Em um futuro não especificado, os antibióticos perdem a eficácia e a população mundial é praticamente exterminada por uma variante da peste bubônica. No Haiti surge uma pequena esperança para a humanidade. Alterando uma das técnicas de Voodoo, conseguem transferir a alma dos voluntários para bonecos de pano. A técnica se espalha pelo mundo, mas, por motivos diversos, como as crenças religiosas, apenas poucas pessoas aceitam se sujeitar à magia. A história começa pouco depois da erradicação da peste, em um mundo onde a espécie humana foi praticamente dizimada. Dentre os sobreviventes, pouco mais da metade são pessoas que escaparam do contágio ou resistentes à bactéria, o restante é composto por bonecos de pano. A protagonista, Letícia, jovem universitária, que estava afastada da família quando da propagação da peste, descobre que seu irmão adolescente também sobreviveu e inicia sua jornada para casa. Pouco restou da força do Estado para manter a ordem, o preconceito e a intolerância são imensos. Em meio ao caos, Letícia percebe que a viagem é quase impossível de ser feita por uma boneca de pano, mas ela não pode desistir.
Ler maisEm seus vinte e três anos, Letícia tinha passado por um bocado de situações péssimas e, em cada uma delas, vivenciara a certeza de que jamais se recuperaria de tamanha tristeza, mágoa, decepção ou ressentimento.
O primeiro ferimento profundo do qual se lembrava, foi a morte de sua avó Lídia. Na época, Letícia tinha doze anos de idade e aquele foi seu primeiro contato com o fato de que a existência é frágil e pode acabar a qualquer momento. Não de maneira ordeira e previsível, mas de maneira imbecil e absurda. Depois da morte da avó Lídia, a neta tinha certeza de que algum dia se deitaria pra dormir e jamais acordaria, de que escorregaria em uma escada qualquer e quebraria o pescoço ou que um carro desgovernado a encontraria na calçada para imprimi-la no muro mais próximo. Tinha medo de morrer. Sentia saudades da avó.
A descoberta de que seu namorado do ensino médio estava apaixonado por outra pessoa do mesmo círculo de amizades foi o segundo ferimento profundo. Esse ferimento era completamente diferente da morte. Apesar de a morte sempre marcar, como quando seu avô morrera, seis meses depois da avó, era um ferimento que já estava em uma área de familiaridade. Aqueles sentimentos eram todos novos. Antes ela sentia medo de morrer, mas nas semanas que sucederam o término do namoro, a morte parecia atraente. Mágoa, rancor, vergonha, abandono, ciúmes e inveja. A convergência de tantos sentimentos pesados parecia nunca ir embora.
Mas nenhuma dessas ocasiões serviu como preparação para o que Letícia vivia naquele instante. Ninguém, no mundo todo, estava preparado para aquilo.
Rogério, um dos poucos sobreviventes, caminhava lentamente para o centro do ginásio poliesportivo da universidade. A pilha de corpos ali amontoada, misturada com cadernos, cadeiras e outros inflamáveis, era impressionante. E mesmo assim, o andar do universitário era seguro, como se ele já tivesse se habituado a monstruosidade. Rogério se agachou, pegou um caderno da pilha, tateou os bolsos da calça jeans, procurando o isqueiro e não achou. Sem a mesma solenidade e frieza, outro universitário, Marcos, chegou correndo e entregou um isqueiro a Rogério que, finalmente pôde atear fogo ao caderno e jogá-lo ao centro do amontoado de corpos.
Letícia assistia ao crematório de seu próprio corpo.
Com os implantes feitos nas pontas dos dedos, Letícia e Raul perceberam que conseguiam digitar no computador. Trocar e-mails virara uma forma muito mais conveniente de conversarem do que a falta de privacidade ao usar um celular alheio. Letícia escrevia: Oiê! Não acredito que você não tem notícia de mais ninguém além de mim! Eu, por outro lado, estou bem atualizada! Vou tentar te contar tudo. Margarida ficou aqui no hotel mesmo e você não vai acreditar! Ela tá lecionando português para a molecada toda. Tudo começou com ela tirando sarro da forma que o Vini escreve, aliás, você já viu como meu irmão escreve tudo errado? Ela tá feliz e, eu acho, mas não tenho certeza, que o La Croix apareceu no quarto dela um dia
Enquanto esperava o irmão, com os cotovelos apoiados no bagageiro, Letícia se deixava consumir pela ansiedade. ‘E se ele não me reconhecer? E se, por algum motivo, tiver medo de mim?’, pensava. Mas, do lado de dentro do Hotel Conforto, o jovem também se sentia ansioso e, por isso, apressava a idosa: - Vamos esperar lá fora! Eu aposto que eles já chegaram! Percebendo que não conseguiria acalmar o adolescente, Ornella se levantou e estendeu uma das mãos a Vinicius, que segurou, automaticamente, e assim, de mãos dadas, a dupla saiu do hotel. Quando viu a porta de vidro se abrir e o irmão emergir do ambiente mais escuro, foi como se um raio atingisse Letícia. A boneca não teve presença de espírito para reagir, mas, diferentemente da dela, a ansiedade do irmão se tornou propulsão e o adolescente soltou a mão da idosa, cruzando a distância que o separava de sua irmã em um piscar de olhos. Num primeiro momento, o irmão enxergou a boneca como ela sem
Raul foi o primeiro a acordar. Pela iluminação pálida e a suave neblina que podia ver pela janela do quarto, sabia que ainda deveria ser bem cedo, antes de sete horas da manhã, mas não tinha sono o suficiente para voltar a dormir. Sem ter o que fazer, o orangotango desejou que tivesse lembrado se de colocar, pelo menos, um livro na mochila.Decidiu que fuçaria a mochila de Letícia e de Margarida em busca de algum passatempo e levantou da cama. Foi quando ouviu, do lado de fora do quarto, o barulho de uma porta se fechando.Como na noite anterior, o orangotango correu para os corredores do motel e não viu ninguém. Dessa vez, lembrou-se de checar o interior do carro, checando a janela. Mas, de qualquer forma, não estava mais preocupado. Se alguém quisesse fazer mal ao grupo, teria aproveitado a noite, momento em que eles estavam mais vulneráveis. Se a pessoa se manteve escondida, é
Por um longo trecho, nos últimos quilômetros que separavam os viajantes da cidade de destino, a rodovia estava completamente desbloqueada, mas, mesmo assim, Sérgio preferiu não acelerar. Sempre cauteloso em relação ao que poderia encontrar logo, além do horizonte.No banco de trás, Raul tinha reorganizado as bagagens, de forma a preencher todo o espaço livre do soalho, liberando bastante do espaço dos bancos. Estava deitado, de costas para a porta, com as costas apoiadas em uma mochila e, na mesma posição, Letícia estava apoiada no orangotango, que com uma das mãos acariciava os cabelos da boneca e com a outra a abraçava.No banco da frente, Margarida dormia com o celular nas mãos.Mesmo com o aumento dos obstáculos, que indicava a proximidade da cidade, a rodovia se mantinha praticamente livre e, antes do esperado, o grupo chegava à zona
A primeira experiência dirigindo em rodovias, depois da peste, tinha sido caótica. Não apenas pelo volume de obstáculos encontrados, mas também pelo medo e insegurança. Mas enquanto dirigia acompanhado de Margarida, Raul e Letícia, o homem barrigudo percebia uma grande diferença, não apenas em sua confiança, mas na própria autoestrada. Por isso, comentou:- Eu acho que tem mais gente usando a estrada do que fazendo baderna, ou essa rodovia tá em muito melhor condição do que a outra. Sentada na poltrona do copiloto, ao lado de Sérgio, a boneca de pano complementou: - Faz o que, uns quarenta minutos que a gente não precisa parar pra arrastar nada?&nbs
Depois da pequena caminhada pela floresta, os quatro viajantes chegaram ao carro de Sérgio e se preparavam para seguir viagem. Colocando as bagagens no chão, próximo ao veículo, Raul disse:- Acho melhor a gente remendar logo o braço de Letícia.E olhando para a amiga, continuou:- Não sei como você não tá reclamando de dor, toda hora eu olho isso e fico com agonia.A boneca de pano levou a mão ao ferimento, empurrando a espuma para dentro, enquanto falava:- Não sei se foi por causa da adrenalina, mas na hora não doeu e, pra falar a verdade, nem agora tá doendo. Eu tinha até esquecido.Enquanto o orangotango e Letícia conversavam, Margarida abriu a mochila de Jotapê e pegou a caixa de metal que ele chamava de “Kit de primeiros socorros”. Abrindo a caixa, se deparou com uma bandeja com agulhas de diversos tamanhos,
Último capítulo