.

   ─É mesmo! - sorriu desconfiado de que aquela mulher estivesse tirando onda com a cara dele. Ela não parecia o tipo que lia as coisas que ele escrevia.

   Era um sujeito polêmico. Seu problema era não filtrar o que falava. Sua escrita era provocativa, questionadora, e os seus livros geralmente eram usados para debates. E na internet costumavam pegar fogo.

  ─Podemos conversar sobre o... que eu escrevo num jantar hoje à noite. O que acha?

Ela ficou pasma e sorriu abertamente. Era uma mulher muito atraente.

   ─Claro! Seria uma... honra!

Diogo adorava uma boa bajulação, elogios, atenção. Um ponto para ela!

   ─Que horas passo para pegá-la...?

   ─Ah sim... desculpe, Vilma. - e ela o fitou de maneira provocante. ─As oito, eu te dou meu endereço. Pode ser?

   ─Perfeito!

    De volta à “estância”, Diogo preparou um lanche e depois de satisfeito, foi dar uma olhada nas outras peças da casa. Conforme ele andava, tinha uma estranha sensação de reconhecimento. Achou um quarto de costura, três quartos de casais, um deles maior e os outros menores com banheiros, e uma sala que lembrava um salão de festas. Uma construção bem planejada, e um estilo, ele diria, até moderno para a época em que fora construída. Havia duas cadeiras quebradas encostadas a parede, uma janela grande que dava para os fundos do terreno, e um piano que o deixou de queixo caído. Uma raridade! Abriu a tampa e nela estava gravada: Alemanha 1801. Estava bem cuidado, como se fosse limpo todos os dias. Sentou-se na banqueta e passou os dedos pelas teclas suavemente. Uma leve brisa penetrou as janelas como se aprovasse aquele som harmonioso.

   ─Uma belezura! Pena que eu não entendo nada de música e pianos... - bebeu um gole de seu uísque servido num copo de vidro que comprara no mercado onde Vilma trabalhava e deu uma profunda tragada em seu cigarro. Ela era uma linda garota e ele necessitava de uma boa distração. Aliás, distração era o que mais tivera na vida até então.

Essas mesmas distrações acabaram com seu casamento. E jamais, poderia esquecer, o quanto era sacana. Pensando bem, um tremendo cafajeste! Cafajeste seria um termo carinhoso para tanta sacanagem.

   ─ Li numa revista que a partir dos morros da região e do topo da igreja matriz Nossa Senhora da Conceição, é possível se avistar o rio Guaíba e seus cinco rios afluentes: Jacuí,

Caí, Gravataí,

Taquari e o rio dos Sinos, que formam uma mão aberta. Daí a frase: "Vi a mão". Achei interessante. Conte-me um pouco sobre o lugar. –pediu ele interessado.

   ─Deixa ver o que eu me lembro de minhas aulas na escola.  Viamão foi sede das primeiras estâncias de criação de gado. Os grandes rebanhos de gado e cavalos que existiam na Campanha do Rio da Prata transitavam por Viamão pra serem comercializados em Laguna (SC). Creio que foi em 1732, o Rio Grande de São Pedro - como era conhecido o RS - passou a atrair colonizadores que se radicaram. O município, portanto, foi um dos primeiros núcleos de povoamento do estado formado por lagunenses, portugueses, paulistas, escravos. Só a partir de 1752 chegaram os primeiros casais de imigrantes açorianos, que desembarcaram na região de Itapuã.  Aliás, onde tu estas hospedado?

   ─Interessante a história de Viamão. Você deve ter sido uma boa aluna. Estou na Estância das Magnólias... – se calou ao ver os olhos dela arregalarem. ─Devo ter dito um palavrão ou algo do tipo... - ele riu.

   ─O que? Aquela casa é amaldiçoada! Ninguém nunca ficou naquele lugar! Nem os Sem Terra conseguem invadir!

Diogo riu ainda mais.

   ─É amaldiçoado mesmo, pela sujeira e o cheiro de mofo. E tem vários habitantes naquele lugar, desde baratas e ratos e outros bichos que ainda não tive a oportunidade de ser apresentado.

   ─É sério! Verdade!

   ─Está certo! E o que é que dizem desse lugar tenebroso?

   ─Naquela casa morou uma família importante e de influência, na época, que se destroçou durante a guerra dos Farrapos. Eram descendentes de imigrantes. Há quem acredite que uma mulher foi assassinada dentro da casa, e a assombra até os dias de hoje. Contam que se ela sente a invasão do lugar, acontecem coisas estranhas, como no filme Poltergeister.

   Diogo tornou a rir, mas lembrou das batidas de portas e de uma explicação lida certa vez.

   ─Fenômenos sobrenaturais não explicados pela ciência que lançam desde pedras, luzes que surgem do nada, deslocamento de objetos leves ou pesados, surgimento espontâneo de água, fogo, ou focos de luz, anormalidade nas instalações elétricas e telefônicas, abertura de portas, pancadas em lugares diversos, clarão ofuscante, estouro de lâmpadas, ruídos de passos ou correria, vozes, música, brinquedos que funcionam mesmo sem as baterias, ou pilhas, correntes de ar, entre outros, se não estou enganado. – seu tom era de chacota, mas no fundo estava em dúvida. ─Como assim, sente a invasão?

   ─Tipo, se alguém se interessa em comprar, como já aconteceu de o comprador desistir por conta das manifestações da casa. Nas invasões de terra, a assombração é mil vezes mais competente do que a polícia de choque! A casa inteira cria vida. Como se fosse um monstro... - ela se arrepiou. ─... querendo engolir algo ou alguém.

   ─Bobagem! Eu estou lá e a, assombração, não sentiu a invasão.

   ─Não é bobagem! Por que tu achas que aquele lugar tá abandonado até hoje?

Pensando pelo ponto de vista dela, fazia algum sentido, mas Diogo não era pessoa de acreditar nesse tipo de fenômeno. Era muito materialista, visual, e naquele momento estava sentindo uma tremenda atração por aquela mulher bonita e cheirosa a sua frente.

   ─Não acredito, dormi lá e posso garantir que não há nada de vivo naquele lugar. Acho até que tem alguém bem humana, que cuida de algumas partes da casa, mas é só. E vamos mudar de assunto. Temos coisas muito melhores para falar do que assombrações.

Vilma sorriu sensualmente entendendo a indireta. Ela não era louca de perder aquela chance de ter um caso com alguém tão famoso e polêmico como o jornalista e escritor Diogo Dornelles.

    Suados, nus, Diogo e Vilma olhavam para o teto depois de horas de prazer. Era tudo que ele precisava. Levantou-se e foi até a cozinha do pequeno apartamento dela servir uma dose de uísque para ele e uma taça de vinho para ela. Ao voltar, encontrou-a encostada na cabeceira da cama. Os seios pequenos expostos a luz do abajur. Tinha um corpo esbelto e perfeito. Ela era uma linda visão! Fizeram um brinde.

   ─Mais momentos como este. - disse ela se aproximando mais dele.

   ─Muitos outros. - ele colocou os dedos entre as pernas dela e brincou com o sexo ainda úmido e latejante. Ela jogou a cabeça para trás e gemeu deliciada. ─Você gosta?

   ─O que tu achas? - ela abriu as pernas ainda mais.

Diogo pegou o seu uísque e derramou no púbis dela sem pelo algum. Baixou a cabeça e lentamente sorveu cada gota da bebida chegando ao pequeno clitóris. Ela gritou, erguendo o quadril, e sem demora chegou a um violento orgasmo.

    Numa muda exigência, ele derramou o vinho sobre o seu pênis e puxou a cabeça dela para provar sua bebida preferida. Ela não se fez de rogada. Lambeu e sugou o vinho o levando a um orgasmo longo e trêmulo. Diogo queria mais, penetrou-a profundamente, ajudando-a a remexer o quadril até que ambos tivessem mais um orgasmo, juntos. Mais tarde ele voltou para a fazenda com uma certeza, começava a gostar de Viamão e de suas riquezas.

    Depois de um bom banho, nem se deu ao trabalho de se vestir, sentou-se na cama com um copo de uísque numa mão e o cigarro na outra. Sobressaltou-se de tal maneira com o som de um piano tocando, que derrubou a bebida por cima do corpo e deixou o cigarro cair no chão. Pegou a toalha, se enrolou e saiu em disparada em direção a sala de música. Escancarou a porta certo de que alguém estava ali. Qual sua surpresa ao não ver nada, nem ninguém, e o piano com a tampa fechada.

   ─Seja você quem for, já encheu o saco com essa brincadeira de gato e rato! - gritou furioso.

Diogo se arrepiou ao sentir que alguém passara atrás dele no corredor, onde ele estava segurando a porta aberta. Virou-se a tempo de ver uma sombra na ponta da escada. Correu atrás e nada. Sumira completamente.

   ─Eu vou descobrir quem é você e acabar com essas brincadeiras idiotas! Agora mesmo é que não saio daqui por uma questão de honra! Você não me conhece, não sabe do que sou capaz!

    Teve a impressão de ter ouvido uma risada debochada vinda de algum lugar da imensa casa. Foi para o quarto.

   ─Acho que isso é algum tipo de alucinação alcoólica. O que Vilma falou sobre este lugar não faz sentido algum. Vou dormir que eu ganho mais.

Ele custou a dormir com os olhos fixos na janela, mas quando finalmente adormeceu, o vulto apareceu.

   ─Tenha bons sonhos.

                                             

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