04

Devolvo ambos os copos de cristal onde estavam antes, vou para as gavetas da mesa novamente tiro de lá um isqueiro. Abro a cristaleira para tirar de dentro um dos incensos de alecrim e arruda, o apoio no incensário estreito de madeira com pequenos sóis pintados em amarelo e o acendo. Assopro a singela chama na ponta do palito, ciente de que o mortal me observa. O aroma começa a purificar o ar quando guardo o isqueiro na gaveta. Antigamente, o acenderia com apenas um desejo de acendê-lo, um olhar, um pensamento e agora preciso de fogo de verdade, algo que crie as chamas para mim.

— Eu senti você. – Apoio as mãos na mesa, inclinando o corpo um pouco para frente. — Na praça. Em um minuto tudo estava limpo e eufórico, mas para uma sexta a tarde é normal. No minuto seguinte foi como se todas as energias boas fossem sugadas de dentro de mim, uma esponja. Soube que havia algo errado quando vi uma vadia loira conduzindo um pobre garoto para um beco nojento o bastante para ninguém se aventurar por ele. O lugar ideal para uma refeição deliciosa.

O loiro fica em pé, perambula pela sala até o aparador com as bebidas e passeia os dedos pelo móvel.

— É uma bruxa ou algo do tipo? – Ele franze a testa ao virar a cabeça por cima do ombro. — Quer dizer, as cartomantes do centro são uma atração turística ótima para a cidade, mas ninguém acredita muito nelas, não que são mágicas ou sabem mesmo ler o futuro. A maioria é uma farsa. – Fico em silêncio e o falatório segue. — Confesso que depois de hoje, acho que devo ser menos cético. – Um sorriso breve e irônico surge nos lábios e ele se vira, encostando as costas no aparador. — Primeiro me salva, porque sabia que algo ruim me seguia e depois faz – Um desvio de olhar para a mistura seca no antebraço. — Seja lá o que for isso.

Tento conter o sorriso, falhando miseravelmente. Mortais não são criativos.

— Todas as mulheres são bruxas para vocês? – Questiono o estereótipo que humanos tem sobre magia e o pego desprevenido, calando-o por instantes banhados em alecrim, arruda e o cheiro metálico de ferro do sangue. — Quem me dera! – Lamento contornando a mesa e sentando na quina, uma das pernas balançando no ar e a outra apoiada no chão. Há gotinhas vermelhas nos saltos bege envernizados. — Sou viajada, só isso. Sei sobre assuntos que muitos fazem questão de esquecer.

Posso entrar em detalhes sobre como as bruxas e a magia foram esquecidas após a caça às bruxas e a instituição da fé cristã e demais outras que condenaram um povo a morte e ao esquecimento, mas não entro.

Pela primeira vez, o observo na tentativa de desvendar mais sobre o garoto que eu salvei sem ter que questioná-lo sobre coisas que ele provavelmente não quer falar. Jovem, talvez uns vinte anos – dezenove? Introvertido pelos fones de ouvido pendurados no pescoço ocultando o mundo a sua volta – eles o teriam matado por terem desviado a atenção ao redor – Se estivesse sem eles, teria notado a mulher alta e bonita e nada suspeita o perseguindo e haveria uma chance de não estarmos aqui e agora. Roupas de moletom, quentes demais para uma tarde ensolarada, apesar de estarmos no quase outono. Além, de parecer mais intrigado com meus conhecimentos medicinais do que com a própria quase morte por um ser sobrenatural.

Jovem, bonito e avoado. Bela combinação desastrosa.

Percebo que estamos há dois minutos nos encarando e tentando ler o que pensamos. Pisco quebrando a ligação e pulo da mesa.

— Sinto muito, mas não pode ficar aqui. – Apago o incenso e começo a juntar os papéis espalhados pelo chão. — Precisa ir.

— E se aquela coisa voltar? – O mortal recolhe as folhas que faltam e me estende elas.

— Vampiros não costumam voltar para uma presa de quem já beberam, então ela não vai aparecer de novo. Você vai sobreviver. – Junto o monte de papel desordenado perto das canetas e guardo as mesmas no pote delas, segurando uma. Puxo a mão dele e anoto meu telefone na palma. — Vai precisar trocar o curativo durante três dias, mas meu estoque das ervas que eu usei acabou. Volte amanhã cedo e te trago um pouco mais. Se precisar de ajuda, e por favor não precise, me avise. – Devolvo a caneta com as outras e o olho para confirmar se ele entendeu. Acho que sim, mesmo enquanto tenta absorver tudo o que eu disse.

— As pessoas costumam me dizer o nome delas antes de flertar comigo. – Ele repuxa o canto do lábio direito exibindo uma dobrinha fofa na bochecha.

— Eu não flerto com ninguém. – Respondo devolvendo a caneta no porta canetas.

— Duvido.  – Meu olhar é preso pelo dele e sorrio com desdém para a sobrancelha arqueada e loira. — Nunca?

— Você quer que eu te deixe em algum lugar ou pode voltar sozinho para casa sem virar drink de vampiro? – Coço as têmporas e elas latejam seguidas das costas. Tem algo errado com as cicatrizes e mal posso esperar para me olhar no espelho e descobrir. Por mais que eu deteste a ideia de descobrir esse tipo de coisa. Suspiro arrependida pela brincadeira de mal gosto. Muito cedo, Amara. — Foi mal.

— Não se incomode, acho que consigo chegar até lá sem ser atacado por uma daquelas coisas de novo. – O humano sorri dando de ombros. Fico surpresa com as palavras dele, mas não demonstro. Quem faria uma piada depois de ter passado por tudo isso?

Passamos pela cortina de miçangas e o garoto – que eu ainda sequer sabia o nome e talvez não quisesse saber, quanto menos soubesse sobre ele melhor – olha ao redor. Flores, velas e bichos de pelúcia. Nada a mal para uma floricultura bem frequentada no centro de Nova Orleans. Sou hipócrita se disser que deixaria exatamente a mesma decoração se o lugar fosse meu.

— Me trouxe para uma floricultura? – O loiro desdenha tocando as rosas vermelhas em um vaso alto e redondo no chão.

— Cuidado geladeira humana, eu trabalho aqui. – Pego a bolsa sobre o balcão e as chaves jogadas ao lado dessa. Meu tom de alerta informa que as brincadeiras dele sobre a loja de Dáhlia me incomodam. Ela é uma senhora amável que me deu uma oportunidade e defenderia esse lugar com unhas e dentes se fosse preciso. — Foi o único lugar mais próximo e seguro que pensei, não me julgue!

A ironia em geladeira humana o faz rir e aceito como um elogio. Minhas piadas são péssimas e quase nunca consigo arrancar um sorriso mínimo de alguém. O mortal se volta para mim com as mãos nos bolsos da calça do moletom cinza. Os fones pendem para fora de um deles e me pergunto em qual momento ele os tirou do pescoço e os guardou. Algum pensamento o faz sorrir outra vez e morder o lábio inferior, contendo-o.

— O que? – Quero saber cruzando os braços e trocando o peso para a perna esquerda.

— Geladeira humana é engraçado, mas acho que prefiro que me chame de Noah. — Seu sorriso se sustenta esperando que eu de qualquer sinal de que o charme dele está me conquistando. Deve funcionar com as garotas humanas.

— Certo. Noah então. – Concordo ajeitando a bolsa na dobra do braço. Prendo as chaves nos dedos e destranco a porta, pedindo as quatros luas que seja a última vez até amanhã de manhã. Aguardo Noah entender que precisa sair primeiro e demora dois segundos para que o loiro passe por mim e ao passar, me olha de soslaio com um sorriso retraído no canto da boca. — Pare de flertar comigo!

— Me deu seu número. – Argumenta.

— Não é um convite! – Retruco um tanto irritada e praguejo por ter dado esse prazer a ele. Reviro os olhos tentando chegar ao fundo da origem do meu stress. Será a dor incômoda nas cicatrizes ou o mortal a minha frente que está me tirando fora do sério?

— Vejo você amanhã, bruxa dos cabelos azuis. – Noah diz com certa decepção e chuta uma pedrinha solta na calçada.

— Não sou bruxa. – Brinco com o chaveiro da chave, três correntinhas com pedrinhas brutas e polidas de ametista intercaladas. Francamente, pouco me importa se soo convincente. Sua respiração quente sopra de leve os fios azuis de meu cabelo presos nas bochechas e faz cócegas em meu nariz. Perto demais. O alerta soa dentro de mim e dou um passo atrás desviando os olhos para a ponta dos meus saltos finos, quebrando qualquer ligação que possa estar existindo ali.

— Então quem é você? – Noah parece triste, mas permanece calado e esperando uma resposta conforme dou as costas já seguindo para virar a esquina, ciente do olhar dele firme em meus ombros.

— Sou Amara.

Viro à direita e avisto a Range Rover branca estacionada em frente a uma loja de doces. Vasculho a bolsa a procura da chave do carro, desativo o alarme, entro e puxo o sinto de segurança. Agarro o volante e respiro fundo enxergando vagamente a frente. As finas linhas entre as omoplatas doem e a cabeça ferve com os acontecimentos recentes, meu corpo se recusando a digerir a cartomante, a vampira e o mortal. Todos em um só dia em um curto período de horas. Dou a partida e o motor range debaixo de mim.

Que sexta-feira de merda.

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